quinta-feira, 26 de setembro de 2019

A Festa de Linguagem Viva

             Dimas Macedo         
                          
                                        
                                        
          Quando Linguagem Viva passou a circular, a literatura brasileira ganhou uma tribuna de honra, eficiente e comunicativa. Pilotado por Adriano Nogueira e Rosani Abou Adal, o jornal tornou-se uma ferramenta incomum enquanto veículo de divulgação dos nossos escritores.

         Rosani, desde 2004, dirige sozinha essa conhecida nave literária, mas o time que a acompanha não arrefeceu. Turbinou suas asas e as suas letras, e o que se vê é uma imensa pista percorrida.

          Linguagem Viva não brinca em serviço, e hoje já pode olhar para trás, contrariando uma sentença antiga, vendo que trinta anos foram decorridos, plenos de trabalho e determinação.

          Ganhamos todos nós, é claro, e eu posso me orgulhar de ter apoiado o projeto desde o ponto de partida, por ser amigo de Caio Porfírio Carneiro e de Rosani, alma e rosto da nossa política literária.

          Caio, grande Caio; Rosani, grande Rosani, esteios de Linguagem Viva, da UBE e dos escritores que teimam com a resistência e com a palavra, com o imaginário e com a produção cultural do Brasil.

           A festa dos trinta anos de Linguagem Viva me fez voar até São Paulo para ouvir a voz de Rosani, de Geraldo Pereira, de Cláudio Feldmann e de Fernando Jorge em defesa desse grande projeto, e para lamentar a partida de Caio, Adriano Nogueira e Aluysio de Mendonça Sampaio.

           No auditório Vladimir Herzog, do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, Linguagem Viva debutou como balzaquiano, rufou seus tambores e nos garantiu que irá em frente, lépido e fagueiro, assim como um pássaro emplumado que voa pelas cordilheiras.

            O que vi e ouvi em Sampa, acerca da sobrevida de Linguagem Viva, deixou-me a certeza de que o jornal vai continuar caminhando, aplainando vales e subindo montanhas, contra a tempestade e o sopro do vento.

           Creio que não seremos menos, pois se não formos mais, ficaremos sempre no platô, guardando o projeto que Rosani levantou e que sustém em suas mãos, sob os olhares de Luís Avelima e de outros expressivos intelectuais.

            Paulo Veiga, Henrique L. Alves e Jorge Medauar não puderam comparecer ao evento, mas ali os seus espíritos pairavam e me faziam pensar em Nelly Novaes Coelho e Costa Sena, com quem eu palmilhava, na década de noventa, o centro de São Paulo, entre fervores musicais e lembranças do nosso querido Ceará.

            Na festa de Linguagem Viva senti as ausências de Nicodemos Sena, Fábio Lucas, Dalila Teles Veras e Flora Figueiredo, seres que gostaria de abraçar, em homenagem ao verbo de Antônio Cândido, Paulo Bonfim e Mário de Andrade, paulistas da gema, e da clara grandeza da alma paulistana.

            Brás, Bexiga e Barra Funda, de Antônio de Alcântara Machado, a Pauliceia Desvairada, de Mario de Andrade, os nichos culturais e todos os achados artísticos que brotam das ruas de São Paulo se fundem em mim quando penso em homenagear Linguagem Viva nos seus trinta anos.

            Não fico por aqui apenas porque estou encerrando este texto; fico porque quero voar ainda mais, nas asas e nas letras de Linguagem Viva. E porque São Paulo é o território onde floresce essa tribuna da vida literária.
                                                                                              São Paulo, 21/092019

sábado, 14 de setembro de 2019

Machado de Assis - Carta a Eduardo Luz


      Dimas Macedo




         Eduardo Luz,

        Durante três noites, estando em viagem pelo Continente, li o seu livro sobre os mistérios de Helena, a filha adotiva de Machado de Assis e o princípio de sua transgressão incestuosa.

         Li cada uma das partes em cidades diferentes, obedecendo à minha intuição. Na primeira noite, a leitura fluiu com os vinhos de Mendoza; na segunda, a travessia mais longa, acendi a calefação do meu apartamento; na terceira, concluí a leitura a passos de um tango.

         Dia seguinte, desfilando pela Rua Florida, encontrei dois autores que muito admiro. Inesperadamente, Rayuela e Dom Casmurro estavam lado a lado na vitrine de uma livraria. Feliz coincidência, pensei. Mas veio-me à lembrança que Cortázar tinha sido citado no último segmento do seu texto.

