terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Raimundo Bezerra Falcão

        Dimas Macedo
  
                                                                                                                                              
                                                                                               Livro por mim organizado em 2004,
                                                                                                em homenagem ao Prof. Falcão.


               A reflexão e a pesquisa filosóficas no Ceará, que se afirmam com Rocha Lima e com os fulgores da Academia Francesa, encontram em Farias Brito o seu ponto culminante e as suas linhas de continuação.

             No século precedente, os vulcões da filosofia foram reacendidos, entre nós, por Djacir Menezes e Alcântara Nogueira, que tiveram grande projeção em todo o Brasil, como defensores, respectivamente, do culturalismo e do panteísmo de forte desenho filosófico.

            Paulo Bonavides, Arnaldo Vasconcelos e João Alfredo Montenegro são os continuadores, na atualidade, dessa tradição a que se vinculam outros importantes filósofos e pensadores do Direito, do Humanismo e da Pós-Modernidade, tais os casos de Manfredo de Oliveira Araújo e Oscar d’Alva e Souza Filho.

             Raimundo Bezerra Falcão pertence a essa linhagem de homens de pensamento e de ação, que fizeram e ainda fazem da pesquisa filosófica a expressão fundadora da verdade e da libertação das consciências.

            Nome tutelar da hermenêutica jurídica brasileira e da teoria constitucional e econômica, Raimundo Bezerra Falcão dispensa elogios de qualquer espécie, porque a plenitude das coisas já o fez assim dotado da compaixão e da bondade, e de amor ao ideário da cultua clássica.

             A sua reflexão filosófica e o seu jeito socrático de conviver com os seus alunos e discípulos, em todas as casas de cultura onde foi professor, já nos deram testemunhos do quanto o seu exemplo e a sua produção acadêmica são benfazejos e vitais.

              Mestre em Direito e Livre-Docente em Filosofia do Direito, Raimundo Bezerra Falcão é professor de Hermenêutica Jurídica e Direito Econômico Filosofia do Direito em vários cursos de graduação e pós-graduação, contando-se entre eles os Mestrados em Direito das seguintes instituições: Universidade de Federal do Ceará, Universidade Tiradentes (de Aracaju), Universidade Potiguar (de Natal), Universidade de Fortaleza (Unifor), Universidade Federal do Amazonas e Universidade Federal do Pará. 

             Ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção do Ceará, e ex-coordenador do Mestrado em Direito da UFC, o professor Raimundo Bezerra Falcão é sócio do Instituto dos Advogados Brasileiros, do Instituto Brasileiro de Filosofia e do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, integrando a Academia Cearense de Retórica e a Academia de Ciências Sociais do Ceará. 

              Participou de várias comissões científicas e culturais e foi assessor e/ou procurador jurídico de outras tantas instituições, a exemplo do Banco do Nordeste do Brasil, da Assembleia Nacional Constituinte e da Comissão de Direitos Sociais do Conselho Federal da OAB, cuja presidência, aliás, lhe foi destinada. 

              A sua bibliografia é composta dos livros: Tributação e Mudança Social (Rio: Forense, 1981), Noções Básicas de Direito (4 vols., Fortaleza, Edições BNB, 1985), O Direito Aplicado às Operações Bancárias (4 vols. Fortaleza: Edições BNB, 1986), Hermenêutica (São Paulo: Malheiros, 1997), O Direito na Empresa (Fortaleza: Inova, 1999), Palavras Para os Que Ainda as Ouvem (Fortaleza: Imprensa Universitária, 1999), Ensaios Acerca do Pensamento Jurídico (São Paulo: Malheiros, 2009), Direito Econômico – Teoria Fundamental (São Paulo: Malheiros, 2013), Curso de Filosofia do Direito (São Paulo: Malheiros, 2014). Meditações de Ética Moral (São Paulo: Malheiros, 2016) e Filosofia da Transcendência, do Universo e da Cultura, este último inédito.

           Neste texto, contudo, o que quero destacar é importância de um  projeto de pesquisa realizado em homenagem a Raimundo Bezerra Falcão e que se acha condensado no livro Teoria e Filosofia do Direito (Fortaleza: Premius, 2014) –, coordenado pelo professor Flávio Gonçalves.

