quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Entrevista Sobre Dona Fideralina


      Dimas Macedo


                                                                                   (Entrevista concedida ao Prof.Rui Martinho
                                                                                                                         Rodrigues, na Livraria Cultura de Fortaleza, 
                                                                                                                          aos 26 de março de 2014).
                                             
Dimas Macedo – Dona Fideralina é a representação máxima da oligarquia de Lavras da Mangabeira - Ceará. Filha do tenente-coronel João Carlos Augusto, o qual tem o mesmo nome do pai natural dele, o ex-governador da Capitania do Ceará, João Carlos Augusto de Oyenhausen-Gravenburg, descendente de uma linhagem austríaca-alemã. Consta que ele foi à Povoação de Lavras e para ali voltou algum tempo depois para batizar o filho, nascido em 1804, a quem deu o nome de João Carlos Augusto.

Rui Martinho Rodrigues – Esse episódio muda até o sobrenome da família.

Dimas – Isso. É aí que nasce a família Augusto, de Lavras da Mangabeira CE). Os ascendentes de João Carlos Augusto, genitor de Dona Fideralina, são os Oliveira Banhos, aí incluídos os seus pais, no plano da vida civil [Francisco de Oliveira Banhos e Ana Rosa de Oliveira Banhos]. Já escrevi mais de uma vez sobre isso. Existe uma genealogia da família Augusto, Os Augustos, de Joaryvar Macedo, que teve uma segunda edição tirada em 2009, pela historiadora Rejane Augusto, que é integrante dessa família. O pai de D. Fideralina é o primeiro a ter esse sobrenome [Augusto]. Ele teve onze filhos. Ela é a filha mais velha.

Rui – O pai dela é que foi batizado pelo governador?
                   
Dimas – É, foi batizado pelo governador, com o mesmo nome deste. Ele teve uma grande influência na formação da Vila de Lavras, que foi oficialmente criada 1818. Chefe militar e político de grande habilidade, em Lavras, ele enfrentou as tropas de Pinto Madeira, em 1832, antes da derrocada desse velho caudilho nas cercanias do Icó. João Carlos retoma a Vila de Lavras das garras de Pinto Madeira. Posteriormente, em várias legislaturas, ele foi vereador, presidente da Câmara Municipal, deputado provincial em duas legislaturas. Morreu assassinado por questões políticas em 1856.

Rui – Quando ele morreu a filha [Fideralina] já era adulta?

Dimas – Já era casada. O marido era uma espécie de ajudante de ordens do pai, que o transformou em delegado de polícia, depois ele foi vereador, duas vezes presidente da Câmara. O seu nome era Ildefonso Correia Lima. Por esta via, deu-se a transmissão da herança política forte, herdada pela senhora absoluta de Lavras da Mangabeira. Quando o pai de Fideralina morreu, o marido dela assumiu o comando político da vila de Lavras, mas não a liderança política da família Augusto.

Rui – Ela tinha irmãos, certamente...

Dimas – Tinha. Tinha irmãos homens...

Rui – Mas o cunhado, irmão do esposo dela, é que assumiu a liderança política da parentela...

Dimas – Não. Todos os cunhados dela (com exceção de um deles), assumiram, por diversas vezes, funções de comando na vila de Lavras, mas não eram irmãos do esposo dela.

Rui – Casados com irmãs dela?

Dimas – É. Isso prova que a tutela dela era muito forte, porque eles tinham divergências entre si. Três desses seus cunhados foram presidentes da Câmara; dois foram intendentes municipais. O marido dela morreu em 1876. Está enterrado embaixo do altar-mor da Igreja Matiz de São Vicente Ferrer, com placa muito visível. Ela [Fideralina] assume o controle político da vila de Lavras após a morte do marido.

Rui – Interessante, porque a essas alturas ela já tinha filhos adultos, filhos varões...

Dimas – Não, ainda não. Tinha adolescentes. Veja: o filho mais velho dela, Honório Correia Lima, tinha 21 anos; o segundo, Ildefonso Correia Lima, tinha 16; e o terceiro, Gustavo Augusto Lima, tinha 15 anos apenas. Mas os três viriam a ser deputados. O segundo e o terceiro, tornar-se-iam, também, vice-governadores do Ceará, valendo-se, de alguma maneira, da influência política da mãe.

