segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

A Propriedade e Sua Função Social

             Dimas Macedo

                                                                             Vando Figueiredo

              Erigida em preceito constitucional pelo art. 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal, a função social da propriedade deve ser entendida como a utilização da propriedade privada em benefício do bem-estar social, sem que isto venha a caracterizar a coletivização da propriedade.

           Aliás, foi Léon Duguit quem advertiu que o princípio da função social da propriedade não quer significar que ela “esteja se convertendo em coletiva, mas sim que estamos deixando de concebê-la em termos de direito privado, passando a aceitá-la em termos de função social”.

          Da mesma forma, a função social da propriedade não deve ser compreendida como estritamente ligada à concepção da propriedade imobiliária. Aliás, a Constituição de 1988 deu à matéria um tratamento jurídico de maior abrangência, vinculando a propriedade e o seu uso ao primado dos Direitos e Garantias Fundamentais, sem desconhecer a sua importância como um dos princípios basilares da atividade constitucional econômica, conforme exsurge do art. 170, inciso III, da Carta Magna Brasileira.

          Toshio Mukai, por sua vez, tratando da intervenção do Estado na atividade econômica e discutindo os limites jurídicos da liberdade de empresa, em Participação do Estado na Atividade Econômica (São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1979), assim se manifestou em torno do assunto: “não nos interessa aqui examinar a propriedade em geral (especialmente a imobiliária), mas sim a propriedade econômica ou produtiva, ou como se costuma dizer, a propriedade dos meios de produção”.

           E acrescenta em seguida Toshio Mukai: “analisar como esta propriedade é concebida pelo estado social de direito, com a inclusão de uma restrição (ou várias) a esse direito, em benefício do bem comum, é buscar a imagem deste princípio próprio e específico da Ordem Econômica e Social das constituições contemporâneas, que é princípio da função social da propriedade”.

            Esta concepção, acreditamos tenha o autor assimilado da afirmação de Roscoe Pound, em Justiça Conforme a Lei (São Paulo, Ibrasa, 1976), no sentido de que “a teoria sócio-econômica mais recente voltou-se para a função social da propriedade no Estado do bem-estar social”.

         No Brasil, entretanto, o tratamento hermenêutico dispensado a esse princípio o tem conduzido para o sentido mais restrito da propriedade imobiliária, tendo em vista certas peculiaridades econômicas e políticas que orientaram a nossa formação.

         E assim, principalmente, quando levamos em conta a substância e a exegese do princípio constitucional e estatutário da reforma agrária e a disciplina jurídica que gravita ao redor do uso do solo, aí incluídas as desapropriações para fins de reforma urbana e a práxis predatória das especulações imobiliárias.

          O certo é que a prática da função social da propriedade vem sofrendo restrições as mais diversas, no Brasil, em face, sobretudo, de um capitalismo desenfreado e avassalador, produto de um liberalismo econômico que escraviza e tortura, que manipula a máquina do Estado e que a submete aos valores da globalização.

          Se a propriedade entre nós tivesse sido estruturada como a concebeu um jurista pátrio, encarada como um instrumento de produção e distribuição equitativa de riquezas, não acarretaria o seu uso consequências tão danosas aos direitos dos indivíduos mais desafortunados.

         Numa ordem econômica capitalista, a liberdade de iniciativa individual há de ganhar terreno, porém tendo essa ordem econômica uma função social erigida em preceito constitucional, cabe ao poder público intervir nessa ordem, distribuindo a justiça social, para realizar a social democracia. Caso contrário, temos uma democracia liberal, apanágio do totalitarismo econômico e político.

         Já no tocante à propriedade imobiliária, que também nos interessa de perto examinar, a política de uso do solo, especialmente de uso do solo urbano e do solo urbano criado, queremos nós seja a que mais atenção venha a despertar por parte dos responsáveis pela atividade normativa e fiscalizadora do Estado, mormente quando atravessamos uma quadra em que a reforma urbana se propõe como o maior de todos os desafios das aglomerações metropolitanas.

         Essa política a que me refiro, caracterizada basicamente pelos imperativos da reforma agrária e pelo uso da terra e dos recursos que lhe são afetos, no que concerne ao meio ambiente rural; e vista pelo prisma da problemática habitacional e dos zoneamentos e loteamentos periféricos, no que se refere à utilização social da propriedade urbana, parece ter sido entre nós relegada a segundo plano, por contrária aos interesses de determinadas camadas da elite governamental e por se constituir obstáculo aos anseios de crescimento da própria elite do poder.

           Assim, para que se venha a confirmar na prática o princípio constitucional da função social da propriedade, sentimos que muito ainda resta a fazer, especialmente nos campos da tributação, da propriedade fundiária e da ocupação dos espaços urbanos.

         Ademais, gostaríamos de chamar a atenção para o desvirtuamento, na cultura jurídica brasileira, da função social da propriedade e dos valores que ela representa, levando-se em conta, fundamentalmente, as limitações práticas do seu exercício e as manipulações ideológicas que no Brasil sempre fizeram do seu uso.

          Em vista, quando assim falamos, temos a advertência de César Barros Leal, em A Função Social da Propriedade (Fortaleza, Imprensa Oficial do Ceará, 1981), no sentido de que em outros países existe maior controle normativo e administrativo da política da função social da propriedade, mostrando-nos onde e como ela exercita-se compulsoriamente, mesmo nos países de regime capitalista.
    
          Enquanto isso, no Brasil ainda assistimos ao triste espetáculo da especulação imobiliária, da espoliação urbana, do latifúndio improdutivo e de uma política habitacional madrasta, contrastantes esses elementos com a realidade econômica e social reinante, filha esta última de um regime constitucional e econômico que tem posto em dúvida a sobrevivência da dignidade humana e os níveis de consciência que a fundamentam.

         E mais: a ortodoxia, a um só tempo centralizadora e maniqueísta, desse modelo de desenvolvimento, tem elevado a patamares inadmissíveis os horrores econômicos que os países ricos transformaram em sacralizações, as quais, especialmente no Brasil e no âmbito das comunidades periféricas, aparecem monitoradas pelo Consenso de Washington e pelo mais nefasto modelo neoliberal que a exploração capitalista inventou.

         Por último, gostaria de registrar que o enfoque da propriedade enquanto função social e produtiva assume um caráter instigante e questionador, levando-nos a recuperar uma visão quase propositadamente esquecida nos descaminhos da nossa democracia social, especialmente quando os valores da nossa democracia social aparecem conjugados com os valores do liberalismo, como se fosse possível revestir com um apelo sempre saudosista o modelo brasileiro de desenvolvimento, que continua, infelizmente, submetido à ditadura econômica e à violação dos Direitos Humanos que ela representa.

Um comentário:

  1. Professor, parabéns pelo seu blog e, especialmente, por este texto interessantíssimo. Suas palavras inspiram fé em um futuro socialmente mais justo para o Brasil.

    Andressa de Carvalho Gomes Ferreira, S3 - diurno

    ResponderExcluir