             Na sua elaboração, feita de forma coletiva, no âmbito da Faculdade de Direito da UFC, buscaram os seus autores demarcar as linhas de pesquisa desse grande jurista cearense, no caso: a Hermenêutica Jurídica e a Teoria e Filosofia do Direito, entre outros assuntos da maior relevância.

             O livro constitui um mosaico de assuntos que se querem também uma abordagem da crise jurídica dos dias de hoje. Com efeito, empregando rigorosa metodologia e selecionando temáticas filosóficas de grande interesse acadêmico, os autores procuraram destacar o significado cultural, jurídico e hermenêutico que vem inquietando a teoria do direito nas últimas décadas. 

            Sou grato a Deus, em primeiro lugar, pela escolha do meu nome para a apresentação desse projeto de pesquisa, partilhando comigo os seus autores os frutos do seu belo trabalho ainda em tempo de colheita, os quais me pareceram, de plano, ungidos de graça e de leveza.

             E para concluir, faço minhas as palavras da professora Denise Lucena Cavalcante, minha colega de Departamento, que já nos idos de 2004, quando organizei o primeiro conjunto de estudos em homenagem a esse ilustre filósofo cearense, afirmou:

           “O Professor Raimundo Bezerra Falcão, além de exemplo de dedicação ao magistério e à pesquisa jurídica, tem o dom de abrigar, em sua personalidade, a mansidão com a presteza, a eloquência com a harmonia, a firmeza com a suavidade, prevalecendo, assim, na sua grandeza intelectual, a humildade do seu ser”.




domingo, 23 de janeiro de 2011

O Pensamento de Paulo Bonavides

              Dimas Macedo


              A obra política de Paulo Bonavides constitui uma das mais extensas fontes de pesquisa e produção acadêmica do pensamento filosófico da segunda metade do século precedente, projetando-se no campo da cultura brasileira e alcançando ressonância internacional, mercê da originalidade, da erudição e do vigor analítico com que o autor ilumina a sua postura discursiva.

           Considerado, na atualidade, o nosso mais respeitado e profícuo germanista, esse grande cientista político e figura de prol do Direito Constitucional no Brasil, é possuidor de uma cultura humanística invejável, dissimulada na humildade e na simplicidade da sua elegância afetuosa, traços da sua personalidade de mestre e de esteta, de sábio e de jurista que conhece os muitos saberes da reflexão e do pensamento sistematizado.

           O seu imenso e diversificado curriculum de scholar demonstra, à saciedade, a dimensão do seu labor acadêmico, quer no setor específico da Ciência Política, quer na área do Direito Constitucional ou da Filosofia do Direito, quer no campo da sua convivência com os saberes universitários.

           O conhecido constitucionalista espanhol, Pablo Lucas Verdú, sempre o teve na conta de “maestro de los maestros”, sendo Paulo Bonavides estimado, em terras de Camões e Cervantes, como o maior constitucionalista da Língua Portuguesa, destacando-se a sua reputação de cientista do Estado em toda a América Latina.

           Nasceu em Patos (PB), aos 10 de maio de 1925, mas no seu registro civil consta que ele veio ao mundo em 1923, por necessidade de entrar no mercado de trabalho para prover o sustento da família, após o falecimento do seu pai, tendo a mãe e os filhos menores se transferido para Fortaleza.

            Foram seus pais Fenelon Fernandes Bonavides e Hermínia Fernandes Bonavides. Casou-se com a sua conterrânea Yeda Sátyro Bonavides, havendo, dessa união, os seguintes filhos: Paulo, Márcio, Clóvis, Vera, Gláucia, Doralice e Marília. 

           Concluiu o Curso de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, em 1948, depois de exitosa passagem pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, tornando-se, em seguida, Lente de Filologia Românica da Universidade de Heidelberg, nos anos letivos de 1952 e 1953.

