quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Permanência de Augusto Pontes


       Dimas Macedo

                                              
 

             No princípio era o verbo. E o verbo, encarnado, fez-se justo. E o verbo, soberano, se chamava Augusto, e de seus ramos, imponentes, se ergueram as Pontes. E as fontes do saber, em Augusto, se tornaram densas. Imensas as suas simetrias com o seu prenome, posto que Francisco antecedia a Augusto, e uma vez que Augusto precedia a Pontes.

            E Augusto Pontes, para todo o sempre, em rendas de opala, tinha a fala mansa e o olhar agudo. E era quase surdo, o nosso personagem, para as vilanias. Aspirava à dúvida e à pluralidade do conhecimento. E o seu argumento, quase que socrático ou peripatético, fazia-se ascético, em tudo; e em quase nada era viperino.

            Augusto era divino num ponto: aquilo que o ligava ao próximo, em grau de amizade. E a felicidade, para ele, consistia nisto: a vida enquanto sinergia é o que pensamos, posto que o mundo, feito norma pura, é expressão da arte.

            Em parte, era um grego; e na outra parte, o rapaz latino era um andarilho irresignado. E mais do que amado, com o passar do tempo, se tornou um mito. E meio sem soberba tinha a alma acesa de hilaridades.

            Era polifônico e mais do que irônico o nosso grande Augusto. E sempre dava susto, na filosofia, com suas estocadas. E não condescendia, em quase nada ou tudo, com a ignorância. Ou quando se fingia, em grau de sonolência, quando conversava.

            Inventou, na mocidade, a Massafeira Livre e a Scala máxima da publicidade. E era a claridade, como marqueteiro, em coisas da política.

            Vivia qual um Buda. E era franciscano e professor de música e de filosofia, e é certo que bebia na contracultura a sua sapiência.

            Em grau de consciência e de coisas da ciência ou da literatura tudo ele sabia. E não se permitia, o soberano Augusto, viver sem liberdade.

            Era largo o seu peito, tal como um protesto armado contra tudo. Fez-se um grande escudo, em terras de Iracema, do socialismo e da linguagem pura, mas a certa altura fixou um ponto e se tornou o novo Príncipe da Cultura.

            As ruas, no entanto, e o Ágora da cidade mais o acolhiam: os bares, os clubes de conversas e as casas de ensaio.

            E no mês de maio, de 2009, fez-se a overdose em noite que chovia. E deu-se a hecatombe, no dia em que seu nome, de morte se encantava, posto que pairava sobre Fortaleza uma nuvem densa, e mais do que imensa, para o todo sempre, foi a sua perda.

      E mais do que acesas resultaram as chamas do conhecimento. E posto que o momento, mais do que augusto, é belo e sacrossanto, que se erga um brinde, em grau de melodia, à sua memória. E que se faça um corte, ressalvando a morte de Augusto Pontes: a) qual a mais solene; b) qual a mais perene de todas as vidas.

O Poeta Vicente Lemos


             Dimas Macedo

                                              
 
                    Vicente Paulo Lemos nasceu aos 12 de outubro de 1951, no sitio Taquari, distrito de Mangabeira, município de Lavras, sendo filho de Joaquim Gonçalves Neto e Cândida Gonçalves de Lemos.

                 Foram seus avós paternos: Agostinho Félix Vieira e Inácia Maria da Conceição; e maternos: Maria Cândida Amorim de Souza e Manuel de Oliveira Lemos.

                Aprendeu as primeiras letras em sua terra natal, com as professoras Maria Luiza Oliveira e Maria do Socorro Oliveira, entre 1964 a 1966, realizando o quarto ano primário e admissão ao ginásio no Seminário Salesiano de Jaboatão (PE), entre 1967 e 1968.

                Prosseguiu seus estudos na Congregação Salesiana de Carpina, no mesmo Estado, onde cursou a primeira e a segunda séries ginasiais, entre 1969 e 1970, concluindo o ginásio em 1972, na Escola Industrial de Pernambuco, nos municípios de Escada e Serra Talhada.

