sábado, 24 de novembro de 2018

A Literatura de Hoffmann


          Dimas Macedo

                                                 

           Nelson Hoffmann é um dos escritores do sul do Brasil que vem chamando a atenção. Roque Gonzales (RS) é a sua melhor criação, município gaúcho do qual foi gestor, procurador e achador, sendo ele, igualmente, o sol que irradia a arte literária para toda a região das Missões.

          Sente frio, às vezes, quando a literatura não se faz a sua companheira, quando o amor que sente pelo próximo não borbulha no seu coração, ou quando não promove o intercâmbio cultural, utilizando para isso as páginas do jornal O Nheçuano.


          Trata-se de um escritor internacional, que reside em um eixo de fronteiras da América do Sul. Escreve com a alma e também com o corpo e, de último, inventou um novo gênero de escrita, reunindo os e-mails que ele troca com os seus amigos.

          Essa forma confidencial de arte literária, em São Paulo, já deu o que falar, e, no Rio Janeiro, foi transformada em literatura de modo-avião, escritura na qual as personagens apenas digitam aquilo que vai no coração.  

          Li a sua novela Companheira (Florianópolis: Ledix, 2017) mais de uma vez, assim como o seu livro Pássaros Libertos (Diário da Escrita-II), este último, num voo entre Fortaleza e Brasília, percebendo, depois, que a literatura de Hoffmann tinha feito de mim um Nheçuano, desses que desejam viver em profusão.

          Enquanto escrevo esta resenha sobre a literatura de Hoffmann, registro que me encontro adido ao sol do Ceará, neste feriado em que o Corpus Christi se faz o sal do Barro Preto com gosto de Carmel, o santuário no qual me recolho para refazer as minhas energias.

           A existência e a morte, diluídas nas páginas de Companheira, igualmente, deslizam por aqui, tingindo o céu do Barro Preto de lilás, e o horizonte, de branco e de azul. A ficção de Hoffmann é incomum no seu recorte formal, na sua urdidura literária e no seu poder de regeneração.

           E exposto sol que brilha em Aquiraz e no Carmel, vou me transformando em um pássaro liberto, sentindo este lugar chamado Barro Preto como se ele fosse a nova capital das Missões, situada entre dunas e lajedos que fazem pulsar a emoção. 

           As notas que tomei na minha última viagem, acerca dos Pássaros Libertos do Hoffmann, desapareceram, misteriosamente, desde que cheguei em Aquiraz. Aqui o sol é inclemente e uma nesga de luz entra pelo quarto e se projeta sobre o livro de Hoffmann que sempre trago nas mãos.

           O seu Diário da Escrita-II se estampa por todos os espaços e se infiltra na minha consciência de leitor, especialmente porque, em Barro Preto, a arte literária de Hoffmann tem o incrível dom de perdurar.

                                                                                                                Barro Preto (CE), 31/05/2018

A Tragédia de Princesa


  Dimas Macedo

                                                                                                  Cristina Couto
                                                    
           A civilização do Médio Salgado, no sul do Ceará, deu ao Nordeste uma das suas maiores oligarquias, cujo apogeu efetivou-se com o domínio de Dona Fideralina Augusto, que sempre se manteve no poder utilizando os velhos bacamartes e os eflúvios da sua inteligência.

            A despeito dos conflitos e sobressaltos com os quais se envolveu, especialmente, no campo da política, nada foi maior, na sua vida, do que a decisão de invadir a vila de Princesa, no Estado da Paraíba, para vingar a morte do seu neto Ildefonso Augusto, em 1902.

            Ildefonso Augusto Lacerda Leite, assim como o tio materno, Ildefonso Correia Lima, carregava um nome luminoso no seio da família. Ambos receberam o título de Doutor em Medicina, no Rio de Janeiro, e destacaram-se como intelectuais e cientistas.

            Nascido Vila de Lavras, em 1876, Ildefonso Augusto teve sólida formação. Estudou no Seminário do Crato e no Seminário da Prainha em Fortaleza e, no Rio de Janeiro, agitou a cena cultural como cientista e livre pensador, tornando-se, ao lado de Oswaldo Cruz, pioneiro no estudo das nossas doenças tropicais.