            Com a pesquisa intitulada Dos Fins do Estado, fez-se Professor Assistente da Universidade Federal do Ceará, em 1955; e, em 1958, vitorioso em memorável concurso, conquistou os títulos de Doutor e Professor Catedrático, com a tese de Livre Docência, Do Estado Liberal ao Estado Social, que o projetou no plano nacional e que o fez reconhecido como um dos maiores filósofos do Estado da retomada do jusnaturalismo.

             Considerado por Oswaldo Trigueiro como “um dos precursores da ciência política em nosso país”, o Professor Bonavides foi, a rigor, o fundador, entre nós, da referida disciplina, especialmente, em face do que se pode observar diante da análise e da expressão metodológica que o autor fez aflorar na sua Ciência Política (Rio: Fundação Getúlio Vargas, 1967), ainda hoje o mais requisitado e completo manual de teoria política que se publicou entre nós.

              Também de 1967 é a sua Teoria do Estado, divulgada, inicialmente, pela Editora Saraiva, de São Paulo, e hoje já em sua décima primeira edição. Trata-se, não propriamente, de um Curso acerca da anatomia das instituições estatais, mas de um questionamento sobre o papel do Estado e a transformação dos poderes institucionais, tendo-se presentes o jusnaturalismo e a afirmação do Estado Social.

           A crise institucional brasileira passa a ocupar as suas reflexões a partir da segunda metade da década de 1960, sendo de 1969 a edição de A Crise Política Brasileira (Rio: Editora Forense). Afonso Arinos de Mello Franco, no prefácio do livro, deixou consignado que “Sem se engajar em posições militantes, o professor Bonavides revela, no entanto, orientação coerente, no plano histórico-social, o que é necessário na formação do cultor das Ciências Sociais, nas quais o abstracionismo puro eliminaria fator indispensável ao processo científico, que é, precisamente, a realidade social na sua opcional mutabilidade”.

          Nas décadas de 1970 e 1980 achava-se Paulo Bonavides envolvido com a Teoria da Constituição, com a crise da Democracia e do Poder Constituinte e com os fundamentos do federalismo de regiões, tendo em vista, essencialmente, a problemática da questão nordestina. Um Projeto de Constituição Para o Brasil encontrava-se, então, no centro de suas atenções.

          Paulo Bonavides nunca se afastou da luta pela afirmação do Estado Social, como pode, aliás, ser observado nos seus livros: Reflexões – Política e Direito (1973), Direito Constitucional (1980), Política e Constituição (1985) e Constituinte e Constituição (1986).

          Num momento de extrema dificuldade para a democracia e a soberania popular, assumiu a liderança de um grupo de constitucionalistas democratas que fundou o Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, instituição da qual foi o primeiro dirigente, no período de 1979 a 1987, tendo sido aclamado seu Presidente Emérito em 1988, em virtude de “relevantes serviços prestados a esta entidade, no cumprimento dos seus mandatos presidenciais”.

           Ao Professor Bonavides foram conferidas várias honrarias, entre elas, a Medalha Rui Barbosa do Conselho Federal da OAB, a Medalha Teixeira de Freitas do Instituto dos Advogados Brasileiros, o Grande-Colar do Mérito do Tribunal de Contas da União, a Medalha da Abolição do governo cearense e a Medalha Clóvis Beviláqua do Tribunal de Justiça do Ceará. 
        
            No campo internacional, teve desempenho docente destacado nas universidades de Heidelberg (1952/1953) e Colônia (1982), na Alemanha; Tennessee/Knoxville (1984), nos Estados Unidos; e Universidade de Lisboa (1989), sendo Doutor Honoris Causa desta última instituição. Possui os títulos de Professor Distinguido da Universidade San Marcos, sediada em Lima, no Peru, Professor Emérito da UFC e professor convidado de outros circuitos acadêmicos.

          Destaca-se, igualmente, como Doutor Honoris Causa da Universidade Inca Garcilaço de La Vega (situada em Lima, no Peru) e das seguintes instituições: Universidade de Fortaleza, Universidade Metropolitana de Santos, Universidade de Buenos Aires, Universidade de Córdoba (Argentina), Universidade Regional do Cariri e Universidade Federal do Rio de Janeiro.