              No final de 1972, mudou-se para Fortaleza, aqui realizando o curso científico, no Liceu do Ceará, entre 1973 e 1975. Ainda em Fortaleza, frequentou o terceiro e o quarto pedagógicos no Colégio João Pontes (1991) e no Instituto de Educação do Ceará (1993).

               Graduou-se em Pedagogia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú, em 2002, e realizou pós-graduação em Administração Escolar, na mesma Universidade, nos anos de 2003/2004.

              Vicente conclui vários cursos de formação profissional na área do turismo, tais os de Guia de Turismo Regional, no SENAC de Fortaleza, em 1997, e Guia de Turismo Nacional, na Escola de Turismo do Ceará, em 2003.

              Na condição de cofundador, é responsável pelas seguintes casas de ensino: Centro de Educação Juvenil Eça de Queirós, Centro de Educação Juvenil Maria Auxiliadora, Centro de Educação Juvenil Dom Bosco e Colégio São Domingos Sávio, tendo, por conta dessa circunstância, se dedicado às atividades de educação fundamental, entre 1975 e 2003.

              Em 1996, criou a Agência Terra da Luz de Turismo e Consultoria Educacional, através da qual presta serviços a Escolas públicas e particulares, organizando e executando aulas de campo e pesquisa com alunos de diversas escolas cearenses.

          Poeta popular e cordelista, pertence à Ordem Brasileira dos Poetas da Literatura de Cordel, sediada em Salvador, e ao Centro Cultural dos Cordelistas do Ceará, tendo sido eleito, em setembro de 2010, para a cadeira número 39 da Academia Lavrense de Letras.

          É autor, entre outros, dos seguintes folhetos de cordel: Irmã Dulce – Sua Vida e Morte em Versos, Chegada de Irmã Dulce ao Céu, Retrato do Sertão, Brasil Menor – A Realidade da Criança Brasileira, Um Grito Contra a Miséria, Apologias Políticas, Jubileu de Ouro do Padre Manoel Lemos de Amorim e Jubileu de Ouro da Paróquia de Nossa Senhora de Fátima.

          Agora, o poeta Vicente Lemos resolve dar um passo no sentido da consolidação da sua poesia, reunindo no livro – Cantos e Encantos na Poesia Popular (Fortaleza, RDS Editora, 2012) o conjunto da sua produção, presenteando, assim, aos leitores com o metro, a sonoridade e os apelos da sua produção, que se expressa, essencialmente, pelo resgate dos valores sociais e pela sutilidade do seu conteúdo.

            Vicente traz no sangue, e assim também no coração o signo cultural e humano da comunidade que o viu nascer, o distrito de São José das Mangabeiras; e entra na literatura para tornar-se irmão do poeta maior do Taquari, esse exímio Pescador de Tabocal que é o escritor Batista de Lima.

             A poesia de Vicente Lemos não foi feita para agradar o mundo burguês; não foi feita para ilustrar as páginas da literatura de cordel nem para fazer a louvação dos poderosos, mas para denunciar as misérias sociais do povo brasileiro e canonizar alguns dos seus heróis de forte apelo popular.

             Na sua construção poemática, encontramos o dia-a-dia dos que insistem em viver, a despeito do capitalismo e da sua perversão. Encontramos na sua produção o milagre da vida transformado em verbo e escritura, e redimensionado, também, em face dos valores da dignidade e da esperança.

              A consciência poética de Vicente Lemos é um dos traços do seu livro de estreia que chama de plano a atenção, porque aberta para o homem e aberta para a graça de Deus, e porque altissonante como a voz dos poetas que sabem encontrar no mundo o seu lugar.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Na Universidade do Porto


                    Dimas Macedo
                                       


              Estive na Europa, neste mês de outubro de 2012, cumprindo compromissos acadêmicos, o que constitui parte da minha missão de professor e de pesquisador. É sempre prazeroso poder aceitar os convites que nunca me faltaram de Universidades tais as de Salamanca (Espanha), San Marcos (Peru), Puebla (México), Le Havre (França), Sófia (Bulgária), Lisboa e Porto (Portugal).