            Com a missão que lhe foi confiada por Oswaldo Cruz, veio para o Nordeste pesquisar as endemias que, na época, assolavam esta região do País. Fixou-se na terra natal, mudando-se depois para Cajazeiras e, em seguida, para Princesa, na Paraíba, onde seria brutalmente assassinado, em janeiro de 1902.

            Os seus Ensaios de Filosofia Natural, publicados no Rio de Janeiro, em 1900, e resgatados, em 2016, pela autora deste livro, constituem um marco na sua trajetória, agora apresentada ao público pela pena de Cristina Couto, no seu ensaio biográfico A Tragédia de Princesa (Fortaleza: Expressão Gráfica, 2018).

            Trata-se de livro no qual se assenta o contexto social de uma época, remarcado por uma tragédia e entrelaçado pelos poderes de uma oligarquia, tendo as cidades de Princesa, na Paraíba, e Lavras da Mangabeira, no Ceará, como epicentros de suas ações.

           Cristina rastreou a vida de Ildefonso desde o seu nascimento, passando pelos seus estudos em Fortaleza e no Rio de Janeiro, e pela sua vida de clínico, inicialmente, no Rio, e de clínico e farmacêutico, no interior da Paraíba, legando-nos com o seu talento, um livro há muito reclamado pela nossa história social.

           Sobre a tragédia de Ildefonso Augusto, cito o Dicionário Bio-Bibliográfico Cearense, do Barão de Studart, o Império do Bacamarte, de Joaryvar Macedo, o romance de Sebastião Lucena, Peste e Cobiça: A Inveja e o Ódio Tramam Contra o Amor no Alvorecer do Século XX, e o Memorial de autoria do seu sogro, Erasmo Campos, publicado em Fortaleza, em 1902.

             Com a publicação desse livro, firma-se Cristina Couto como historiadora e amplia os horizontes da sua visão de ensaísta e de guardiã da história do Nordeste, em cujo coração está o Cariri, a mais bela de todas as regiões do Brasil.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Roteiro de Mário Gomes

       Dimas Macedo


             Aparentemente sem consciência do fenômeno literário, Mário Gomes foi, entretanto, o mais espontâneo poeta que conheci, uma vez que soube manejar as suas emoções com fluidez e sensibilidade, encantando-nos com a sua poesia perdidamente terna e surreal.

           O seu primeiro livro de poemas (Lamentos do Ego, 1981) esgotou-se pouco tempo depois de editado, ainda que a sua distribuição tenha sido feita de forma marginal. Mas o certo é que Mário Gomes passou a divulgar os seus escritos de uma forma ainda mais alternativa, pedindo-me, certa feita, que sobre eles eu manifestasse a minha opinião.

         Expressei, então, que nada poderia acrescentar à compreensão e análise de sua tessitura poética que, em verdade, constitui algo de inusitado, sendo Mário Gomes, por isto mesmo, um poeta inventivo e dimensional. Dimensional porque, possuindo o dom de criar, não aceitou submeter-se às exigências da pesquisa estética ou filiar-se a qualquer escola literária.

        Assumindo-se poeta, buscou, antes de tudo, realizar a poesia que lhe foi sendo ditada pela inspiração, sem se aperceber, contudo, que o fabrico do poema está constantemente a exigir experimentos e reinvenções.

            Em Resquícios de Uma Paisagem da Vida (Fortaleza: Artegráfica, 1988) não é possível negar que Mário Gomes não tenha revelado uma poesia grave, espontânea, trágica e contundente, assim como parecem ser os mecanismos da própria existência.

            Daí a minha admiração pela sua arte, pela sua poesia que, embora portadora de certos defeitos formais, é a mais criativa e absurda de quantas afloraram na literatura cearense da sua geração.

         Resquícios de Uma Paisagem da Vida me parece ser um livro perdidamente marginal, porém marginal, talvez, porque em contraposição às posturas poéticas tradicionais e aos níveis de submissão e paralisia social que elas representam.

             Mário Gomes e as suas desventuras de poeta sempre reclamaram um biógrafo à altura da sua trajetória. Em Mário Gomes: Herói, Santo e Bandido (5ª ed. Lisboa: Aldeiabook, 2015), Márcio Catunda paga um imenso tributo à memória desse grande poeta cearense, registrando em livro a vida e a autenticidade do Poeta da Praça do Ferreira.