        Somente aí fechei a leitura do seu livro sobre a tragédia de Helena, a mãe de todas as mulheres de Machado de Assis, entre as quais, incluo as raízes de Iaiá Garcia e a santidade de sua musa Carolina.

        Já no segundo instante da minha caminhada, um rio abriu-se em minha alma e senti que Helena já não estava comigo. Eu esquecera o seu livro na Casa de Vitória Ocampo, que visitei no dia anterior.

         Tomei, então, a esquerda do restaurante La Cabrera, e eis o que deparo na terceira esquina: a Plazoleta Cortázar e sua duvidosa triangulação, feita de forma a abraçar a Calle Luis Borges, o dono do bairro de Palermo.

         Na mimosa Livraria Borges, encontrei-me com o Quincas Borba, e um cão labrador passou a me seguir os passos. Saí do meu isolamento e lembrei que o autor de Ficções tinha o hábito de ali se recolher em silêncio quase absoluto.

         O cânon de Machado de Assis já não será o mesmo depois da sua pesquisa: arguta, grega, intensa, sutil e refinada. Quem escreve assim, o faz para a posteridade e para a riqueza da língua.

          O Livro Que Não Foi Lido: Helena, de Machado de Assis, bem que merecia um parêntese, quem sabe, um colchete ou uma chave. A clave que usei não abriu todas as portas do seu livro, pois o seu trabalho revela não somente um enigma, mas uma pedra angular com gosto de cabala.

          Virgília é Virgília, e Capitu tem apenas os olhos de ressaca. Não possuía um escorpião no desejo, assim como Helena, nem a santidade que cuidava dos olhos de Machado, o mais doente de todos os escritores brasileiros e o menos lunático.

           A pilhagem da tragédia grega, levada a cabo por Machado de Assis, ao sabor da sua leitura fervorosa, é verosímil e oferece pano para as mangas.

           Não sei onde ficou em mim a primeira e única leitura de Helena. Preparava-me para um vestibular em 1977 (dividindo-se aqui vinte e quatro por três), quando me ocorreu o encontro. Fiquei embaraçado e não compreendi, mas Helena ficou em meu juízo, teimando com a razão e com o ócio. Agora, quarenta e dois anos depois, vejo que a metade do período, quando dividida por três, aponta para o número mais conhecido da Cabala.

         Dois mil e dezenove também se permite um bloco de imagens que redunda em um signo, e a imposição que me chega leva-me a supor que tenho que ler Helena duas vezes ainda este ano. Espero que Machado de Assis permita e que você entenda o significado do meu gesto.

         Antes, contudo, de abrir o seu livro, li, sem querer, Casa Velha, mas Helena, o romance, não quis abrir suas portas, como eu esperava.

          Melchior, um cretino; Helena, uma calculista; Estácio, quase nada; e o Conselheiro Aires, o mesmo Conselheiro Vale na maturidade.

          Um impostor, Machado de Assis, assim como aquele agrimensor que não consegue alcançar o Castelo que foi edificado para nunca ser acessado. Kafka, enquanto leitor de Machado, viu que os grandes enigmas da alma nunca serão atingidos, porque são Castelos do Mundo Interior, ainda que a sua quantidade seja sete, nas lições da maior Doutora da Igreja.

           Nesse sentido, Eduardo, seu livro é apenas uma hipótese e quase não é nada, diante da grandeza de um velho bruxo, mas a sua pesquisa se impõe, porque, indiscutivelmente, é muito original, enquanto trabalho acadêmico e Manual de Bruxaria.

            Ler Machado de Assis é mergulhar no abismo. Não compreender a sua criação é chamá-la de obra romanesca. Esse escritor não é anjo, mas demônio, que vestiu, desde cedo, alma feminina, e que não poupou nem o Conselheiro Aires, às portas do seu falecimento. Vejam-se aí suas mulheres, e veremos que o velho diplomata não existe.

            Machado de Assis não é apenas um mágico, mas uma voz que perpassa toda cultura literária, a clássica e a moderna.

             Donde Shakespeare, Dante, Goethe, Virgínia Woolf ou Tolstoi, somando-se a esse grupo mais quatro escritores, Machado de Assis está entre eles, trazendo para si o segredo que envolve a arte da palavra.