           É sócio de várias instituições nacionais e estrangeiras, citando-se, dentre elas, as seguintes: Association Internacionale de Science Politique (França), Internationale Vereinigung Für Rechts – und Sozial Philosophie e Academia de Ciência da Renânia do Norte-Westfália (Alemanha), The American Society For Political and Legal Philosophy e American Foreign Law Association (Estados Unidos), Instituto Iberoamericano de Derecho Constitucional (México) e Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

          Fundador e diretor da Revista Filosófica do Nordeste (1962) e integrante do Comitê de Iniciativa que fundou, em 1981, em Belgrado, Iugoslávia, a Associação Internacional de Direito Constitucional, o Professor Bonavides foi, igualmente, presidente do Instituto Brasileiro de Filosofia – Secção do Ceará e Consultor Ad hoc do CNPq.

           Dentre as revistas com as quais colaborou, enumeram-se aquelas intituladas: Revista de Ciência Política e de Direito Administrativo, da Fundação Getúlio Vargas; Revista de Direito Público, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; Revista Forense (Rio de Janeiro); Revista de Informação Legislativa, do Senado Federal; Revista de Direito Constitucional (São Paulo); Revista Nomos, do Curso de Mestrado em Direito da UFC; Revista Del Instituto de Ciências Sociales (Barcelona); e Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, sendo  fundador e diretor deste último periódico.

          Seu Curso de Direito Constitucional, editado em 1993, encontra-se na 34ª edição. Representa obra de vulto e constitui uma nova etapa, metodologicamente transformadora, no seio do Direito Constitucional brasileiro, uma vez que consagra temas nunca dantes explorados entre nós, tais como a teoria das normas e princípios constitucionais, a força normativa da Constituição, o Sistema Constitucional, a Hermenêutica da Constituição e a formulação dos conceitos de Tópica, enquanto Teoria do Direito, e de Constituição, no sentido material.

           A este livro seminal de Paulo Bonavides, juntam-se Do País Constitucional ao País Neocolonial – A Derrubada da Constituição e Recolonização pelo Golpe de Estado Institucional (1999) e Teoria Constitucional da Democracia Participativa (2001), o que constitui, para o autor, uma trilogia voltada para um Direito Constitucional de Lutas e de Resistência, vertente do pensamento político da qual, no Brasil, ele é o teórico mais conhecido.

         Trata-se de um Direito Constitucional de formulação material, sintonizado com as manifestações periféricas e tributário do Estado Constitucional Cooperativo, Comunitário, Regionalista e de franca oposição ao Estado Liberal do Capitalismo financeiro e globalizado, de que são exemplos a União Europeia e os Estados Unidos da América.

          O teórico do Direito, em Paulo Bonavides, encontra-se disseminado em toda a sua obra. E faz-se altissonante, especialmente, quando ele se revela diante da sua visão de cientista e de sociólogo do Direito, ou ainda quando disserta sobre temas como o conceito material da Constituição, a despolitização da legitimidade, a teoria dos princípios jurídicos, dos Direitos Fundamentais ou do sistema constitucional.

           Na obra política e jurídica de Paulo Bonavides existem livros que ele próprio e os seus editores costumam não arrolar em suas informações, como é o caso de O Tempo e os Homens (1952, 3ª ed.: 2003), Normas Jurídicas e Análise Lógica – Correspondência Kelsen-Klug (1984) e Demócrito Rocha – Uma Vocação Para a Liberdade (1988, 3ª ed.: 2010).

          Como pesquisador da obra bonavideana, não entendo porque um livro como Normas Jurídicas e Análise Lógica não tenha sido reeditado desde a sua primeira versão, em 1984. Aí Paulo Bonavides se destaca como tradutor do alemão para o vernáculo e surpreende, inclusive, os seus maiores admiradores.

          Parecem seminais, na produção teórica de Bonavides: a singularidade da sua reflexão, o alcance do seu pensamento filosófico e a abrangência e universalidade das suas linhas de pesquisa, o que faz dele um filósofo e pensador de grande erudição.

