Dimas Macedo
(Entrevista concedida ao Prof.Rui Martinho
Rodrigues, na Livraria Cultura de Fortaleza,
aos 26 de março de 2014).
Dimas Macedo – Dona Fideralina é a
representação máxima da oligarquia de Lavras da Mangabeira - Ceará. Filha do
tenente-coronel João Carlos Augusto, o qual tem o mesmo nome do pai natural
dele, o ex-governador da Capitania do Ceará, João Carlos Augusto de
Oyenhausen-Gravenburg, descendente de uma linhagem austríaca-alemã. Consta que
ele foi à Povoação de Lavras e para ali voltou algum tempo depois para batizar
o filho, nascido em 1804, a quem deu o nome de João Carlos Augusto.
Rui Martinho Rodrigues – Esse episódio muda até o sobrenome da família.
Dimas – Isso. É aí que
nasce a família Augusto, de Lavras da Mangabeira CE). Os ascendentes de João
Carlos Augusto, genitor de Dona Fideralina, são os Oliveira Banhos, aí
incluídos os seus pais, no plano da vida civil [Francisco de Oliveira Banhos e
Ana Rosa de Oliveira Banhos]. Já escrevi mais de uma vez sobre isso. Existe uma
genealogia da família Augusto, Os
Augustos, de Joaryvar Macedo, que teve uma segunda edição tirada em 2009,
pela historiadora Rejane Augusto, que é integrante dessa família. O pai de D.
Fideralina é o primeiro a ter esse sobrenome [Augusto]. Ele teve onze filhos.
Ela é a filha mais velha.
Rui – O pai dela é
que foi batizado pelo governador?
Dimas – É, foi batizado
pelo governador, com o mesmo nome deste. Ele teve uma grande influência na formação
da Vila de Lavras, que foi oficialmente criada 1818. Chefe militar e político
de grande habilidade, em Lavras, ele enfrentou as tropas de Pinto Madeira, em
1832, antes da derrocada desse velho caudilho nas cercanias do Icó. João Carlos
retoma a Vila de Lavras das garras de Pinto Madeira. Posteriormente, em várias
legislaturas, ele foi vereador, presidente da Câmara Municipal, deputado
provincial em duas legislaturas. Morreu assassinado por questões políticas em
1856.
Rui – Quando ele
morreu a filha [Fideralina] já era adulta?
Dimas – Já era casada.
O marido era uma espécie de ajudante de ordens do pai, que o transformou em
delegado de polícia, depois ele foi vereador, duas vezes presidente da Câmara.
O seu nome era Ildefonso Correia Lima. Por esta via, deu-se a transmissão da
herança política forte, herdada pela senhora absoluta de Lavras da Mangabeira.
Quando o pai de Fideralina morreu, o marido dela assumiu o comando político da
vila de Lavras, mas não a liderança política da família Augusto.
Rui – Ela tinha
irmãos, certamente...
Dimas – Tinha. Tinha
irmãos homens...
Rui – Mas o
cunhado, irmão do esposo dela, é que assumiu a liderança política da
parentela...
Dimas – Não. Todos os
cunhados dela (com exceção de um deles), assumiram, por diversas vezes, funções
de comando na vila de Lavras, mas não eram irmãos do esposo dela.
Rui – Casados com
irmãs dela?
Dimas – É. Isso prova
que a tutela dela era muito forte, porque eles tinham divergências entre si.
Três desses seus cunhados foram presidentes da Câmara; dois foram intendentes
municipais. O marido dela morreu em 1876. Está enterrado embaixo do altar-mor
da Igreja Matiz de São Vicente Ferrer, com placa muito visível. Ela
[Fideralina] assume o controle político da vila de Lavras após a morte do
marido.
Rui –
Interessante, porque a essas alturas ela já tinha filhos adultos, filhos
varões...
Dimas – Não, ainda não.