              Não fosse o seu livro tão enigmático e tão afetuoso, eu não teria ganhado o tempo precioso de escrever esta carta.
                                    
                                                                        Entre Buenos Aires e São Paulo, em 28/08/2019

Clauder Arcanjo - Mulheres de Licânia



          Dimas Macedo


                   As mulheres cortam como se fossem lâminas, cosem a nossa língua e dissecam a nossa substância. Depois, se olham no espelho e modulam a sua tirania, como se os homens não pudessem sequer respirar. Homens? Para que homens, se todas as mulheres são fantásticas, desde o nascedouro, ainda no ventre da baleia?

          Três escritores que conheço, na seara do conto, fizeram das mulheres seres ainda mais admirados, com pinceladas de drama e de suspense que as levaram para muito além da ficção. Falo de Ronaldo Correia de Brito, com o seu livro Faca, Eduardo Galeano, com o aliciante Mulheres, e Juliana Diniz, com O Instante-Quase.

          Licânia é uma cidade mítica cearense, revelada pela pena de Clauder Arcanjo e onde cabe quase tudo: o argumento literário, as máscaras que revestem as suas personagens, os tipos populares que escorregam pelos seus becos e travessas e que desfilam como atores no meio da sua gentalha, esgueirando-se pelos púlpitos e palanques da comunidade.

          Licânia é uma poderosa força magnética, um idioma que se movimenta e reconstrói o seu vocabulário. É também o título do livro de estreia de Clauder Arcanjo, misto de editor e escritor, misto de contista e cronista, porque nestes gêneros ele melhor se revela na arte de tecer o fio das palavras.

          Clauder Arcanjo é um romancista ousado, um pensador maduro, um novelista que se diverte com os seus leitores, um poeta na escultura das formas com que elabora a cosmogonia de suas crônicas.

         Um Sarau das Letras compõe a sua sinfonia, na qual se acresce a nobreza do diálogo. Faz literatura com esmero e com a medida dos iniciados. Sabe tecer o texto com a letra, e com a letra ele refaz o seu discurso.

         Gostaria de aqui rememorar o seu livro de poemas, Novelário de Espinhos, e a sua habilidade para estruturar o romance picaresco, gênero no qual se destaca o seu astucioso Cambono. Mas ele me pede que neste prefácio eu fique apenas com as suas Mulheres Fantásticas e com os desenhos de Raisa Christina que se juntam ao tecido das imagens fabuladas.

         Pede-me o Clauder Arcanjo que eu esqueça aquilo que escrevi acerca do seu livro de contos, que ele intitulou Separação, e que eu me aventure pelas estórias deste seu breviário de causos, referto de mulheres-tipos ou de mulheres-topoi, como queriam os gregos e como queremos nós, seus leitores mais ávidos.

          Creio que Clauder Arcanjo prescinde de apresentação, de prefácios, e que todas as suas obras deveriam ficar sem orelhas, porque em tudo que escreve, reluz uma escritura polifônica e os achados estilísticos que remarcam a sua narrativa.

        Transformar pessoas simples de um povoado em uma grande expressão literária, como fizeram García Márquez e Juan Carlos Onetti, e como podemos constatar neste livro de Clauder, é fazer da partitura do texto o elemento da sua substância.

          Clauder sabe que a literatura é um ato de transformação e que a ficção por ele praticada é feita com o sangue das palavras e com o arquétipo das suas personagens. Trata-se, no caso, de um escritor talentoso, que conhece os segredos e o engenho da arte literária.

         A oficina que fiz com a obra do autor, no último carnaval, levou-me a ler duas das suas publicações que eu não conhecia, especialmente, o seu genial inventário de crônicas Uma Garça no Asfalto, obra-prima no gênero, na literatura de Língua Portuguesa.

         A estes livros de Clauder, eu acrescento a ficção que se contém em Lápis nas Veias, de 2009, obra de arte literária na qual condensou a síntese das suas preocupações estilísticas e das suas tiradas imagéticas, enriquecidas pelas fotos de Pacífico Medeiros.  
      
         Nas páginas de abertura deste volume, não vou revelar seus mistérios, nem os seus enredos, nem dizer que ele merece ser lido, porque sei que o impacto da sua edição será a báscula do desejo que irá atrair os seus leitores.