              Mas o convite que recebi para a Universidade do Porto revestiu-se de um prazer especial: partiu do filósofo e escritor português Paulo Ferreira da Cunha, e foi motivado pelos 300 anos de nascimento de Rousseau, um dos meus mestres no campo da Teoria Política, se é que Rousseau foi também um escritor do campo literário e um dos fundadores do romantismo e da modernidade.

               O tema que me coube no Seminário Permanente Interdisciplinar, promovido pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto, versou acerca de Rousseau e a Ideia de Constituição, foi acolhido como conferência de abertura do referido Seminário, cuja coordenação estratégica coube à professora Anabela Leão, cabendo a supervisão e a direção dos trabalhos ao professor Paulo Ferreira da Cunha.

              Porto é, talvez, a mais bela cidade de Portugal, mas, com certeza, é a mais nobre e a mais politizada, com afirmações de liberdade e independência em momentos cruciais da história de Portugal, a começar pela Revolução Liberal de 1820, com tantas influências sobre a nossa autonomia política e a primeira Constituição do Brasil, de 1824.

            O privilégio de ter conhecido a velha e sempre renovada cidade do Porto, convivido com a sua elite acadêmica, desfrutado da beleza do seu patrimônio e do refinamento de seus vinhos e da sua cultura francamente aberta para o novo, compreende uma dádiva dos deuses, que sempre protegem os que amam o conhecimento, e que lutam em defesa da vida e da beleza.

            Louvores sejam dados, portanto, às luzes da compreensão e do intercâmbio cultural e acadêmico. Louvores à Universidade do Porto e à sua nobre Faculdade de Direito. E louvores também e à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, da qual me orgulho de ser professor.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Patrícia Melo - Um Soco no Estômago

                    Nicola Miccione
                                                        

                                                     “Daqui, dessa trincheira – é assim que gosto de chamar

                                                     o meu local de  trabalho, com suas camadas e camadas

                                                     de livros e papéis, formando um recife à minha volta – daqui,

                                                     como Hades, planejo tudo sozinha. Sou o vórtice que leva

                                                     os personagens ao seu destino. Sou responsável por cada gesto

                                                     e cada fala. Quando minha tropa de fodidos abre a boca,

                                                      o grito é meu. Eu decido. Eu digo ataquem.

                                                      Destruam, e eles destroem.”

                     O livro – Escrevendo no Escuro (Rio: Ed. Rocco, 2011), de Patrícia Melo, é um soco no estômago. Sim, daqueles que nos deixam desnorteados e prontos para o nocaute no golpe seguinte. Primeiro livro de contos da dramaturga e roteirista paulista, trata-se de ótimo cartão de visitas para quem ainda não conhece a autora de Acqua Toffana e O Matador – seus dois primeiros livros –, lançados ainda pela Companhia das Letras, e que certamente serão o golpe do nocaute de seus novos leitores.

                 Conhecida como a mais fiel seguidora de Rubem Fonseca, Patrícia Melo é portadora de uma trajetória brilhante e ainda não foi totalmente descoberta pelo grande público, certamente por não abrir mão de uma linguagem direta, politicamente incorreta, sem concessões ou preocupações que hoje empobrecem a literatura, o cinema, e as artes mais populares. Sua obra não poderia “passar” na TV aberta, sem cortes. Com cortes, soaria menor, incompreendida.

                  Sua escrita é simples, absurdamente simples. Igualmente profunda - o que não é contradição. Patrícia demonstra, com absoluta precisão, que o simples é genial e o alegórico é quase sempre cafona. Suas personagens rapidamente entram na cabeça do leitor e lá se alojam, como se velhos conhecidos fossem: vizinhos, parentes ou amigos de longa data.