Rui – Ela é de 1832, não é?

Dimas – Ela é de 1832...

Rui – Ela enviuvou com 44 anos...

Dimas – É. Ela enviuvou aos 44 anos. Honório, o seu filho mais velho, nasceu em 1855...

Rui – O Gustavo foi assassinado em Fortaleza...

Dimas – É, foi assassinado em Fortaleza, em 1923, quando era deputado estadual.

Rui – Vingança, por causa de briga de família.

Dimas – Exatamente isso. Um crime de vingança. Ele foi um dos líderes da Revolução de 1914, ao lado de Floro Bartolomeu, com quem se desentendeu. O grande problema do comando da Revolução talvez tenha sido a briga deles dois.

Rui – E o Coronel Honório...

Dimas – Outro filho dela que teve grande projeção foi o Honório Correia Lima, que também foi deputado em várias legislaturas. Este foi o sujeito que a desafiou, em Lavras. Ela o derrubou do poder.

Rui – Era o “Caraolho”.

Dimas – É, era o “Caraolho”, que ela chamava de “Torto” por ele ser estrábico.

Rui – ...que ela botou para fora da Intendência municipal.

Dimas – Sim, ela jamais perdoou a ousadia dele, jamais aceitou sua liderança. Segundo a historiadora Rejane Augusto, ela o teria derrubado não da chefia da Intendência, mas do comando do partido governista. Tinha outro filho, que viveu sempre em divergência com ela, foi prefeito de Lavras, depois da morte dela, mas nunca teve a coragem de desafiar a sua liderança. Se destacou mesmo foi como professor de latim e francês, era formado pelo Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro. Trata-se do coronel Francisco Augusto Correia Lima, que é bisavô do deputado Heitor Férrer. O filho ungido por ela era o Coronel Gustavo, o qual, apesar do seu gênio político, se submeteu à vontade da mãe, e para com Gustavo ela foi bastante generosa.
                            
Rui – O único que não teve divergência...

Dimas – É, ele foi um grande político, que transcendeu o município...

Rui – Esse era avô do Dr. Vicente Augusto...

Dimas – É, era o avô do Dr. Vicente Augusto.

Rui – E o Torto é bisavô do nosso prefeito?

Dimas – O torto é trisavô do Roberto Cláudio, atual prefeito de Fortaleza [eleito em 2012]. Outro filho dela, o quarto a entrar na política, foi o Dr. Ildefonso Correia Lima, que foi vice-governador do Ceará, na época do General Bizerril, na última década do século dezenove; foi professor e Diretor do Liceu, formado em Medicina no Rio de Janeiro e que se tornou deputado provincial no Império e deputado federal na República.

Rui – Interessante que no alto sertão, no meio dessa violência toda, havia uma tradição de incentivar o cultivo de letras, inclusive de letras clássicas...

Dimas – Letras clássicas. O coronel Gustavo estudou no célebre Colégio do Padre Rolim, em Cajazeiras, na Paraíba. Segundo o Padre Heliodoro Pires, no tempo em que esteve no Colégio do Padre Rolim, ele foi contemporâneo do Padre Cícero, com quem sempre manteve uma ligação estreita. Já com relação a Honório, eu nunca consegui localizar onde ele realizou a sua formação. [Nota do autor, em 2016: Honório estudou no Internato do Sagrado Coração, no Crato] [...]. O Dr. Ildefonso cursou o Seminário do Crato, o Liceu do Ceará e se formou pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro [Faculdade Nacional de Medicina]. Foi um grande cientista, deixou vários livros publicados na área da ciência médica. Foi um médico de vanguarda. Outro filho de Dona Fideralina, que estudou no Liceu do Ceará, foi o coronel Francisco Augusto, que depois seguiu para o Rio de Janeiro, onde cursou o Colégio Pedro II. Estes foram os quatro filhos dela que mais se destacaram.

Rui – E filhas e genros de Fideralina?