Tinha adolescentes. Veja: o filho mais velho dela, Honório Correia Lima, tinha
21 anos; o segundo, Ildefonso Correia Lima, tinha 16; e o terceiro, Gustavo
Augusto Lima, tinha 15 anos apenas. Mas os três viriam a ser deputados. O
segundo e o terceiro, tornar-se-iam, também, vice-governadores do Ceará, valendo-se,
de alguma maneira, da influência política da mãe.
Rui – Ela é de
1832, não é?
Dimas – Ela é de
1832...
Rui – Ela enviuvou
com 44 anos...
Dimas – É. Ela enviuvou
aos 44 anos. Honório, o seu filho mais velho, nasceu em 1855...
Rui – O Gustavo
foi assassinado em Fortaleza...
Dimas – É, foi
assassinado em Fortaleza, em 1923, quando era deputado estadual.
Rui – Vingança,
por causa de briga de família.
Dimas – Exatamente
isso. Um crime de vingança. Ele foi um dos líderes da Revolução de 1914, ao
lado de Floro Bartolomeu, com quem se desentendeu. O grande problema do comando
da Revolução talvez tenha sido a briga deles dois.
Rui – E o Coronel
Honório...
Dimas – Outro filho
dela que teve grande projeção foi o Honório Correia Lima, que também foi
deputado em várias legislaturas. Este foi o sujeito que a desafiou, em Lavras.
Ela o derrubou do poder.
Rui – Era o
“Caraolho”.
Dimas – É, era o
“Caraolho”, que ela chamava de “Torto” por ele ser estrábico.
Rui – ...que ela
botou para fora da Intendência municipal.
Dimas – Sim, ela jamais
perdoou a ousadia dele, jamais aceitou sua liderança. Segundo a historiadora
Rejane Augusto, ela o teria derrubado não da chefia da Intendência, mas do
comando do partido governista. Tinha outro filho, que viveu sempre em
divergência com ela, foi prefeito de Lavras, depois da morte dela, mas nunca
teve a coragem de desafiar a sua liderança. Se destacou mesmo foi como
professor de latim e francês, era formado pelo Colégio Pedro II, do Rio de
Janeiro. Trata-se do coronel Francisco Augusto Correia Lima, que é bisavô do
deputado Heitor Férrer. O filho ungido por ela era o Coronel Gustavo, o qual,
apesar do seu gênio político, se submeteu à vontade da mãe, e para com Gustavo
ela foi bastante generosa.
Rui – O único que
não teve divergência...
Dimas – É, ele foi um
grande político, que transcendeu o município...
Rui – Esse era avô
do Dr. Vicente Augusto...
Dimas – É, era o avô do
Dr. Vicente Augusto.
Rui – E o Torto é
bisavô do nosso prefeito?
Dimas – O torto é
trisavô do Roberto Cláudio, atual prefeito de Fortaleza [eleito em 2012]. Outro
filho dela, o quarto a entrar na política, foi o Dr. Ildefonso Correia Lima,
que foi vice-governador do Ceará, na época do General Bizerril, na última
década do século dezenove; foi professor e Diretor do Liceu, formado em
Medicina no Rio de Janeiro e que se tornou deputado provincial no Império e
deputado federal na República.
Rui – Interessante
que no alto sertão, no meio dessa violência toda, havia uma tradição de
incentivar o cultivo de letras, inclusive de letras clássicas...
Dimas – Letras
clássicas. O coronel Gustavo estudou no célebre Colégio do Padre Rolim, em Cajazeiras,
na Paraíba. Segundo o Padre Heliodoro Pires, no tempo em que esteve no Colégio
do Padre Rolim, ele foi contemporâneo do Padre Cícero, com quem sempre manteve
uma ligação estreita. Já com relação a Honório, eu nunca consegui localizar
onde ele realizou a sua formação. [Nota do autor, em 2016: Honório
estudou no Internato do Sagrado Coração, no Crato] [...]. O Dr. Ildefonso
cursou o Seminário do Crato, o Liceu do Ceará e se formou pela Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro [Faculdade Nacional de Medicina]. Foi um grande
cientista, deixou vários livros publicados na área da ciência médica. Foi um
médico de vanguarda. Outro filho de Dona Fideralina, que estudou no Liceu do
Ceará, foi o coronel Francisco Augusto, que depois seguiu para o Rio de Janeiro,
onde cursou o Colégio Pedro II. Estes foram os quatro filhos dela que mais se
destacaram.
