segunda-feira, 19 de maio de 2014

São Vicente das Lavras

          Dimas Macedo

 
                                      
                                         Fortaleza, Secretaria de Cultura, 1984
 

Quando a expansão curraleira atingiu a região do Médio Salgado, ainda em fins do Século XVII, os chamados Homens do São Francisco diligenciaram ali estabelecer alguns núcleos de ocupação e conquista.

 E preocupados com o crescimento do criatório e o amanho da terra, foram-se deixando seduzir pela multiplicação dos haveres, até que a descoberta do ouro os obrigou a conviver com a cobiça dos aventureiros, gente nômade que não fixou raízes na terra, mas que contribuiu para a consolidação do primitivo povoado, que aos poucos começou a se desenvolver ao redor dos terrenos auríferos, mais precisamente ao redor da Fazenda Mangabeira, de propriedade do Padre Antônio Gonçalves Sobreira.

O episódio da descoberta do ouro é possível que se tenha verificado ainda nas primeiras décadas do Século XVIII, mas já em 1758 a garimpagem que por ali se levava a efeito teve suspensa a sua autorização, o que deve ter contribuído para a retomada do desenvolvimento agropastoril e para a aceleração do crescimento urbano do primitivo burgo.

O fim da atividade mineradora, é correto afirmar, coincide com o início da nucleação sócioreligiosa, que vai estruturando-se com a criação das primeiras capelas, a começar pela de São Caetano, que já se encontrava em funcionamento em 1767, doze anos após a constituição do seu patrimônio, e um ano antes dos primeiros registros que, até agora, se podem documentar com relação à capela de São Vicente Ferrer.

No último quartel do Século XVIII, com o povoamento mais ou menos ordenado, a Povoação de Lavras vai adquirindo a feição de burgo promissor, ao mesmo tempo em que, ao longo dos cursos d’água que cortam o Município, vão se consolidando as fazendas de criar e se fortalecendo os principais clãs pastoris, cujos descendentes, nos séculos seguintes, entrarão em conflito pelo apossamento do poder político, visando com isso à manutenção do status desfrutado pelos seus ascendentes.

O confronto deverá igualmente envolver a preservação do feudo, o qual, sucessivamente fragmentado pela multiplicação do gens primitivo, concorreria finalmente para o esfacelamento da hegemonia oligárquica.

                 A estruturação do latifúndio como núcleo de poder e a centralização do contingente humano ao redor da vida social e religiosa concorreram para a aceleração do processo de formação do Município de Lavras, criado por Resolução Régia de 20 de maio de 1816 e oficialmente instalado aos 8 de janeiro de 1818, oportunidade em que foi levantado o Pelourinho e a antiga Povoação de São Vicente Ferrer das Lavras elevada à categoria de Vila.

Em São Vicente das Lavras (Fortaleza, Secretaria de Cultura e Desporto, 1984), Joaryvar Macedo oferece-nos uma bem articulada cronologia da história do município de Lavras da Mangabeira até 20 de agosto de 1884.

Quem se der ao trabalho de velejar por suas páginas, nelas seguramente não irá encontrar uma bem comportada narrativa de acontecimentos oficiais, cuja veneração tem contribuído para o retardamento da nossa formação ideológica.

O trabalho que tenho a honra de apresentar é uma bem cuidada história da Povoação e da Vila de São Vicente Ferrer das Lavras. Um livro cujas informações nele contidas foram pesquisadas em fontes insuspeitas, no caso, os velhos livros de notas e assentamentos de fatos daquele município, desde os mais relevantes aos mais cotidianos.

 Alguns, carregados de forte atmosfera dramática, como é o caso do assassinato de Cosma Francisca de Oliveira Banhos, no Sítio Logradouro, a quatro quilômetros da atual sede municipal, aos 2 de abril de 1831, cujos autos de inventário, em parte, nos devolvem as impressões colhidas com a leitura de Dona Guidinha do Poço, do romancista cearense Oliveira Paiva.