                  Bastam algumas linhas, um ou dois parágrafos e pronto, sabemos tudo sobre o artista canceroso, sobre a garota de programa, sobre a depiladora chantagista, o policial mulherengo, o legista necrófilo, as duas irmãs carolas no fim da vida e, entre outros, sobre Cecília – a personagem que permeia o livro em takes, por entre os contos do volume, lembrando-nos a toda hora da perturbação mental que aflige todos. Cecília é uma suicida, “um estorvo, um fardo, uma pedra no seu caminho”, como se define no “diálogo” que empreende com a autora fictícia – não a real – do livro.

                  No conto “Encontro à Meia-Noite”, o genial diálogo entre o policial legista necrófilo e a suicida maquiada é travado com a naturalidade de um colóquio entre dois enamorados que acabaram de transar pela primeira vez, na sala, enquanto os pais da moça assistem tv no quarto do lado: “Ninguém vai saber de nada, afirmo. – Sei que posso confiar em você. – Sempre, eu digo. – Depois, voltamos para a mesa de metal, dou-lhe um beijo na testa e fecho seus olhos. Tiro suas medidas e coloco o suporte embaixo de suas costas, fazendo com o que seus braços e pescoço caiam para trás. – Isso facilita a abertura do tórax.”

                  Seria terrivelmente simplório definir Cecília ou qualquer outra personagem do livro como alter-egos da escritora. Sequer do conto que dá título ao livro pode se inferir qualquer referência à escritora que já roteirizou para o cinema o livro – Bufo & Spallanzani, de Rubem Fonseca, e O Xangô de Baker Street, de Jô Soares. Os fodidos da vida que passeiam pelo livro de Patrícia Melo são personagens reais, que choram, bebem, fazem sexo, morrem de medo de morrer, têm depressão, sofrem de solidão, acordam putos e frustrados com suas vidas pequenas.

                  São fotografias e não meras representações de cada um de nós. Esses arquétipos estão em cada um dos contos como para nos lembrar da pobreza que é uma vida levada sem propósitos, sem reconstruções verdadeiras. Todos sofrem por existir e anseiam, mais do que tudo, nascer e começar tudo de novo. E todos enfrentam a dura realidade dos sonhos desfeitos, da grana apertada, das traições e, sobretudo, do frio e inevitável encontro com a morte.

                  Os gritos dos fodidos da vida e toda e escória humana que trafegam no último livro de Patrícia Melo – Escrevendo no Escuro –, não são gritos deles próprios, não são gritos da autora – nem a real nem a fictícia –, são gritos também dos que leem.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

A Arte de Ana Costalima

             Dimas Macedo
                                            
 
              Entre todas as linguagens com as quais a sociedade reveste as suas intenções e as suas formas, parece ser a arte aquela que agrega o melhor conjunto de valores e o mais sofisticado de todos os apelos.

            Acredito ser impossível apreciar a arte de boa qualidade e não desejar tê-la para si, uma vez que a arte é a extensão do nosso imaginário e do nosso desejo de estar-no-mundo e de lutar até onde as energias da vida possam permitir.

A arte atravessa os caminhos escuros do nosso inconsciente e, na proporção em que se vai tornando soberana, projeta no espaço do nosso exterior o caleidoscópio no qual nos espelhamos. E não há como fugir da sua linguagem sedutora, da sua tentação desafiante e dos lençóis de linho com os quais ela nos envolve.

Ana Costalima é uma artista plural e multifacetada. Toca todos os instrumentos da escansão poemática, e transita da escultura do ferro e da gravura à pintura de linhagem clássica que aponta para o limite de todos os desejos.

E sabe manipular, com esmero, o desenho de linhas abstratas e a alquimia das formas como se fosse uma equilibrista que caminha por fios de arame sem a necessidade de nenhum elemento de apoio.