Rui – E filhas e
genros de Fideralina?
Dimas – A vida política
dos genros passou pelo crivo das suas imposições. Dois daqueles que foram seus
genros assumiram o comando oficial do município; outro, o Dr. Gilberto Saboia,
foi promotor público e juiz de direito da Comarca. O infortúnio maior de Dona Fideralina
decorreu da briga dela com a irmã, Dulcéria Augusto de Oliveira, a Pombinha.
Entraram em divergência, e a divergência se estendeu por bastante tempo. Foi o
que levou ao morticínio de 1922, quando três sobrinhos dela [Fideralina] foram
assassinados, sendo chefe da facção política triunfante o seu neto, Raimundo
Augusto Lima.
Rui – O pai do Dr.
Vicente...
Dimas – ...Pai do Dr.
Vicente Augusto. O coronel Raimundo Augusto, nessa luta, viu tombarem sem vida
dois primos legítimos, um deles seu cunhado, casado com uma das suas irmãs. Os
dois jovens políticos que aí morreram eram filhos do coronel José Leite de
Oliveira, que era casado com Amélia Augusto Leite, filha de Dulcéria Augusto.
Foram mortos, portanto, dois netos da velha Pombinha. Nessa luta morreu ainda
um sobrinho de Fideralina, o major Eusébio Tomaz de Aquino, que era comandante
da Guarda Nacional. Isso ocorreu em 1922. Nessa briga houve outras pessoas
baleadas, inclusive o coronel Raimundo Augusto, que foi varado por uma bala que
teria passado a meio milímetro do seu coração. [...]. Isso foi terrível para a
história de Lavras.
Rui – Qual a
origem de tanta desavença, de tanta inimizade no seio de uma família com gente
tão culta?
Dimas – Em 1907, D.
Fideralina derrubou o seu filho, Honório Correia Lima, da chefia do partido
governista local. Para isso, ela mandou buscar cangaceiros em Pajeú das Flores,
em Pernambuco, que entraram em Lavras e fizeram a deposição do Honório. Ela
teria se colocado na frente dos cabras armados e teria dito que, quem acertasse
no filho que seria deposto, morreria. Ela chamava este filho de Torto porque
ele era estrábico. Foi um teste de força muito grande (o que estava em jogo era
o poder político). Honório era sócio do irmão, Gustavo, num armazém de secos e
molhados. Após o tiroteio, durante a noite, à luz de lamparina, eles apartaram
a sociedade, e em seguida Honório foi embora de Lavras para Caririaçu, onde
residia uma irmã dele.
Rui – Foi tentar
organizar uma volta.
Dimas – É. Parece que
ele foi tentar organizar a volta, mas não o fez. Veio para Fortaleza, continuou
interferindo na política, mas o ódio ficou plantado no seio da família. Segundo
relatos, entre as suas disposições de última vontade, ele pediu para ser
enterrado em decúbito ventral, com o ânus virado para Lavras, para onde jurava
ter expelido todos os seus dejetos, após a sua deposição. Esse relato pode ser
encontrado no meu livro Lavrenses
Ilustres (3ª ed. 2012). Honório não organizou a sua volta, mas o Cariri
todo se uniu, com exceção de Juazeiro, para fazer a deposição do Coronel
Gustavo e de Dona Fideralina. Esse foi o seu grande teste de força. Mas Lavras
da Mangabeira não cedeu e passou para a história da região como a única cidade
do Cariri que não ruiu ao tempo do chamado Ciclo das Deposições. Dona
Fideralina e o Coronel Gustavo provaram, nessa memorável refrega, que eram
ossos duros de roer.