Dimas – A vida política dos genros passou pelo crivo das suas imposições. Dois daqueles que foram seus genros assumiram o comando oficial do município; outro, o Dr. Gilberto Saboia, foi promotor público e juiz de direito da Comarca. O infortúnio maior de Dona Fideralina decorreu da briga dela com a irmã, Dulcéria Augusto de Oliveira, a Pombinha. Entraram em divergência, e a divergência se estendeu por bastante tempo. Foi o que levou ao morticínio de 1922, quando três sobrinhos dela [Fideralina] foram assassinados, sendo chefe da facção política triunfante o seu neto, Raimundo Augusto Lima.

Rui – O pai do Dr. Vicente...

Dimas – ...Pai do Dr. Vicente Augusto. O coronel Raimundo Augusto, nessa luta, viu tombarem sem vida dois primos legítimos, um deles seu cunhado, casado com uma das suas irmãs. Os dois jovens políticos que aí morreram eram filhos do coronel José Leite de Oliveira, que era casado com Amélia Augusto Leite, filha de Dulcéria Augusto. Foram mortos, portanto, dois netos da velha Pombinha. Nessa luta morreu ainda um sobrinho de Fideralina, o major Eusébio Tomaz de Aquino, que era comandante da Guarda Nacional. Isso ocorreu em 1922. Nessa briga houve outras pessoas baleadas, inclusive o coronel Raimundo Augusto, que foi varado por uma bala que teria passado a meio milímetro do seu coração. [...]. Isso foi terrível para a história de Lavras.

Rui – Qual a origem de tanta desavença, de tanta inimizade no seio de uma família com gente tão culta?

Dimas – Em 1907, D. Fideralina derrubou o seu filho, Honório Correia Lima, da chefia do partido governista local. Para isso, ela mandou buscar cangaceiros em Pajeú das Flores, em Pernambuco, que entraram em Lavras e fizeram a deposição do Honório. Ela teria se colocado na frente dos cabras armados e teria dito que, quem acertasse no filho que seria deposto, morreria. Ela chamava este filho de Torto porque ele era estrábico. Foi um teste de força muito grande (o que estava em jogo era o poder político). Honório era sócio do irmão, Gustavo, num armazém de secos e molhados. Após o tiroteio, durante a noite, à luz de lamparina, eles apartaram a sociedade, e em seguida Honório foi embora de Lavras para Caririaçu, onde residia uma irmã dele.

Rui – Foi tentar organizar uma volta.

Dimas – É. Parece que ele foi tentar organizar a volta, mas não o fez. Veio para Fortaleza, continuou interferindo na política, mas o ódio ficou plantado no seio da família. Segundo relatos, entre as suas disposições de última vontade, ele pediu para ser enterrado em decúbito ventral, com o ânus virado para Lavras, para onde jurava ter expelido todos os seus dejetos, após a sua deposição. Esse relato pode ser encontrado no meu livro Lavrenses Ilustres (3ª ed. 2012). Honório não organizou a sua volta, mas o Cariri todo se uniu, com exceção de Juazeiro, para fazer a deposição do Coronel Gustavo e de Dona Fideralina. Esse foi o seu grande teste de força. Mas Lavras da Mangabeira não cedeu e passou para a história da região como a única cidade do Cariri que não ruiu ao tempo do chamado Ciclo das Deposições. Dona Fideralina e o Coronel Gustavo provaram, nessa memorável refrega, que eram ossos duros de roer.

Rui – Os ódios eram muito profundos rsrsrs.

Dimas – Muito profundos e o Coronel Gustavo, o filho ungido de Fideralina, parece que tinha muitos inimigos. A briga de Dona Fideralina com a sua irmã Dulcéria [Pombinha] resultou numa coisa terrível. Dulcéria era sogra do Honório, que era casado com uma prima legítima. Ela considerou injusta a derrubada do seu genro pela sua irmã, D. Fideralina. Jamais admitiu que a irmã pudesse ter derrubado o próprio filho do poder. Nasceu, possivelmente, aí, uma inimizade tão grande entre essas duas irmãs que, quando o Franco Rabelo se elegeu governador do Ceará, Dulcéria comemorou o fato de uma maneira bastante exagerada, especialmente porque D. Fideralina apoiava o Nogueira Accioly, que tinha, por sua vez, o apoio dos grandes coronéis da sua época. O Coronel Honório, no entanto, era um homem esclarecido, tinha uma mentalidade política elevada...

Rui – que vinha de uma tradição de letras...