            Sei que cinco livros, pelo menos, já foram organizados em homenagem a Paulo Bonavides. Nenhum deles, que eu saiba, se preocupou em abordar os lineamentos dos seus escritos acadêmicos, nem a contribuição da sua obra de constitucionalista ou filósofo do direito.

           O meu livro: Estado de Direito e Constituição – O Pensamento de Paulo Bonavides (São Paulo, Editora Malheiros, 2010), de corte assumidamente propedêutico, não é uma monografia ou projeto de pesquisa de viés acadêmico. E não constitui um panorama didático sobre a exposição da sua doutrina de jurista. Constitui antes um conjunto de reflexões sobre aspectos singulares da sua produção, feito talvez com o rigor da síntese que sempre orientou o meu trabalho de jurista.

           Além dos ensaios por mim desenvolvidos, acostei, ao termo do projeto, uma dezena de escritos sobre a vida e a obra de Paulo Bonavides. Textos que descobri, em maiores esforços, pulverizados em diversas fontes. Não reuni tudo o que encontrei e não me debrucei sobre os arquivos do grande jurista e constitucionalista cearense.

           Não se trata de um livro para louvar a minha trajetória, mas para registrar a minha admiração pelo Mestre Paulo Bonavides, de quem me orgulho de ter sido aluno e a quem agradeço a generosidade, a atenção, acolhida e a amizade que nunca me faltaram.




segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

A Propriedade e Sua Função Social

             Dimas Macedo

                                                                             Vando Figueiredo

              Erigida em preceito constitucional pelo art. 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal, a função social da propriedade deve ser entendida como a utilização da propriedade privada em benefício do bem-estar social, sem que isto venha a caracterizar a coletivização da propriedade.

           Aliás, foi Léon Duguit quem advertiu que o princípio da função social da propriedade não quer significar que ela “esteja se convertendo em coletiva, mas sim que estamos deixando de concebê-la em termos de direito privado, passando a aceitá-la em termos de função social”.

          Da mesma forma, a função social da propriedade não deve ser compreendida como estritamente ligada à concepção da propriedade imobiliária. Aliás, a Constituição de 1988 deu à matéria um tratamento jurídico de maior abrangência, vinculando a propriedade e o seu uso ao primado dos Direitos e Garantias Fundamentais, sem desconhecer a sua importância como um dos princípios basilares da atividade constitucional econômica, conforme exsurge do art. 170, inciso III, da Carta Magna Brasileira.

          Toshio Mukai, por sua vez, tratando da intervenção do Estado na atividade econômica e discutindo os limites jurídicos da liberdade de empresa, em Participação do Estado na Atividade Econômica (São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1979), assim se manifestou em torno do assunto: “não nos interessa aqui examinar a propriedade em geral (especialmente a imobiliária), mas sim a propriedade econômica ou produtiva, ou como se costuma dizer, a propriedade dos meios de produção”.

           E acrescenta em seguida Toshio Mukai: “analisar como esta propriedade é concebida pelo estado social de direito, com a inclusão de uma restrição (ou várias) a esse direito, em benefício do bem comum, é buscar a imagem deste princípio próprio e específico da Ordem Econômica e Social das constituições contemporâneas, que é princípio da função social da propriedade”.

            Esta concepção, acreditamos tenha o autor assimilado da afirmação de Roscoe Pound, em Justiça Conforme a Lei (São Paulo, Ibrasa, 1976), no sentido de que “a teoria sócio-econômica mais recente voltou-se para a função social da propriedade no Estado do bem-estar social”.

         No Brasil, entretanto, o tratamento hermenêutico dispensado a esse princípio o tem conduzido para o sentido mais restrito da propriedade imobiliária, tendo em vista certas peculiaridades econômicas e políticas que orientaram a nossa formação.

         E assim, principalmente, quando levamos em conta a substância e a exegese do princípio constitucional e estatutário da reforma agrária e a disciplina jurídica que gravita ao redor do uso do solo, aí incluídas as desapropriações para fins de reforma urbana e a práxis predatória das especulações imobiliárias.