Deliciosa e fantástica, ao mesmo tempo, é a viagem que Joaryvar Macedo nos proporciona, nas páginas desse livro, pelo testamento e a tradição memorialística do Padre Luís Antônio Marques da Silva Guimarães, antigo possuidor do Sítio Calabaço, localidade onde faleceu, aos 3 de março de 1863.

O Padre Luís Antônio, assegura Joaryvar Macedo, declarou ao seu testamenteiro, Benedito Marques da Silva Acahuã, ser possuidor de cinco engenhos no termo de Lavras, denominados São Caetano, Bacupari, Canabrava, Limoeiro e Caraíbas, e proprietário, também, dos engenhos Bacupari de Baixo, João Ribeiro, Alagoa do Umari, Calabaço, Fundão, Pimentas, Cachoeira, Alagoa Nova e Olho D’água, sendo os três últimos no termo de Sousa, Província da Paraíba, isto além de imensa quantidade de ouro, de gado vacum e cavalar, de escravos e utensílios de estimação.

“Célebre na história de Lavras da Mangabeira, onde ficou conhecido como Padre Luís do Calabaço”, o sacerdote em apreço “não residia na sede paroquial, porém no sítio Calabaço, de sua propriedade, a pouco mais de uma légua da Vila, em sobrado construído próximo à confluência do Córrego da Ema com o Riacho do Rosário – margem esquerda. Viveu, maritalmente, com Maria Joaquina do Espírito Santo, vulgo Marica, havendo dessa união cinco filhos”.

E ainda com relação ao Padre Luís Antônio, prossegue o historiador Joaryvar Macedo: “Em face sobretudo da mancebia em que viveu, o Pe. Luís do Calabaço tornou-se figura lendária, e mal-assombrado se considera o trecho do sítio onde residia, no qual, segundo a crendice popular, aparecem visões, fantasmas e almas do outro mundo. A seu respeito, conta-se, por exemplo, que a urna funerária, em que foi conduzido do Calabaço a Lavras, ia acompanhada de gatos pretos, e urubus que a sobrevoavam, até chegar à Matriz de São Vicente Ferrer. Desta ao cemitério, ia acompanhada de garças. Depois, sendo exumado para transferir-se ao jazigo que lhe foi construído, constatou-se que do corpo do Padre não se haviam corrompido a tonsura e as extremidades dos quatros dedos que tocavam a hóstia”.

E depois de nos contar essas lições curiosas da história, Joaryvar nos leva a viajar pelos autos do processo-crime em que se envolveu o Padre Joaquim Machado da Silva, revelando-nos, através do seu vibrante relato, um dos acontecimentos mais célebres e que mais repercutiram na Província do Ceará.

E ao lado desses registros, vai aflorando o cotidiano da antiga Vila de São Vicente das Lavras, de par com o revigoramento dos seus mais expressivos personagens, no rol dos quais, por ser de justiça, permito-me destacar os nomes de Joaquim de Figueiredo Arnaud, Jerônimo de Sousa Nogueira, Vitorino Gomes Leitão, Francisco Xavier Ângelo Sobreira, João Carlos Augusto, José Joaquim Xavier Sobreira, Fideralina Augusto Lima, Alexandre Francisco Cerbelon Verdeixa, José Joaquim da Silva Brasil, José Tomaz de Aquino, Antônio Francisco de Oliveira Banhos e Miceno Clodoaldo Linhares, figuras em torno das quais gravitaram os mais destacados eventos relativos à evolução da referida Vila.

Com a publicação de São Vicente das Lavras ofereceu-nos Joaryvar Macedo 182 anos de história do município de Lavras da Mangabeira; entretanto, ficou a nos dever a história de todo um centenário que, naquela cidade, em 1984, foi solenemente comemorado. Cem anos de história de Lavras da Mangabeira como cidade, que esperamos sejam revelados o mais breve possível.

Em São Vicente das Lavras, projeta-se um minucioso registro de como se processou a história de Lavras da Mangabeira até 20 de agosto de 1884. Um curioso relato de um historiador competente, de um genealogista fecundo, de um escritor que, beneditinamente, sempre soube resgatar a memória das nossas mais expressivas tradições.

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