             Márcio Catunda mostra-nos que Mário Gomes não morreu, que é rica a sua tradição e que o Ceará vai continuar se alimentando da sua memória e da sua vida aventurosa e errante, porque viva para todos nós a claridade da sua criação e o rito dissoluto da sua verdade de Poeta.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Dimas Macedo - Resenhas e Perfis

 Rosa Firmo                    

                 
                                                                              Quase meio dia, o sol espreguiça-se
                                                                             com fúria sobre os grãos de areia da praia.
                                                                            Refrigero-me com leituras amenas



          De tudo que o li em 2016, Resenhas e Perfis (Fortaleza: Expressão Gráfica), de Dimas Macedo, foi uma das leituras que mais aguçou meu paladar, estimulou meus sentimentos, minha percepção de leitora.

           Em suas obras, Dimas oferece contribuições importantes para a história da literatura do Ceará e do mundo; no todo tecendo com sensibilidade nos diversos gêneros que escreve com leveza, sentido e unidade.

            No livro Resenhas e Perfis, tão primoroso, há duas resenhas que se resumem na mais alta sagração, “O que Somos” (página 29) e “Confissão Fé e Transcendência” (página 89). São duas leituras que, para mim, e acredito, para qualquer leitor de bom senso, ajudam a refletir sobre a questão da espiritualidade. São textos de altíssimo valor humanista que me tocam profundamente.

            O autor sonda em sua vida e na vida que o cerca, da qual procura desfrutar ao máximo, observando, com vagar, aquilo que realmente tem valor. O grande significado desses textos, citados acima, traz na sua essência, a função de nos alimentar com uma excelente reflexão, que sugere a beleza e renovação da espiritualidade.

         Na minha compreensão, todas as qualidades do autor estão resumidas nestes dois textos, sendo que Resenha e Perfis nos dá uma amostra da grandeza de sua obra.

            Dimas nasceu com uma missão, como ele mesmo afirma, de colaborar, enaltecer e investigar as obras dos seus conterrâneos e amigos, a fim de tecer considerações e encorajá-los, atinente ao árduo e difícil ofício de escrever.

           Fiel a si mesmo, partilha com o leitor a seriedade do silêncio, o que dilacera a alma. A descoberta, a resistência e o prazer do amor. Dimas Macedo já ultrapassou os limites na sua extensa e variada obra poética, ensaística e histórica. Orgulhemo-nos dele!

                                                                                                                            Parajuru, 
                                                                                                                                                               dezembro de 2016.

sábado, 17 de novembro de 2018

Pré-Leitura do livro Direito e Literatura, de Dimas Macedo


Osvaldo Euclides Araújo

Bons Momentos

— Contraditoriamente instalada no Brasil, em 1889, por um autêntico golpe de Estado, desfechado por uma elite autoritária e ansiosa por influir no aparelho do Poder, a forma republicana que nos serve de modelo tem sido, infelizmente, balcão de despachos de uns poucos em detrimento dos grandes interesses da nação.
— Boa parte dos magistrados e dos detentores do poder, desde os primórdios da civilização, têm-se revelado seres potencialmente corruptos e tresloucados pela perda da clarividência, tais os casos de juízes e chefes de Estado que, renunciando às suas trajetórias, assumiram a falta de postura ética como modelo de sua atuação.
— As dívidas sociais são monumentais no Brasil e o nosso patrimônio público tem sido dominado e também degradado por empresários, chefes do Executivo e parlamentares inescrupulosos, em tudo amparados pela convivência dos Tribunais de Contas e do Poder Judiciário.
— É poeta de vários instrumentos, viajante lírico dos melhores e arauto de uma épica que se quer, a qualquer custo, incrustada em nossos corações. A emoção coloca-se no centro das suas preocupações. O tecido amoroso o envolve. E a poesia por ele praticada é toda ela uma imensa jitirana de luz, brilhando entre veredas de sol, iluminando os cafundós de nosso empedernido sertão.
— Sei que sou suspeito para falar do talento musical de Diego Macedo, mas sei também que não posso mentir com relação às minhas preferências musicais. E Diego Macedo é uma delas, como se ele não fosse uma das grandes expressões do meu amor.
— Como jurista e professor de Direito, eu acuso o sistema político brasileiro e os seus dirigentes pela manutenção das nossas desigualdades e pelo aprofundamento do crime organizado, no âmbito do aparelho do Estado, e faço isso em nome dos que sonham com um mundo novo e com um Poder Judiciário mais justo e menos omisso com relação à aplicação da Constituição.
— No princípio era o verbo. E o verbo, encarnado, se fez justo. E o verbo, soberano, chamava-se Augusto, e de seus ramos, imponentes, ergueram-se as Pontes. E as fontes do saber, em Augusto, tornaram-se densas. Imensas as suas simetrias com o seu prenome, posto que Francisco antecedia a Augusto, e uma vez que Augusto precedia a Pontes. E Augusto Pontes, para todo o sempre, em rendas de opala, tinha a fala mansa e o olhar agudo.