Dimas – É, que vinha de uma tradição de letras. Ele teve a ousadia de divergir da mãe. Foi o único dos filhos a enfrentá-la. O coronel Francisco Augusto Correia Lima (outro filho dessa  matriarca lavrense) só veio a se firmar depois que a mãe morreu. Ela tinha entregue o poder a alguns parentes e prepostos. Mas depois que permitiu que Honório assumisse o poder, ele se recusou a passar o comando para Gustavo. Ele realmente era um líder. Eis aí a raiz mais forte de uma grande contenda.

Rui – Na história dessa briga, eu procurei saber como eram as relações da Fideralina com a nora, esposa desse filho, o Torto, porque o leito influencia muito essas coisas.

Dimas – A relação era de inimizade. Interessa notar que Dulcéria [sogra de Honório] era também sogra do Coronel Gustavo. Quando Franco Rabelo foi eleito governador do Ceará, ela fez uma promessa, que era ir da casa dela, de joelhos, até o altar da Igreja Matriz, para pagar uma promessa pela derrota da irmã. Dizem que ela ficou com os joelhos ensanguentados, por conta dos pedregulhos encontrados no caminho. Quando estava para morrer, Fideralina mandou um pedido de desculpas para Dulcéria, pelo que tinha feito, pela forma como tinha tratado o Coronel Honório, e perguntou se podia receber uma visita dela [Dulcéria], para que pudesse lhe pedir perdão. Porém Dulcéria mandou dizer que “se for para pedi perdão, ela está perdoada daqui”. Não foi, portanto, à casa da irmã, apesar de serem vizinhas, separadas por um beco, que tinha e ainda tem a largura de uma rua estreita.

Rui – Ainda no plano familiar, quais foram os seus outros desafios?

Dimas – Além do assassinato do pai dela, João Carlos Augusto, e da sua tia pelo lado paterno, Cosma Francisca de Oliveira Banhos, o seu irmão mais velho, Ernesto Carlos Augusto, também foi assassinado, em 1874, dois antes da morte do marido dela, o major Ildefonso Correia Lima, falecido em 1876. Fideralina, então, estava desamparada: haviam morrido os dois principais varões da família.

Rui – O pai foi assassinado, a tia foi assassinada, o marido foi assassinado, o irmão foi assassinado...

Dimas – O marido não foi assassinado, embora tenha morrido cedo e se metido em muitas desavenças.

Riu – Não?

Dimas – Não. O irmão, Ernesto Carlos Augusto, que poderia ter sido um líder político, um possível sucessor do pai, na política de Lavras, é que foi assassinado. Mas nessa lista também deve constar o nome do seu primeiro neto a se formar em Medicina, Ildefonso Augusto Lacerda Leite.

Rui – Todos esses crimes eram crimes políticos?

Dimas – Crimes políticos. Mas o irmão de Fideralina, Ernesto Carlos Augusto, teve a sua morte atribuída ao padre Joaquim Machado da Silva, vigário coadjutor da Paróquia de Lavras. Na época [1874], esse fato repercutiu em toda a Província, mas nunca foi esclarecido qual foi o móvel do crime. Em 1900, o primeiro neto de Fideralina a se formar em curso superior e o primeiro, também, a doutorar-se em Medicina, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, com a tese Ensaios de Filosofia Natural, Ildefonso Augusto Lacerda Leite, foi clinicar na Paraíba, na vila de Princesa, onde casou-se com uma filha do coronel Erasmo Alves Campos.

Rui – Essa moça é que era noiva do delegado?    

Dimas – É, o delegado a queria como mulher. O jovem médico se estabeleceu em Princesa e ali casou com Dulce Florentino Campos, mas depois foi trucidado pelo delegado daquela localidade, Manoel Florentino, mancomunado com o elemento José Policarpo e com o apoio do Padre Raimundo Nonato Pita, vigário daquela Freguesia. Segundo relatos (existe uma plaqueta do coronel Erasmo Campos, chamada Memorial, versando sobre o assunto), o delegado desejava a moça que se tornou mulher do Dr. Ildefonso, o qual era maçom e possuía ideias políticas avançadas. Mas quando Ildefonso, o primeiro neto dela, o neto de quem ela houvera feito o parto (as filhas pariam na casa dela) tombou assassinado, Fideralina Augusto não contou conversa: determinou a invasão de Princesa, numa das maiores ousadias que um chefe político podia ter perpetrado no interior do Nordeste.

