terça-feira, 9 de outubro de 2012

Patrícia Melo - Um Soco no Estômago

                    Nicola Miccione
                                                        

                                                     “Daqui, dessa trincheira – é assim que gosto de chamar

                                                     o meu local de  trabalho, com suas camadas e camadas

                                                     de livros e papéis, formando um recife à minha volta – daqui,

                                                     como Hades, planejo tudo sozinha. Sou o vórtice que leva

                                                     os personagens ao seu destino. Sou responsável por cada gesto

                                                     e cada fala. Quando minha tropa de fodidos abre a boca,

                                                      o grito é meu. Eu decido. Eu digo ataquem.

                                                      Destruam, e eles destroem.”

                     O livro – Escrevendo no Escuro (Rio: Ed. Rocco, 2011), de Patrícia Melo, é um soco no estômago. Sim, daqueles que nos deixam desnorteados e prontos para o nocaute no golpe seguinte. Primeiro livro de contos da dramaturga e roteirista paulista, trata-se de ótimo cartão de visitas para quem ainda não conhece a autora de Acqua Toffana e O Matador – seus dois primeiros livros –, lançados ainda pela Companhia das Letras, e que certamente serão o golpe do nocaute de seus novos leitores.

                 Conhecida como a mais fiel seguidora de Rubem Fonseca, Patrícia Melo é portadora de uma trajetória brilhante e ainda não foi totalmente descoberta pelo grande público, certamente por não abrir mão de uma linguagem direta, politicamente incorreta, sem concessões ou preocupações que hoje empobrecem a literatura, o cinema, e as artes mais populares. Sua obra não poderia “passar” na TV aberta, sem cortes. Com cortes, soaria menor, incompreendida.

                  Sua escrita é simples, absurdamente simples. Igualmente profunda - o que não é contradição. Patrícia demonstra, com absoluta precisão, que o simples é genial e o alegórico é quase sempre cafona. Suas personagens rapidamente entram na cabeça do leitor e lá se alojam, como se velhos conhecidos fossem: vizinhos, parentes ou amigos de longa data.

                  Bastam algumas linhas, um ou dois parágrafos e pronto, sabemos tudo sobre o artista canceroso, sobre a garota de programa, sobre a depiladora chantagista, o policial mulherengo, o legista necrófilo, as duas irmãs carolas no fim da vida e, entre outros, sobre Cecília – a personagem que permeia o livro em takes, por entre os contos do volume, lembrando-nos a toda hora da perturbação mental que aflige todos. Cecília é uma suicida, “um estorvo, um fardo, uma pedra no seu caminho”, como se define no “diálogo” que empreende com a autora fictícia – não a real – do livro.

                  No conto “Encontro à Meia-Noite”, o genial diálogo entre o policial legista necrófilo e a suicida maquiada é travado com a naturalidade de um colóquio entre dois enamorados que acabaram de transar pela primeira vez, na sala, enquanto os pais da moça assistem tv no quarto do lado: “Ninguém vai saber de nada, afirmo. – Sei que posso confiar em você. – Sempre, eu digo. – Depois, voltamos para a mesa de metal, dou-lhe um beijo na testa e fecho seus olhos. Tiro suas medidas e coloco o suporte embaixo de suas costas, fazendo com o que seus braços e pescoço caiam para trás. – Isso facilita a abertura do tórax.”

                  Seria terrivelmente simplório definir Cecília ou qualquer outra personagem do livro como alter-egos da escritora. Sequer do conto que dá título ao livro pode se inferir qualquer referência à escritora que já roteirizou para o cinema o livro – Bufo & Spallanzani, de Rubem Fonseca, e O Xangô de Baker Street, de Jô Soares. Os fodidos da vida que passeiam pelo livro de Patrícia Melo são personagens reais, que choram, bebem, fazem sexo, morrem de medo de morrer, têm depressão, sofrem de solidão, acordam putos e frustrados com suas vidas pequenas.

                  São fotografias e não meras representações de cada um de nós. Esses arquétipos estão em cada um dos contos como para nos lembrar da pobreza que é uma vida levada sem propósitos, sem reconstruções verdadeiras. Todos sofrem por existir e anseiam, mais do que tudo, nascer e começar tudo de novo. E todos enfrentam a dura realidade dos sonhos desfeitos, da grana apertada, das traições e, sobretudo, do frio e inevitável encontro com a morte.

                  Os gritos dos fodidos da vida e toda e escória humana que trafegam no último livro de Patrícia Melo – Escrevendo no Escuro –, não são gritos deles próprios, não são gritos da autora – nem a real nem a fictícia –, são gritos também dos que leem.

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