Curtas
— A violência é também resultante dos preconceitos de nossa elite social, e em grande escala é produto do silêncio daqueles que deixam de lutar pela afirmação da verdade, ou que trocaram a sua consciência por uma migalha de conforto pessoal.
— Sei que a palavra e o seu significado me seduzem até a exaustão, e que a ética e os valores supremos da beleza estão na raiz do meu equilíbrio psíquico, mas sem a busca incessante da Justiça sei também que não faz sentido viver.
— A violência que grassa em Fortaleza e em todo o Brasil é produto da arrogância dos nossos governantes. Não podemos ser tolerantes com essa elite predatória, e não há por que silenciar.
— Ser livre, para os autores, seria o mesmo que ser revolucionário e alegre.
— Precisamos da política e da sua regeneração, antes do triunfo do caos e da desordem; e do predomínio da corrupção, praticada pelos governantes e pela falta de postura do Judiciário.

O Autor
       Poeta, jurista, historiador e crítico literário, Dimas Macedo é mestre em Direito e Livre Docente em Direito Constitucional. É professor da Universidade Federal do Ceará e Procurador do Estado. É cearense, filho de Lavras da Mangabeira. Na área do Direito tem oito livros publicados, nas outras, nove.

A Publicação
       O livro Direito e Literatura, de Dimas Macedo, em sua segunda edição, pela editora Lumen Juris, de 2017, tem 196 páginas, prefácio do próprio autor.

Circunstâncias
        O livro reúne setenta e sete textos, entre crônicas e artigos, que Dimas Macedo publicou como colaborador em variados meios de comunicação (jornais e revistas) ao longo de anos. Do total, quarenta e sete são focados no Direito. Os trinta outros, que o título do livro sugere pertencerem ao campo da Literatura, abrem-se em crônicas e memorialismo.

O Livro
      O livro Direito e Literatura, de autoria de Dimas Macedo está estruturado em dois grandes blocos de texto. A primeira parte apresenta o maior número de textos, e está dedicada ao Direito. Dimas enfrenta temas como corrupção, história e reforma política, filosofia do Direito, Processo e Constituição, Cidadania e Participação. Como ele mesmo diz, no prefácio, a obra expõe os “eixos mediante os quais minha obra se sustenta”. Na segunda parte do livro, as crônicas falam principalmente de personalidades do mundo da arte e da cultura. Como diz o autor, ele se “deixou conduzir pelos afetos e pelos sentimentos emocionais”.

A Importância da Obra
       Dimas Macedo expõe neste livro uma parte importante do seu pensamento como observador da cena jurídica, política, cultural e social. Conduz o leitor a viajar pela história e pelos assuntos delicados de sua inserção na cena de sua terra, de seu país. Diz como vê e como sente a realidade de seu tempo, mostra a quem dirige seus afetos, posiciona-se com clareza sobre o poder e fala dos poderosos com rara firmeza.

O {Codicírio} de Dimas Macedo

           Batista de Lima



            Codicírio é um neologismo criado por Dimas Macedo para dar título a esse seu livro de 2018. São 38 poemas publicados pelas Edições Poetaria, trabalhados graficamente por Geraldo Jesuíno. O prefaciador é Rodrigo Marques que, através de texto bem elaborado, analisa com muito zelo o livro do Dimas, mas não encontra nos dicionários alguma alusão ao termo título. Também Jesuino, em texto de capa, não consegue dizer o que é {Codicírio}, apesar da excelente análise produzida. Já o autor, este silencia sobre o real significado de sua invenção.