Rui – Ela habitualmente agia como parteira ou só para as filhas ela fazia este papel?

Dimas – Só para as filhas. A invasão de Princesa está relatada por Joaryvar Macedo no seu livro – O Império do Bacamarte (Fortaleza: Casa de José de Alencar, 1990), no capítulo intitulado “O Batalhão de Dona Fideralina”, que foi comandado por Zuza Lacerda. O féretro foi enterrado no cemitério de Princesa, com as pernas para o lado de fora da sepultura. Depois, os restos mortais do Dr. Ildefonso foram trazidos para Lavras e enterrados em uma sepultura sobre a qual ressumbra o símbolo do seu credo político – a Maçonaria. Esse neto de Dona Fideralina era maçom. Eu sempre tive a curiosidade de conhecer a tese de doutoramento do Dr. Ildefonso, mas nunca a localizei. [Em 2016, a escritora lavrense, Cristina Couto, trouxe para o Ceará uma cópia da referida tese, encontrada nos arquivos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a qual foi acessada pelo autor]. 

Rui – E a relação dela com Marica Macedo do Tipy?

Dimas – Ela teve uma proximidade muito grande com Marica Macedo, de Aurora. O segundo casamento de Marica Macedo foi em Lavras da Mangabeira, sob o seu beneplácito. Essa proximidade entre as duas teve no futuro a sua virtuosidade: foi nessas duas mulheres que Rachel de Queiroz se inspirou para escrever a sua obra-prima: o romance Memorial de Maria Moura.

Rui – Quem mais teve a ousadia de desafiar D. Fideralina?

Dimas – Além do Coronel Honório, seu filho, a outra dor de cabeça dela foi o Monsenhor Miceno Linhares, que foi vigário de Lavras durante 49 anos, mas que foi também deputado e presidente da Assembleia Legislativa do Ceará. Acho que ele foi cinco vezes deputado. Era considerado um dos grandes oradores sacros do seu tempo.

Rui – Ela não se intimidava com a batina?

Dimas – Não, de jeito nenhum! E por que ela tinha tanta divergência com o Monsenhor Miceno? Porque ele era uma pedra no sapato dela, porque ele tinha influência estadual. Ela fez uma devassa na vida desse sacerdote. Descobriu que ele tinha tido um caso de amor em Tauá e rasgou essa informação junto aos seus paroquianos. Mandou imprimir um panfleto que foi distribuído na cidade de Lavras. Essa “queda” do Monsenhor Miceno, por sinal, foi muita benfazeja. Esse filho do Monsenhor Miceno tornou-se um farmacêutico e político de expressão em Tauá e dois dos seus descendentes destacaram-se no campo da política.

Rui – Parece que isso não era estranho na época...

Dimas – Não, não era estranho...

Rui – a nossa história está cheia de personagens ilustres filhos de padres.

Dimas – É. Muita cheia, por sinal.

Rui – Padre gostava de mulher...

Dimas – É. Parece que gostava. O problema é que o Monsenhor Miceno era muito conservador, muito austero, descendente de uma família tradicional, que eram os Linhares. Aquilo era imperdoável e ela [Fideralina] rasgou a vida do santo padre diante dos seus paroquianos, coisa que ela fazia com muito gosto. Ela não perdoava adversário. Tanto em Lavras, quanto em Aurora ou em Missão Velha, ela nunca perdoou os adversários. Esteve envolvida em várias refregas por conta de não suportar a liderança de ninguém. Se você parar para ler o livro do Joaryvar Macedo – Império do Bacamarte –, você vai perceber que, em 1898, dois anos antes da invasão de Princesa, ela já estava envolvida na deposição de um Intendente, na cidade do Crato. Ela era muito inquieta. Tinha o sangue quente, não levava desaforo para casa nem suportava o poder político de ninguém. Queria mandar no mundo inteiro mesmo, como diz uma quadra popular.

Rui – Ela não se detinha diante de laços consanguíneos, não se detinha diante do clero, não se detinha diante de nada.

