sábado, 17 de novembro de 2018

O Códice de Dimas Macedo

             Rodrigo Marques
            Doutor em Literatura e
               Professor Universitário
                                                

            Não consultes dicionários. “Codicírio” está sem verbete. É uma palavra que nasce aqui, no novo livro de Dimas Macedo. A palavra lembra “códice”, um códice misturado com “círio”. Nele, reúnem-se poemas escritos a mão em várias cidades, tal como alguns códices de que temos notícia. Talvez tenha mesmo o perfume dos círios e é só. No fundo, o livro e o seu título estão à beira do silêncio, e no limite entre a palavra e o silêncio, Dimas vem construindo e destruindo suas arquiteturas verbais.

            De Estrela de Pedra (1994) até {Guadalupe} (2012), o poeta parece ter encontrado sua voz, deixando para trás a tensa experiência poética dos primeiros livros: A Distância de Todas as Coisas (1980) e Lavoura Úmida (1990), livros que evocam a dicção da geração de 45, mas com temas e linguagens que já definiam um universo criativo próprio: a história de Lavras da Mangabeira e do Rio Salgado; a morte do Pai; a memória afetiva de algo indefinível e precioso; o lirismo incorrigível; a sedução da palavra e o suicídio. Dimas Macedo, na sua aparente clareza, não é um poeta fácil, é um “claro enigma” como diria Drummond. Conseguiu ao longo do tempo fabricar uma voz única, com símbolos próprios, com seus mestres e contramestres e suas dores cravadas. Uma voz que teme deixar a poesia, que quer falar, mas ao mesmo tempo deseja um silêncio profundo, única possibilidade de encontrar-se com o Todo e pôr fim à angústia que o faz escrever/viver.

            É assim o seu códice. Ler Dimas Macedo é entrar num universo de um personagem agônico. A persona que ele criou se desdobra quase que infinitamente nos mesmos símbolos e nisto estão a beleza e a unidade de sua obra. Neste sentido, {Codicírio} (Fortaleza: Edições Poetaria, 2018) é uma continuação de {Guadalupe} que por sua vez é continuação de O Rumor e a Concha (2008) e assim até esbarrar em Estrela de Pedra. Esta unidade se sustenta sobretudo por uma contenção na escrita: os poemas inspiram mais fôlego, mas logo sofrem um corte, ali, são contidos, silenciados, e isto provoca uma tensão no instante que o leitor toma ar. Talvez o melhor exemplo de suspensão está em “Florência”: o último verso, “e deformei os meus dedos”, da primeira quadra, rompe uma sequência de memória afetiva e a quadra seguinte também é uma ruptura, desta vez, com a primeira estrofe, no entanto, o que não foi dito reaparece na quadra final, numa síntese dos silêncios deixados para trás que arremata o poema: “A teia dos meus enredos/ perdeu-se nessas manhãs,/ nas quais as minhas irmãs/ fugiram com seus brinquedos”. Belo artesanato poético, construído de pausas e de palavras, por isto, tantas vezes, Dimas quer ser lido como música, matéria original de toda a poesia.

            Aliás, assim como em “Florência”, o uso das quadras está na carpintaria de Dimas Macedo e de {Codicírio}. A dimensão da poesia popular sutilmente foi decantando no poeta ao longo dos anos até ganhar um registro incomum: fica latente na quadra (forma popular por excelência), sem ser esquecido, mas tão retrabalhado que as trovas de Dimas Macedo são verdadeiras relíquias poéticas, pois renovam a dicção popular e a atualizam para a contemporaneidade. O poema “Fibra” realiza com extrema precisão a união da tradição dos trovadores nordestinos com o universo daquela persona que mencionei anteriormente: “A vida, ai, a vida/ que nasce das palavras/ é mais do que as Lavras/ da minha despedida”. Uma trova popular, uma trovinha, como se diz, mas no conjunto do poema e da poesia de Dimas se refaz em uma forma própria, pois convive logo em seguida com os seguintes versos: “Na alma uma ferida, / a dor atravessada, / a paz interditada, / a vida não vivida”. Trova, desta vez, cheia de dissonâncias, à Cabral, com uma inusitada intertextualidade com “Pneumatórax” de Manuel Bandeira. É preciso que o leitor perceba as sutilezas das construções de Dimas e, volto a dizer, ele está a construir uma personagem, um teatro para uma voz lírica atormentada pela própria memória, mas que se refrigera na poesia e no silêncio, e parte desta memória é a poética dos cantadores de feira livre.

            {Codicírio} e {Guadalupe}, livros-irmãos, exploram, além da poesia popular, uma outra faceta do “Códice Dimas Macedo” (que não é o jurista e nem mesmo o poeta), é o personagem de si mesmo, ser de papel, ficção. Aliás, Dimas Macedo, o homem, esta pessoa tão querida dos seus amigos, vai desaparecer, e o personagem que ele criou nos seus poemas vai atormentar ainda os vivos. Mas eu dizia que os dois livros-irmãos exploram uma dimensão do universo poético que é a figuração do cotidiano e do erotismo. O cotidiano, matéria de poesia, foi uma conquista dos poetas modernistas, e Dimas, neste ponto, repousa num dos mestres brasileiros: Vinícius de Moraes. Os poemas sobre as cidades visitadas, verdadeiros cartões-postais, que estão presentes nas primeiras partes dos livros citados, recuperam para a lírica brasileira o prosaico do dia-a-dia, como o poema “Frederico” de {Codicírio} que celebra o cardápio de um restaurante de Fortaleza ou outro de {Guadalupe}, “Atlanta”, que faz referência a uma unidade do Hard Rock Café. São poemas de circunstância que procuram retirar do fato banal o que ele guarda de poético. Em tempos onde a sensibilidade está sendo aniquilada, a poesia é uma resistência, frágil, mas rompe o asfalto. O erótico, também, à moda de Vinícius e Neruda, permeia os desejos da linguagem destes livros e, em especial, de {Codicírio}. O corpo da mulher reaparece na sintaxe, a confirmar que a personagem do códice de Macedo saboreia-se ao dar vazão à sua Anima, ao se deparar com uma femme fatale inventada:Minha querida, o esterno, / é mais do que eterno/ o osso do teu peito. / Fico sem jeito/ olhando o teu vestido/ tão revestido de rosas/ e o corpo tão ardente”.

            Por fim, {Codicírio} fecha mais uma parceria com o múltiplo artista Geraldo Jesuíno. A poesia de Dimas Macedo não seria a mesma sem os projetos gráficos desse bruxo das artes gráficas. Não há como afastar os poemas de Dimas da espacialidade inventiva criada por Jesuíno que, desta vez, aparece, em carne e osso, no final do livro como entrevistador, deixando Dimas em saias curtas quando vasculha a alma dos poemas.

            Não consultes dicionários, caro leitor, os códices e os círios não estão aqui nos sentidos que lhes dão, mas no que lhes pôs um poeta cearense que há mais de décadas burila palavras, lavra e as esconde no bolso do paletó. Saravá, Dimas!

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