         Os poemas desse novo livro ainda trazem momentos do telurismo, que tem sido a principal temática macedeana ao longo da sua produção literária. Lavras da Mangabeira e o rio Salgado da infância e da adolescência ainda pulsam na sua poética. Feliz quem canta sua terra antes de cantar o mundo. E Lavras é farta em motivações literárias. É tanto que dizem que os escritores daquela terra são marcados pela cidade porque se banharam e beberam a água do Salgado. Até parece que Dimas Macedo exagerou na sua beberagem, pois o rio e a cidade não saem do seu poetar.

         Outra vertente temática que tem acompanhado esse poeta conterrâneo é o erotismo. Há muitos "seios", "pelos", "colos" e "conchas" nos seus versos. Há sempre uma cavalgada no relevo sensual da mulher amada. É evidente que a culminância desse erotismo está no seu livro de 2009, que nos veio com o título de O Rumor e a Concha. É um erotismo que contamina esteticamente sua obra inteira. Até as cidades e suas ruas, quando andadas, apresentam e trescalam o cheiro da sensualidade.

            Como a linguagem é a casa do ser, não é de admirar que é nos seus recônditos que o poeta se recolhe e se transfigura. Parece que quanto mais se esconde nessas metáforas, mais se apresenta como poeta. O seu existencialismo vai, pois, de encontro às suas metáforas. O poeta e o jurista se digladiam esteticamente, pois a racionalidade do operador do direito nos seus pareceres bate de frente com as figurações que robustecem a poesia. Objetividade e subjetividade estão presentes no seu cotidiano.

          Nesse novo livro, o poeta Dimas corre riscos ao trazer vários poemas de circunstâncias. Acontece que esses poemas não comprometem seu desempenho porque ele mostra contornos poéticos de várias cidades europeias. Ele deixa seus olhos e parte do coração em Havre. Em Dublin, ele se encandeia com "a face acesa de Joyce". “Berlim” se torna seu melhor poema por se apresentar como uma dama no cio, com quem ele se relaciona e termina por lhe enviar "um bilhete e mais um ramalhete de versos". É o poema em que o erotismo se apresenta mais latente.

         São poemas que vêm vestidos a rigor, graças à parceria do autor com o estilista Geraldo Jesuíno, que preparou a roupagem da coletânea para a grande festa da leitura. Também apresenta um Dimas Macedo cada vez mais multifacetado, investindo em várias frentes poéticas.

        De Lavras a Veneza, as águas se dão as mãos para que o poeta navegue tranquilo no seu manifesto aquático. Esse seu novo itinerário, feito aquarela, cativa o leitor pela beleza da superfície e o instiga a mergulhar em busca de uma estrutura profunda possuidora de muito ainda a ser devassado.


         {Codicírio} é bem apresentado, revela um Dimas Macedo cada vez mais multifacetado, investindo em várias frentes poéticas.

                                                                                                                  
                                                                                       Diário do Nordeste
                                                                                             Fortaleza – 23/10/ 2018

O Códice de Dimas Macedo

             Rodrigo Marques
            Doutor em Literatura e
               Professor Universitário
                                                

            Não consultes dicionários. “Codicírio” está sem verbete. É uma palavra que nasce aqui, no novo livro de Dimas Macedo. A palavra lembra “códice”, um códice misturado com “círio”. Nele, reúnem-se poemas escritos a mão em várias cidades, tal como alguns códices de que temos notícia. Talvez tenha mesmo o perfume dos círios e é só. No fundo, o livro e o seu título estão à beira do silêncio, e no limite entre a palavra e o silêncio, Dimas vem construindo e destruindo suas arquiteturas verbais.

            De Estrela de Pedra (1994) até {Guadalupe} (2012), o poeta parece ter encontrado sua voz, deixando para trás a tensa experiência poética dos primeiros livros: A Distância de Todas as Coisas (1980) e Lavoura Úmida (1990), livros que evocam a dicção da geração de 45, mas com temas e linguagens que já definiam um universo criativo próprio: a história de Lavras da Mangabeira e do Rio Salgado; a morte do Pai; a memória afetiva de algo indefinível e precioso; o lirismo incorrigível; a sedução da palavra e o suicídio. Dimas Macedo, na sua aparente clareza, não é um poeta fácil, é um “claro enigma” como diria Drummond. Conseguiu ao longo do tempo fabricar uma voz única, com símbolos próprios, com seus mestres e contramestres e suas dores cravadas. Uma voz que teme deixar a poesia, que quer falar, mas ao mesmo tempo deseja um silêncio profundo, única possibilidade de encontrar-se com o Todo e pôr fim à angústia que o faz escrever/viver.