Rui – Os ódios
eram muito profundos rsrsrs.
Dimas – Muito profundos
e o Coronel Gustavo, o filho ungido de Fideralina, parece que tinha muitos
inimigos. A briga de Dona Fideralina com a sua irmã Dulcéria [Pombinha]
resultou numa coisa terrível. Dulcéria era sogra do Honório, que era casado com
uma prima legítima. Ela considerou injusta a derrubada do seu genro pela sua
irmã, D. Fideralina. Jamais admitiu que a irmã pudesse ter derrubado o próprio
filho do poder. Nasceu, possivelmente, aí, uma inimizade tão grande entre essas
duas irmãs que, quando o Franco Rabelo se elegeu governador do Ceará, Dulcéria
comemorou o fato de uma maneira bastante exagerada, especialmente porque D.
Fideralina apoiava o Nogueira Accioly, que tinha, por sua vez, o apoio dos
grandes coronéis da sua época. O Coronel Honório, no entanto, era um homem
esclarecido, tinha uma mentalidade política elevada...
Rui – que vinha de
uma tradição de letras...
Dimas – É, que vinha de
uma tradição de letras. Ele teve a ousadia de divergir da mãe. Foi o único dos
filhos a enfrentá-la. O coronel Francisco Augusto Correia Lima (outro filho
dessa matriarca lavrense) só veio a se firmar depois que a mãe morreu. Ela tinha entregue o poder a alguns parentes
e prepostos. Mas depois que permitiu que Honório assumisse o poder, ele se recusou a passar o comando para Gustavo. Ele
realmente era um líder. Eis aí a raiz mais forte de uma grande contenda.
Rui – Na história
dessa briga, eu procurei saber como eram as relações da Fideralina com a nora,
esposa desse filho, o Torto, porque o leito influencia muito essas coisas.
Dimas – A relação era
de inimizade. Interessa notar que Dulcéria [sogra de Honório] era também sogra
do Coronel Gustavo. Quando Franco Rabelo foi eleito governador do Ceará, ela
fez uma promessa, que era ir da casa dela, de joelhos, até o altar da Igreja
Matriz, para pagar uma promessa pela derrota da irmã. Dizem que ela ficou com
os joelhos ensanguentados, por conta dos pedregulhos encontrados no caminho.
Quando estava para morrer, Fideralina mandou um pedido de desculpas para
Dulcéria, pelo que tinha feito, pela forma como tinha tratado o
Coronel Honório, e perguntou se podia receber uma visita dela [Dulcéria], para
que pudesse lhe pedir perdão. Porém Dulcéria mandou dizer que “se for para pedi
perdão, ela está perdoada daqui”. Não foi, portanto, à casa da irmã, apesar de
serem vizinhas, separadas por um beco, que tinha e ainda tem a largura de uma
rua estreita.
Rui – Ainda no plano
familiar, quais foram os seus outros desafios?
Dimas – Além do
assassinato do pai dela, João Carlos Augusto, e da sua tia pelo lado paterno,
Cosma Francisca de Oliveira Banhos, o seu irmão mais velho, Ernesto Carlos
Augusto, também foi assassinado, em 1874, dois antes da morte do marido dela, o
major Ildefonso Correia Lima, falecido em 1876. Fideralina, então, estava
desamparada: haviam morrido os dois principais varões da família.
Rui – O pai foi
assassinado, a tia foi assassinada, o marido foi assassinado, o irmão foi
assassinado...
Dimas – O marido não
foi assassinado, embora tenha morrido cedo e se metido em muitas desavenças.
Riu – Não?
Dimas – Não. O irmão,
Ernesto Carlos Augusto, que poderia ter sido um líder político, um possível
sucessor do pai, na política de Lavras, é que foi assassinado. Mas nessa lista
também deve constar o nome do seu primeiro neto a se formar em Medicina,
Ildefonso Augusto Lacerda Leite.