Dimas – Não se detinha diante de nada. Um fato que você deve explorar no seu estudo, e que eu acho que falta ser explorado, é a transgressão do código moral e sexual por parte de Dona Fideralina. Não se tem conhecimento de que ela tenha traído o marido, mas o certo é que ela ficou viúva muito jovem. Os seus adversários, inclusive no âmbito da sua família, asseguram que ela teve os seus affairs. Numa entrevista publicada em 2003, pela Fundação Cultural de Fortaleza, baseado em fontes orais e na memória de muitos lavrenses, eu me refiro a um desses casos, porém isso deixou um descendente dela bastante irritado, como se eu estivesse denegrindo a memória de Dona Fideralina. Nesta entrevista vou ficar por aqui, mas não posso esconder que em Lavras existia um coronel que dizia que ela comia em suas mãos.

Rui – E a vida social de Dona Fideralina, como era?

Dimas – Diferentemente de muitas mulheres do seu tempo, Dona Fideralina era chegada à bebida. No início do século vinte, ela era carregada de liteira pelas ruas de Lavras. Nesse sentido, eu colhi depoimentos de dois netos dela: a pintora Sinhá D’Amora e o general Edilberto Pinto Nogueira; e de um dos seus bisnetos: Dr. Adauto Santos Lima, que foi professor da Universidade Federal do Ceará. Eles, na infância, viram ela sendo carregada por escravos e bebendo a sua zinebra.

Rui – E a história dos negros do Sítio Tatu?

Dimas – É interessante observar que o sítio Tatu, em Lavras da Mangabeira, onde ficava a residência de Fideralina, era o único sítio daquela região que tinha um criatório de escravos e cuja estrutura física ainda não foi modificada. Lá existe a capela, dedicada a Nossa Senhora da Conceição, a casa grande e os escombros de um engenho. Esses três símbolos estão lá, juntamente com a senzala e o chamado quarto do cuvico. A senzala continua lá. Fideralina entrou o século vinte criando negros. Ela criava negros e vendia negros para quem deles necessitasse.

Rui – Ignorou completamente a Abolição.

Dimas – Sim, ignorou completamente a Abolição. Um dos negros nascidos no [sítio] Tatu, filho de um dos seus escravos, tornou-se a maior referência do maracatu no Ceará. Trata-se do Zé Rainha [José Ferreira da Silva], rainha do maracatu cearense. Ele nasceu no Tatu, propriedade dela, como está registrado na biografia dele. Existem quadras populares acerca dos chamados negros de Dona Fideralina. Eu transcrevo duas dessas quadras no perfil dela que escrevi para o meu blog (http://dimasmacedo.blogspot.com). Nelas, o Tatu é apresentado como um lugar de criação de negros. Ela criava negros e vendia negros e não estava preocupada com os avanços da modernidade social do início do século passado.

Rui – Reprodução de escravos...

Dimas – É. Ela apartava os negros das suas mães, como se aparta um bezerro no criatório bovino. Ela cuidava das suas escravas, assim como se cuida de uma vaca leiteira. Ela criava os seus escravos e os vendia para proprietários da região. Isso é uma coisa muito comentada no município de Lavras. Existem dois negros bem conhecidos no Ceará que são provenientes da sua senzala. Um é o Zé Rainha, do maracatu cearense, já referido. O outro é o Preto Luís, que foi transformado em personagem de um poema de Batista de Lima.

Rui – É o que não tomava banho, por causa de uma surra?

Dimas – É. Existe também uma tela de caráter figurativo sobre o Luís Preto, de autoria de Bruno Pedrosa, artista de projeção internacional, nascido em Lavras da Mangabeira e que mora na Itália. O Preto Luís é o negro no qual ela deu uma surra, porque ele tomou banho na cacimba da casa-grande do Tatu [você ainda vai lá]. Lá existia uma cacimba para serventia doméstica e uma outra cacimba destinada à sua reserva pessoal, com latada, cercada de palha de coqueiro. A cacimba era dela. Ali o banheiro era dela. E o negro Luís, possivelmente ainda adolescente, foi pego tomando banho na cacimba dela. Aí ela deu uma surra tão violenta no Luís que ele, até a morte, com quase cem anos, nunca mais tomou banho, porque ficou traumatizado. Na região, existem diversas lendas sobre escravos de Dona Fideralina.