A escultura parece ser, de plano, o seu supremo campo de domínio, mas não o é. Ana Costalima é mais do que aquilo que aparenta ser; e é muito mais ainda do que aquilo que a respeito dela se pode imaginar.

Em sua exposição – Linhas da Alma –, por exemplo, ela demonstra o quanto é possível transformar as estruturas pesadas dos materiais resistentes em folhas laminadas em branco e em linhas que apontam para as grandes levezas da vida.

A dança das formas resistentes, a leveza significante do traço, o desenho simbólico da sinergia da alma, a comandar o prazer e o deleite dos apreciadores, são valores e achados com os quais Ana Costalima nos encanta.

Todos os recursos da criação artística que lhes foram facultados, ela os reuniu nos objetos que constituem essa exposição, pois o prazer estético que ela nos revela a partir de suas esculturas é dos mais intrigantes que até hoje se fez no Ceará.

Um crítico de arte talvez quisesse inventar teorias ou escolas, tendências estéticas ou didáticas para enquadrar a perspectiva de trabalho de Ana Costalima, como se ela fosse um artista que necessita de classificação. Mas não é isto o que penso a respeito da sua produção.

Acho que Ana Costalima é uma artista de traços criativos que primam pela leveza da forma e do desenho, e que nos dizem também, com muita sutileza, que a arte de viver implica, necessariamente, em tomar a criação como ponto de partida.

            E a criação como ponto de partida é tudo o que importa a Ana Costalima, especialmente quando ela se debruça sobre o ofício de escrituração do poema, pois essa grande artista cearense é também poetisa, e poetisa no sentido mais justo da palavra.

           Ana Costalima, como poucos artistas que conheço, trafega, com esmero, pelas linhas do imponderável. Não é uma engenheira do poema, no sentido cabralino do termo. Não escreve pela emoção, mas pelo ouvido.

          Compreende sinais, interpreta signos, fixa a atenção num ponto qualquer do horizonte, desce o olhar sobre o papel e o poema explode em forma de canção e de resguardo de sua doce sensibilidade.

            Faz poemas como se estivesse ouvindo alguma partitura. Vozes musicalizadas. Melodias sonoras. Texto preparado para a virtuose e para as grandes energias do corpo.

            A palavra, em Ana Costalima, constitui a sedução de todos os prazeres. O movimento, o alento, o alimento, nesta ordem de partida do zen oriental, integram a sinergia do texto que ela nos dirige.

            É impossível olhar para Ana Costalima e não sentir. Olhar para Ana Costalima e não criar. Quem a percebe, pela primeira vez, não tem como evitar os seus olhos e a sua efusão em abraçar. Tudo nela é poesia e determinação. Tudo, em Ana Costalima, me parece a expressão poética do desejo, assim como se tece a melodia que se perfaz na concha e no rumor. 

Barros Alves e a Cultura Popular

             Dimas Macedo
                                                    
                                           Barros Alves

               A civilização do Nordeste faz-se toda ela tendo a cana-de-açúcar qual a sua base de susten­tação. Assim, justo seria aceitar que um de seus derivados viesse a integrar o cardápio dos moradores da região. A cachaça, ao lado do açúcar e da velha rapadura, industrializada nos engenhos de boi do Cariri, constitui, talvez, o mais popular dos produtos agrícolas fabri­cados no interior do Nordeste.

            A sua produção em escala comercial, para atender às exigências do mercado interno e dos consumidores internacionais, não desnaturou a sua importância tradicional, em que pese à substituição das fábricas de melaço e dos an­tigos engenhos de boi pelos equipamentos com que o parque industrial moderno tem procurado atender às suas necessidades de lucro e expansão­.

            Se a civilização do boi, que puxava os toscos engenhos de cana do Nordeste, já foi minuciosamente estudada; se a cultura do açúcar e, especialmente, da rapa­dura já foram igualmente objeto de pesquisa e observação - lógico seria que a sociologia da cachaça viesse a merecer a atenção de historiadores.