Rui – Todos esses
crimes eram crimes políticos?
Dimas – Crimes
políticos. Mas o irmão de Fideralina, Ernesto Carlos Augusto, teve a sua morte
atribuída ao padre Joaquim Machado da Silva, vigário coadjutor da Paróquia de
Lavras. Na época [1874], esse fato repercutiu em toda a Província, mas nunca
foi esclarecido qual foi o móvel do crime. Em 1900, o primeiro neto de
Fideralina a se formar em curso superior e o primeiro, também, a doutorar-se em
Medicina, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, com a tese Ensaios de Filosofia Natural, Ildefonso
Augusto Lacerda Leite, foi clinicar na Paraíba, na vila de Princesa, onde
casou-se com uma filha do coronel Erasmo Alves Campos.
Rui – Essa moça é
que era noiva do delegado?
Dimas – É, o delegado a
queria como mulher. O jovem médico se estabeleceu em Princesa e ali casou com
Dulce Florentino Campos, mas depois foi trucidado pelo delegado daquela
localidade, Manoel Florentino, mancomunado com o elemento José Policarpo e com
o apoio do Padre Raimundo Nonato Pita, vigário daquela Freguesia. Segundo
relatos (existe uma plaqueta do coronel Erasmo Campos, chamada Memorial, versando sobre o assunto), o
delegado desejava a moça que se tornou mulher do Dr. Ildefonso, o qual era
maçom e possuía ideias políticas avançadas. Mas quando Ildefonso, o primeiro
neto dela, o neto de quem ela houvera feito o parto (as filhas pariam na casa
dela) tombou assassinado, Fideralina Augusto não contou conversa: determinou a
invasão de Princesa, numa das maiores ousadias que um chefe político podia ter
perpetrado no interior do Nordeste.
Rui – Ela
habitualmente agia como parteira ou só para as filhas ela fazia este papel?
Dimas – Só para as
filhas. A invasão de Princesa está relatada por Joaryvar Macedo no seu livro – O Império do Bacamarte (Fortaleza: Casa
de José de Alencar, 1990), no capítulo intitulado “O Batalhão de Dona
Fideralina”, que foi comandado por Zuza Lacerda. O féretro foi enterrado no
cemitério de Princesa, com as pernas para o lado de fora da sepultura. Depois,
os restos mortais do Dr. Ildefonso foram trazidos para Lavras e enterrados em
uma sepultura sobre a qual ressumbra o símbolo do seu credo político – a
Maçonaria. Esse neto de Dona Fideralina era maçom. Eu sempre tive a curiosidade
de conhecer a tese de doutoramento do Dr. Ildefonso, mas nunca a localizei. [Em
2016, a escritora lavrense, Cristina Couto, trouxe para o Ceará uma cópia da
referida tese, encontrada nos arquivos da Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro, a qual foi acessada pelo autor].
Rui – E a relação
dela com Marica Macedo do Tipy?
Dimas – Ela teve uma
proximidade muito grande com Marica Macedo, de Aurora. O segundo casamento de
Marica Macedo foi em Lavras da Mangabeira, sob o seu beneplácito. Essa
proximidade entre as duas teve no futuro a sua virtuosidade: foi nessas duas
mulheres que Rachel de Queiroz se inspirou para escrever a sua obra-prima: o
romance Memorial de Maria Moura.
Rui – Quem mais
teve a ousadia de desafiar D. Fideralina?
Dimas – Além do Coronel
Honório, seu filho, a outra dor de cabeça dela foi o Monsenhor Miceno Linhares,
que foi vigário de Lavras durante 49 anos, mas que foi também deputado e
presidente da Assembleia Legislativa do Ceará. Acho que ele foi cinco vezes
deputado. Era considerado um dos grandes oradores sacros do seu tempo.
Rui – Ela não se
intimidava com a batina?