Rui – Uma coisa atraente, nesta pesquisa, é a existência daquilo que os historiadores chamam disputa de memória. A divisão política e os ódios pessoais dentro da própria família e no município em geral, gerou duas memórias diferentes. Uma enaltece Fideralina, outra a descreve como uma megera. Diante disso eu indago: quem são as fontes a quem eu devo procurar para ouvir os dois lados?

Dimas – Uma fonte confiável seria o historiador Joaryvar Macedo, que escreveu os seus livros utilizando-se de critérios científicos. Outra fonte que você pode consultar encontra-se no meu livro Lavrenses Ilustres, porque nesse livro eu mostro tudo isso, mostro o mito e a realidade. No perfil de Dona Fideralina, constante nesse livro, as duas coisas estão registradas. Eu digo que existem muitas lendas sobre ela e ali eu falo acerca de algumas dessas lendas. Essa história do escravo, em quem ela deu uma surra, e cuja história real terminou elevada aos planos da lenda, realmente existiu. Já, a história da escrava que, depois de açoitada, passou as mãos ensanguentadas na parede da senzala, mas cujas manchas, muito embora a parede fosse pintada de branco, ressurgiam sempre vermelhas e assim continuavam, isso eu tenho na conta de lenda. Agora, dizer que ela vendia negros, aí já é realidade. Sim, a venda de negros, em pleno século XX, é realidade. Sobre ela, existe a plaqueta de Rachel de Queiroz e Heloísa Buarque de Holanda, bastante fantasiosa; o opúsculo de Rejane Augusto, sintético, porém criterioso: A Vocação Política de Fideralina Augusto Lima; e o livro de Melquíades Pinto Paiva: Uma Matriarca do Sertão – Fideralina Augusto Lima.

Rui – E os amantes ocasionais, são parte da realidade?

Dimas – Parte da realidade. Mas parte também da lenda.

Rui – Ela matava os amantes, como a aranha chamada Viúva Negra?

Dimas – Se Dona Fideralina teve ou não os seus amantes, é improvável que ela os tenha matado. Rachel de Queiroz diz que ela rezava um rosário feito com as orelhas dos seus inimigos. Isso é uma lenda, assim como fica no plano da lenda a maioria dos casos contados por Rachel de Queiroz no seu texto pioneiro publicado na revista O Cruzeiro em 1946. Eu acho que ela teve mesmo foi aquilo que chamamos de affair, mas isso deve ter sido feito de forma camuflada. Nesse ponto, ela foi muito discreta. Não foi um traço forte da personalidade de Dona Fideralina ter amantes, mas se cercar de homens de confiança, que foram raros, mas que fazem também a distinção na sua biografia. No poder político ela ancorava a sua libido. E aí ela gastava o máximo de suas energias. Mas a extensão do seu poder ela não confiou a mulheres. Parece que não teve grandes amizades nesse plano. Mas é certo que a tradição e a memória da cultura lavrense se referem a uma certa transgressão dela nessa área do código moral da sua época.

Rui – É, ouvir as gerações que vieram depois faz parte de uma coisa que está sendo pesquisada, hoje, pelos historiadores, sob o nome de memória herdada.

Dimas – Concordo plenamente. A historiografia não pode mais negar as fontes da memória ou da história oral. Um descendente de Dona Fideralina escreveu uma biografia dela... [...]. Nessa biografia tem uma passagem interessante, na qual ele desautoriza qualquer suposição acerca da vida íntima dela, após a viuvez. [...] Ele foi incisivo: como é que eu vou dizer um negócio desse sem prova? Eu respondi: você deve se referir ao domínio público, pois não existe prova concreta, mas não pode ignorar essa passagem da vida dela... [...]. Mas achar que uma mulher, com tanto poder político e com tanta disposição para a luta, não tenha tido também uma libido acentuada, o que é isso?

Rui – Faz sentido.

Dimas – Eu acho que esse assunto deve ser considerado e analisado, porque essa feminilidade peculiar de Dona Fideralina é que dá o traço daquilo que vai ser o homem grande ou a mulher grande, no plano da vida. Caso ela não tivesse esse traço...