            É assim o seu códice. Ler Dimas Macedo é entrar num universo de um personagem agônico. A persona que ele criou se desdobra quase que infinitamente nos mesmos símbolos e nisto estão a beleza e a unidade de sua obra. Neste sentido, {Codicírio} (Fortaleza: Edições Poetaria, 2018) é uma continuação de {Guadalupe} que por sua vez é continuação de O Rumor e a Concha (2008) e assim até esbarrar em Estrela de Pedra. Esta unidade se sustenta sobretudo por uma contenção na escrita: os poemas inspiram mais fôlego, mas logo sofrem um corte, ali, são contidos, silenciados, e isto provoca uma tensão no instante que o leitor toma ar. Talvez o melhor exemplo de suspensão está em “Florência”: o último verso, “e deformei os meus dedos”, da primeira quadra, rompe uma sequência de memória afetiva e a quadra seguinte também é uma ruptura, desta vez, com a primeira estrofe, no entanto, o que não foi dito reaparece na quadra final, numa síntese dos silêncios deixados para trás que arremata o poema: “A teia dos meus enredos/ perdeu-se nessas manhãs,/ nas quais as minhas irmãs/ fugiram com seus brinquedos”. Belo artesanato poético, construído de pausas e de palavras, por isto, tantas vezes, Dimas quer ser lido como música, matéria original de toda a poesia.

            Aliás, assim como em “Florência”, o uso das quadras está na carpintaria de Dimas Macedo e de {Codicírio}. A dimensão da poesia popular sutilmente foi decantando no poeta ao longo dos anos até ganhar um registro incomum: fica latente na quadra (forma popular por excelência), sem ser esquecido, mas tão retrabalhado que as trovas de Dimas Macedo são verdadeiras relíquias poéticas, pois renovam a dicção popular e a atualizam para a contemporaneidade. O poema “Fibra” realiza com extrema precisão a união da tradição dos trovadores nordestinos com o universo daquela persona que mencionei anteriormente: “A vida, ai, a vida/ que nasce das palavras/ é mais do que as Lavras/ da minha despedida”. Uma trova popular, uma trovinha, como se diz, mas no conjunto do poema e da poesia de Dimas se refaz em uma forma própria, pois convive logo em seguida com os seguintes versos: “Na alma uma ferida, / a dor atravessada, / a paz interditada, / a vida não vivida”. Trova, desta vez, cheia de dissonâncias, à Cabral, com uma inusitada intertextualidade com “Pneumatórax” de Manuel Bandeira. É preciso que o leitor perceba as sutilezas das construções de Dimas e, volto a dizer, ele está a construir uma personagem, um teatro para uma voz lírica atormentada pela própria memória, mas que se refrigera na poesia e no silêncio, e parte desta memória é a poética dos cantadores de feira livre.

            {Codicírio} e {Guadalupe}, livros-irmãos, exploram, além da poesia popular, uma outra faceta do “Códice Dimas Macedo” (que não é o jurista e nem mesmo o poeta), é o personagem de si mesmo, ser de papel, ficção. Aliás, Dimas Macedo, o homem, esta pessoa tão querida dos seus amigos, vai desaparecer, e o personagem que ele criou nos seus poemas vai atormentar ainda os vivos. Mas eu dizia que os dois livros-irmãos exploram uma dimensão do universo poético que é a figuração do cotidiano e do erotismo. O cotidiano, matéria de poesia, foi uma conquista dos poetas modernistas, e Dimas, neste ponto, repousa num dos mestres brasileiros: Vinícius de Moraes. Os poemas sobre as cidades visitadas, verdadeiros cartões-postais, que estão presentes nas primeiras partes dos livros citados, recuperam para a lírica brasileira o prosaico do dia-a-dia, como o poema “Frederico” de {Codicírio} que celebra o cardápio de um restaurante de Fortaleza ou outro de {Guadalupe}, “Atlanta”, que faz referência a uma unidade do Hard Rock Café. São poemas de circunstância que procuram retirar do fato banal o que ele guarda de poético. Em tempos onde a sensibilidade está sendo aniquilada, a poesia é uma resistência, frágil, mas rompe o asfalto. O erótico, também, à moda de Vinícius e Neruda, permeia os desejos da linguagem destes livros e, em especial, de {Codicírio}. O corpo da mulher reaparece na sintaxe, a confirmar que a personagem do códice de Macedo saboreia-se ao dar vazão à sua Anima, ao se deparar com uma femme fatale inventada:Minha querida, o esterno, / é mais do que eterno/ o osso do teu peito. / Fico sem jeito/ olhando o teu vestido/ tão revestido de rosas/ e o corpo tão ardente”.