          O certo é que a prática da função social da propriedade vem sofrendo restrições as mais diversas, no Brasil, em face, sobretudo, de um capitalismo desenfreado e avassalador, produto de um liberalismo econômico que escraviza e tortura, que manipula a máquina do Estado e que a submete aos valores da globalização.

          Se a propriedade entre nós tivesse sido estruturada como a concebeu um jurista pátrio, encarada como um instrumento de produção e distribuição equitativa de riquezas, não acarretaria o seu uso consequências tão danosas aos direitos dos indivíduos mais desafortunados.

         Numa ordem econômica capitalista, a liberdade de iniciativa individual há de ganhar terreno, porém tendo essa ordem econômica uma função social erigida em preceito constitucional, cabe ao poder público intervir nessa ordem, distribuindo a justiça social, para realizar a social democracia. Caso contrário, temos uma democracia liberal, apanágio do totalitarismo econômico e político.

         Já no tocante à propriedade imobiliária, que também nos interessa de perto examinar, a política de uso do solo, especialmente de uso do solo urbano e do solo urbano criado, queremos nós seja a que mais atenção venha a despertar por parte dos responsáveis pela atividade normativa e fiscalizadora do Estado, mormente quando atravessamos uma quadra em que a reforma urbana se propõe como o maior de todos os desafios das aglomerações metropolitanas.

         Essa política a que me refiro, caracterizada basicamente pelos imperativos da reforma agrária e pelo uso da terra e dos recursos que lhe são afetos, no que concerne ao meio ambiente rural; e vista pelo prisma da problemática habitacional e dos zoneamentos e loteamentos periféricos, no que se refere à utilização social da propriedade urbana, parece ter sido entre nós relegada a segundo plano, por contrária aos interesses de determinadas camadas da elite governamental e por se constituir obstáculo aos anseios de crescimento da própria elite do poder.

           Assim, para que se venha a confirmar na prática o princípio constitucional da função social da propriedade, sentimos que muito ainda resta a fazer, especialmente nos campos da tributação, da propriedade fundiária e da ocupação dos espaços urbanos.

         Ademais, gostaríamos de chamar a atenção para o desvirtuamento, na cultura jurídica brasileira, da função social da propriedade e dos valores que ela representa, levando-se em conta, fundamentalmente, as limitações práticas do seu exercício e as manipulações ideológicas que no Brasil sempre fizeram do seu uso.

          Em vista, quando assim falamos, temos a advertência de César Barros Leal, em A Função Social da Propriedade (Fortaleza, Imprensa Oficial do Ceará, 1981), no sentido de que em outros países existe maior controle normativo e administrativo da política da função social da propriedade, mostrando-nos onde e como ela exercita-se compulsoriamente, mesmo nos países de regime capitalista.
    
          Enquanto isso, no Brasil ainda assistimos ao triste espetáculo da especulação imobiliária, da espoliação urbana, do latifúndio improdutivo e de uma política habitacional madrasta, contrastantes esses elementos com a realidade econômica e social reinante, filha esta última de um regime constitucional e econômico que tem posto em dúvida a sobrevivência da dignidade humana e os níveis de consciência que a fundamentam.

         E mais: a ortodoxia, a um só tempo centralizadora e maniqueísta, desse modelo de desenvolvimento, tem elevado a patamares inadmissíveis os horrores econômicos que os países ricos transformaram em sacralizações, as quais, especialmente no Brasil e no âmbito das comunidades periféricas, aparecem monitoradas pelo Consenso de Washington e pelo mais nefasto modelo neoliberal que a exploração capitalista inventou.

         Por último, gostaria de registrar que o enfoque da propriedade enquanto função social e produtiva assume um caráter instigante e questionador, levando-nos a recuperar uma visão quase propositadamente esquecida nos descaminhos da nossa democracia social, especialmente quando os valores da nossa democracia social aparecem conjugados com os valores do liberalismo, como se fosse possível revestir com um apelo sempre saudosista o modelo brasileiro de desenvolvimento, que continua, infelizmente, submetido à ditadura econômica e à violação dos Direitos Humanos que ela representa.