R – Ou masculinidade, porque o embate político, os combates a bala, a luta pelo poder tudo isso são traços masculinos na cultura da época. E a transgressão do código de conduta sexual também era um traço masculino.

Dimas – Outro traço da conduta dela, que também era uma coisa rara, no interior do Nordeste da sua época, é o fato de que ela bebia.

Rui – Bebida pesada?

Dimas – Bebida pesada. Ela bebia cachaça.

Rui – Não era sinhazinha, não.

Dimas – Não! Ela tinha o traço de homem forte.

Rui – As irmãs dela também tinham esse traço?

Dimas – Não, as irmãs... Exceção de Pombinha, que era muito destemida, foram manipuladas pelos parentes. A Pombinha transgrediu e foi a única que ousou se medir com a irmã que se vestia com atitudes de coronel.

Rui – A Pombinha liderou a família...

Dimas – A Pombinha foi a rebelião dentro da família.

Rui – E o marido da Pombinha? Ela era viúva também?

Dimas – O marido da Pombinha, Simplício Carneiro de Oliveira, foi vereador e presidente da Câmara em Lavras, teve alguma influência política, mas não o suficiente para sair da sombra da cunhada. Quando o marido deixou de exercer o poder institucional, Pombinha se posicionou. Mas é interessante observar que ela só se levantou contra a irmã quando a irmã derrubou o genro dela, o Honório. A partir de então, ela fez oposição ao poder da irmã [Fideralina] até o fim da vida.

Rui – E o marido [da Pombinha] ainda era vivo?

Dimas – Não, já havia morrido.

Rui – E as outras irmãs?

Dimas – A sua irmã Minervina Augusto Brasil (Vinta), era casada com um neto do deputado José Joaquim da Silva Brasil. Outra irmã dela [Floripes Augusto de Aquino] foi casada com o major Raimundo Tomás de Aquino, que foi presidente da Câmara Municipal de Lavras em várias legislaturas. Simplício Carneiro de Oliveira (marido da sua irmã Pombinha) foi também presidente da Câmara. Durante o Império, existia um domínio quase completo da família de Dona Fideralina na Vila de Lavras. Eu já afirmei, depois de uma pesquisa exaustiva, que é quase impossível encontrar um cargo do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário que não tenha sido exercido por um membro da família Augusto, na vila e na cidade de Lavras, durante o século dezenove e primeiras décadas do século vinte. Todos os ocupantes de cargos públicos, ali, eram filhos, sobrinhos, genros ou cunhados dela. O major Ildefonso Correia Lima foi presidente da Câmara, delegado de polícia e juiz municipal na vila de Lavras; o coronel Honório, além de vereador e presidente da Câmara, foi promotor público e juiz de Direito da Comarca. Um dos genros de Dona Fideralina [Gilberto Ribeiro de Saboia] também exerceu as funções de promotor público e juiz de direito e foi praticamente forçado, segundo uma velha tradição, a casar com a sua filha Josefa. Despois, ele retirou-se para o Amazonas, onde foi um dos fundadores da Faculdade de Direito, da qual se tornou Professor Catedrático. Desde a época do pai de Dona Fideralina (meados do século dezenove) até meados no século vinte, o seu marido, filhos e netos detiveram o controle das finanças do município como coletores. E nisso também se projetou o traço dessa famosa oligarquia chefiada por Dona Fideralina.

Rui – E a relação de Dona Fideralina com Francisca Clotilde, como era?

Dimas – Existe um traço em Fideralina que eu acho muito interessante, mas que somente vim a descobrir recentemente: ela era concunhada de Francisca Clotilde. Fideralina foi representante, em Lavras, da revista Estrella, fundada por Francisca Clotilde e pela sua filha Antonieta Clotilde. Isso me foi revelado acerca de uns vinte anos, pelo escritor Otacílio Colares, que me mostrou um número da revista Estrella onde ela figura como representante da revista, em Lavras da Mangabeira, mas eu não sabia que elas eram concunhadas. Não é como assinante, não. É como representante dessa importante revista que ela figura no seu expediente. Isso ajuda a entender a sua personalidade complexa e a extensão da sua cultura.

Rui – Uma aluna minha fez uma tese sobre a Francisca Clotilde. Ela ressaltou essa ligação.