            Por fim, {Codicírio} fecha mais uma parceria com o múltiplo artista Geraldo Jesuíno. A poesia de Dimas Macedo não seria a mesma sem os projetos gráficos desse bruxo das artes gráficas. Não há como afastar os poemas de Dimas da espacialidade inventiva criada por Jesuíno que, desta vez, aparece, em carne e osso, no final do livro como entrevistador, deixando Dimas em saias curtas quando vasculha a alma dos poemas.

            Não consultes dicionários, caro leitor, os códices e os círios não estão aqui nos sentidos que lhes dão, mas no que lhes pôs um poeta cearense que há mais de décadas burila palavras, lavra e as esconde no bolso do paletó. Saravá, Dimas!

Ingmar Bergman: Um Centenário


        Dimas Macedo



         Ingmar Bergman, ao lado de Glauber Rocha, Akira Kurosawa, Stanley Kubrick, Pedro Almodóvar e de outros grandes cineastas, integra a galeria dos maiores nomes do cinema.

         Extremamente criativo, nas suas intenções e nos seus cuidados com a arte, Bergman, contudo, se destaca, entre todos, por ser um clássico que dialoga com o moderno, sem deixar de lado os abismos da condição humana e os limites da nossa finitude.

        Os países da Escandinávia o têm como referência máxima da sua cultura, em todos os planos da estética, ressalvando-se aqui o alcance universal da literatura de Andersen e a filosofia de Soren Kierkegaard.

        A sua recepção, no Brasil, sempre foi muito calorosa, especialmente, por críticos de cinema e cinéfilos do mais alto coturno, prevalecendo, na sua audiência, os iniciados no domínio da arte visual.

        Os títulos da sua filmografia apontam para o simbólico e a dialogia, e constituem sentenças de linguagem que já denunciam os sentidos maiores da Filosofia e da Alteridade.

        No livro exemplar de Alder Teixeira, Ingmar Bergman: Estratégias Narrativas (Fortaleza: Editora Premius, 2018), a estética da Literatura se conjuga com a estética do Cinema, e o resultado o eleva aos domínios da restauração cultural e do reconhecimento.

        2018 é o ano do centenário de Ingmar Bergman, e um dos pontos de inflexão deste evento, parece ser, justamente, a publicação deste livro, louvando-se o Ceará e o Brasil com esta memorável contribuição, a qual constitui um marco, especialmente, porque se trata de pesquisa de viés acadêmico recortada pela leveza de uma linguagem cativante.

         O argumento principal deste livro corresponde à tese de doutoramento do autor, defendida na Universidade Federal de Minas Gerais, em 2014. Compreende uma reflexão acerca das técnicas de montagem do grande cineasta sueco, centrando-se a abordagem da pesquisa em filmes como O Sétimo Selo, Morangos Silvestres, Sarabanda e Cenas de Um Casamento.

         Em todo o percurso da obra, contudo, podemos perceber a argúcia do autor e a perspectiva na qual o diretor de Gritos e Sussurros fundamenta a sua criação e os seus argumentos. 

         O estilo literário de Alder Teixeira afasta-se do jargão acadêmico, prima pela correção do texto e pela poética da sua alocução e do seu viés comunicativo, instâncias nas quais a literatura e o cinema aparecem como pano de fundo.