             É justamente um dos aspectos da sociologia da cachaça, no caso a sua apologia feita por repentistas, cantadores e poe­tas de bancada aquilo que o jornalista e poeta Barros Alves se propõe a estudar no seu livro – Cachaça, Cordel e Cantador (For­taleza, Editora Natacha, 1991).

            Trata-se, no caso, de um cuidadoso inven­tário daquilo que a verve do poeta popular melhor produziu sobre o assunto, em tiradas que beiram às raias do picaresco e do coloquial, do lírico e das aliciantes pitadas de humor.

            Nesse livro de Barros Alves, como assegura F. S. Nascimento, revela-se a circunstância de que "os fingimentos amorosos tiveram a pinga como aplacadora de iras ou como debeladora de insônias", sendo daí proveniente "a fortuna temática desse lenitivo emocional".

            E linhas adiante, acrescenta o mesmo escritor: "Tudo o que foi pos­sível reunir sobre o folclore da aguardente, esse arguto cordelista procurou enfeixar neste volume, enriquecendo cada texto com uma análise fundamentada em sólida bibliografia".

            No texto de abertura do livro, recorrendo a uma séria meto­dologia de pesquisa, Barros Alves busca justificar o conteúdo da matéria, interessando-lhe tanto as origens da poesia do povo, quanto as raízes do hábito alimentar em cujo contexto a cachaça se insere.

           Para ele, "o cancioneiro popular está recheado de cachaça, mas é na lite­ratura de cordel onde a presença dela é mais constante". Pensa o autor que "pouquíssimos outros temas rivalizam com a ca­chaça na Literatura de Cordel", lembrando-nos a figura do Padre Cícero Ro­mão, sobre quem os poetas de cordel ainda tecem loas; o mar, que os bardos sertanejos cantam enlevados, muitos deles só de ouvir dizer, pois nasceram e se criaram no sertão; e os ensinamentos da história sagrada.

            No capítulo primeiro, a abordagem aparece centrada na procedência da cachaça, que teria vindo de Portugal, onde era consumida, segundo Câmara Cascudo, nas "quintas fidalgas do Minho", pelo que se depreende que a origem da ca­chaça não é tão plebeia quanto se pensa.

           Popularizada no Brasil, a cachaça tornou-se a aguardente do País, nacionalizando-se com os movimentos políticos em prol da independência, principalmente quando os patriotas passaram a consumi-la em maior quantidade, em con­traposição aos vinhos estrangeiros, especialmente os portugue­ses.

           Nos capítulos intitulados: “Amada de Todos", "Cachaça e Poesia", "O Clero e a Tropa" e "Os Bichos e a Cachaça", Barros Alves demonstra completo domínio do assunto, recheando sua pesquisa com produções de poetas como Cego Aderaldo, Leandro Gomes de Barros, Romano do Teixeira, Chica Barrosa, Zefinha do Chabocão e José de Matos, este último, o mais genial cachaceiro que a poesia popular produziu.

            Inúmeros outros aspectos da pesquisa merece­riam ser destacados. Entretanto, fiquemos por aqui. A Im­portância do tema confirma a importância do livro. Escritor com nome firmado, Barros Alves é intelectual que fala por si.

           Autor do ensaio – A Literatura de Cordel Como Instrumento de Conscientização, Prêmio Leonardo Mota, de Folclore (Fortaleza, Secretaria de Cultura, 1983), e de di­versos folhetos de cordel, sua verve ainda se derrama pela feitura de poemas de apelo não popular e de trabalhos tais – O Desabusado Mundo da Cultura Popular (Fortaleza, Edições do Autor, 1984) e Tancredo Neves na Literatura de Cordel (Fortaleza, Edição do Autor, 1985).

          Trata-se de pesquisador de vasta formação humanística, forrado pelas leituras do clássico e do popular, cujos conhecimentos atestam a sua posição de cordelista maior e de intelectual que se eleva na cultura do Ceará, na atualidade.