         Mesmo tratando-se de histórias ficcionais, Mulheres Fantásticas também pode ser lido como uma reunião de crônicas e memórias, como fragmentos daquilo que se pode fazer com a magia das mulheres e com a aura de suas fantasias.

          As Mulheres de Licânia, desveladas pelo autor deste livro, causam-nos a impressão de que vivem em território mítico, resguardado por um contexto cênico que prima pela densidade das formas e pelos recursos da dialogia.

           Para a Literatura, a mulher e os seus arquétipos são fontes de inspiração que nunca se esgotam, especialmente, quando concertadas por um escritor de talento, como é o caso do artífice deste livro. 

          Mulheres Fantásticas (Mossoró: Sarau das Letras / Fortaleza: Edições Poetaria, 2019) compreende um conjunto literário de maior alcance, onde a atmosfera dos enredos se confunde com suas personagens, e onde os figurinos entoam para os ventos uma canção de gesta.

                                                                                             Fortaleza, 06 de fevereiro de 2019

Arte - Da Estética e Outras Questões


       
         Dimas Macedo     


         As manifestações artísticas e naturais constituem um conjunto de signos que nos ajudam a entender porque estamos no mundo, e qual o significado que a obra de arte representa, e porque a sua fruição é tão essencial para as nossas relações com o ser e o devir.

            A Filosofia parece ser a mãe de todas as artes, e as expressões da arte sempre estão a sugerir perguntas que não se unificam em torno de um fim. Uma das funções da Arte é estimular percepções e criar um novo sistema de linguagens, ou exercer a faculdade, que lhe é inerente, de formular uma paródia para a existência.

             A Beleza, assim como a Ética, requer um pensamento filosófico que possa justificar a sua procedência, levando-nos às categorias da Estética para a compreensão desse imperativo, sobre o qual versaram filósofos tão dispares quanto Platão e São Tomás de Aquino, e especialmente, Kant e Friedrich Hegel, na modernidade.

             As questões estéticas são questões filosóficas, e requerem, de quem as enfrenta, uma reflexão e um ponto de partida que estejam ancorados na dúvida e na diversidade, e no confronto da mente com a Dialética, a primeira entre todas as formas de conhecimento.

              O livro de Alder Teixeira e Carolina Araújo, Arte: Da Estética e Outras Questões (Mossoró: Sarau das Letras, 2019), dispensa qualquer forma de apresentação, em face do discurso maiêutico no qual o seu texto se desdobra, abrindo-se para os seus leitores desde os seus matizes e os seus argumentos, aí enfrentando os autores assuntos da maior relevância para o estudo da Arte e dos seus potenciais fenomenológicos.

             A exposição dialógica da Estética e da Filosofia que a compreende, no caso, a Filosofia da Arte, não é recurso usado com frequência por filósofos modernos. Pertence ao jeito de explicar inerente aos antigos, sendo, assim, de grande utilidade, a forma escolhida pelos autores para veicular as teses que professam, e que são instigantes.

           O que é Arte? O que são os estilos de época? O que a Arte significava na antiguidade e o que ela significa em termos de consumo? As artes possuem um valor? Os pães e o circo seriam, efetivamente, aquilo que parecem, se a Arte não os tivesse transformado? Eis algumas perguntas que o leitor pode inferir da leitura atenta deste livro.

           O convite que recebi de Alder Teixeira para fazer a abertura do volume, honra-me sobremodo. A ele, intelectual exemplar e amigo querido, junta-se a inteligência de Carolina Araújo, arquiteta e poetisa do more filosófico que se colhe na troca de ideias.

           Os autores hão de perdoar, com certeza, o alongamento deste texto que fiz contra a minha previsão. Alder me pediu um comentário, mas creio que me excedi, na medida em que os prazeres do texto se foram relevando, e tornando o ensaio ainda mais provocante.

            Antes de iniciar sua leitura, pensei que o texto trabalhado pelos autores fosse daqueles que clamam por uma explicação, acerca da sua natureza. Enganei-me, pois se trata de uma obra aberta, que exige de quem a desvela, sensibilidade, e olhos para ver aquilo que os discursos anulam nas sociedades de intenso consumo.

           Após a leitura, as minhas indagações, dúvidas e interrogações ficaram ainda mais acesas. E tudo isso para mim é um regalo, e regalo maior será para aqueles que vierem a se acercar deste livro, de onde brotam uma rosa vermelha e um ramalhete, uma experiência de vida e um fervor filosófico para a Esperança.