         Alder Teixeira – intelectual, escritor e leitor de sólida formação – é uma das vozes que, em Fortaleza, ressaem com muito poder de discussão, de argumentação e de convencimento.

         A elegância do seu texto e os seus conhecimentos filosóficos fazem de Alder Teixeira um escritor primoroso e um teórico da Literatura e do Cinema que desvela, com amor, os seus objetos de pesquisa.

         Conversar com Alder é abrir, ainda mais, os escaninhos da mente para a recepção da escrita e da sua intertextualidade, é acolher a linguagem da sua interação, é sorver a música da razão e do silêncio, em toda a sua plenitude.

         Como registro da paixão de um escritor por um cineasta, Ingmar Bergman: Estratégias Narrativas assume, com certeza, na bibliografia sobre Bergman, o lugar que lhe foi reservado, o lugar do desejo e da reparação, e da metalinguagem que se faz com a força da palavra.

A Poesia de Sérgio Macedo


              Dimas Macedo


               Sérgio Macedo, desde muito cedo, pisou firme na literatura, e da poesia ele tem auscultado as suas melodias. Sabe, muito bem, onde dormem os cães, e sabe, muito mais, que os cães uivam para a lua, e que os poetas escrevem, não para manter viva a esperança, mas para atravessar a vida carregando o peso das palavras.

          Onde Estão as Margens do Meu Rio? (Fortaleza: Expressão Gráfica, 2018) é o nome do seu novo livro, para o qual pede-me o autor a apresentação. Não sei, sinceramente, o que poderia dizer acerca da sua arte literária, após os elogios de Francisco Carvalho e Artur Eduardo Benevides. Especialmente, no domínio da expressão poemática e no sentido do convívio com a morte e o abismo, trata-se de um grande poeta.

            Na sua engenharia poética, Sérgio Macedo sabe manejar, como poucos, o sal da escritura. Li os seus livros Norte Magnético (1998), Mercador de Sonhos (2002) e Onde Dormem os Cães? (2010) e neles descobri a pulsação de um poeta maior, senhor da sua cosmovisão e do domínio da linguagem que a sua palavra reinventa.

           Segundo Francisco Carvalho, “A poesia de Sérgio Macedo é uma poesia de afirmação, de cumplicidade com as aflições do mundo contemporâneo, de explícita rebeldia em face do esmagamento do homem pelas estruturas políticas e sociais”, pois se trata de um autêntico poeta.

          A poesia de Sérgio Macedo, para Francisco Carvalho, “É a poesia de quem sabe que a vida é apenas um sonho consentido aos vassalos da morte, que somos todos nós neste planeta de deuses precários e de reis que perderam o trono e a memória”.

         Artur Eduardo Benevides afirmou, certa feita, que Sérgio Macedo é um “verdadeiro poeta, que tem ampla percepção das cousas”, que os seus poemas são “quase todos excelentes” e que “um longo caminho o aguarda na poesia do Ceará”, pois “talento não lhe falta para tanto, nem visão cultural penetrante”.

           O norte magnético deste grande poeta é constituído pela rebeldia e pela poética da dor e do espanto. Todos os instintos, uivos e clamores do corpo e da palavra, pulsam nos poemas reunidos no seu novo livro. Mas, no seu conjunto, a sua poesia parece toda ela escrita com o 
sangue, tornando-se o autor um arquiteto das formas com as quais reinventa as suas criações.

          O contexto da sua semântica literária, especialmente, aquele que se entremostra neste livro, é povoado de signos e de símbolos literários, entre os quais, verbo e existência se abraçam, aí revelando-se a face sombria de um poeta que tem a consciência do seu tempo e que sabe a alquimia das imagens com as quais a palavra o interroga.

       O inegável poder da sua inspiração, a técnica de composição dos seus poemas, a dicção com que ele enfrenta as suas obsessões literárias e o daímôn que tortura a sua agonia de artista, são elementos que fazem do autor desse livro um poeta de estatura maior.

        E com isso ganha o Ceará na sua modernidade lírica, pois a poesia de Sérgio Macedo, por ser qualitativa e permeada de grande ressonância ética, soma-se, com justiça, àquilo que de melhor foi produzido por sua geração. Almejo, pois, que a sua arte venha a alcançar o lugar que merece e que lhe é reservado no campo da poesia.