Dimas – Não, de jeito
nenhum! E por que ela tinha tanta divergência com o Monsenhor Miceno? Porque
ele era uma pedra no sapato dela, porque ele tinha influência estadual. Ela fez
uma devassa na vida desse sacerdote. Descobriu que ele tinha tido um caso de
amor em Tauá e rasgou essa informação junto aos seus paroquianos. Mandou
imprimir um panfleto que foi distribuído na cidade de Lavras. Essa “queda” do
Monsenhor Miceno, por sinal, foi muita benfazeja. Esse filho do Monsenhor
Miceno tornou-se um farmacêutico e político de expressão em Tauá e dois dos
seus descendentes destacaram-se no campo da política.
Rui – Parece que
isso não era estranho na época...
Dimas – Não, não era
estranho...
Rui – a nossa
história está cheia de personagens ilustres filhos de padres.
Dimas – É. Muita cheia,
por sinal.
Rui – Padre
gostava de mulher...
Dimas – É. Parece que
gostava. O problema é que o Monsenhor Miceno era muito conservador, muito
austero, descendente de uma família tradicional, que eram os Linhares. Aquilo
era imperdoável e ela [Fideralina] rasgou a vida do santo padre diante dos seus
paroquianos, coisa que ela fazia com muito gosto. Ela não perdoava adversário.
Tanto em Lavras, quanto em Aurora ou em Missão Velha, ela nunca perdoou os
adversários. Esteve envolvida em várias refregas por conta de não suportar a
liderança de ninguém. Se você parar para ler o livro do Joaryvar Macedo – Império do Bacamarte –, você vai
perceber que, em 1898, dois anos antes da invasão de Princesa, ela já estava
envolvida na deposição de um Intendente, na cidade do Crato. Ela era muito
inquieta. Tinha o sangue quente, não levava desaforo para casa nem suportava o
poder político de ninguém. Queria mandar no mundo inteiro mesmo, como diz uma
quadra popular.
Rui – Ela não se
detinha diante de laços consanguíneos, não se detinha diante do clero, não se
detinha diante de nada.
Dimas – Não se detinha
diante de nada. Um fato que você deve explorar no seu estudo, e que eu acho que
falta ser explorado, é a transgressão do código moral e sexual por parte de
Dona Fideralina. Não se tem conhecimento de que ela tenha traído o marido, mas
o certo é que ela ficou viúva muito jovem. Os seus adversários, inclusive no
âmbito da sua família, asseguram que ela teve os seus affairs. Numa entrevista publicada em 2003, pela Fundação Cultural
de Fortaleza, baseado em fontes orais e na memória de muitos lavrenses, eu me
refiro a um desses casos, porém isso deixou um descendente dela bastante
irritado, como se eu estivesse denegrindo a memória de Dona Fideralina. Nesta
entrevista vou ficar por aqui, mas não posso esconder que em Lavras existia um
coronel que dizia que ela comia em suas mãos.
Rui – E a vida
social de Dona Fideralina, como era?
Dimas – Diferentemente
de muitas mulheres do seu tempo, Dona Fideralina era chegada à bebida. No
início do século vinte, ela era carregada de liteira pelas ruas de Lavras.
Nesse sentido, eu colhi depoimentos de dois netos dela: a pintora Sinhá D’Amora
e o general Edilberto Pinto Nogueira; e de um dos seus bisnetos: Dr. Adauto
Santos Lima, que foi professor da Universidade Federal do Ceará. Eles, na
infância, viram ela sendo carregada por escravos e bebendo a sua zinebra.
Rui – E a história
dos negros do Sítio Tatu?
Dimas – É interessante
observar que o sítio Tatu, em Lavras da Mangabeira, onde ficava a residência de
Fideralina, era o único sítio daquela região que tinha um criatório de escravos
e cuja estrutura física ainda não foi modificada. Lá existe a capela, dedicada
a Nossa Senhora da Conceição, a casa grande e os escombros de um engenho. Esses
três símbolos estão lá, juntamente com a senzala e o chamado quarto do cuvico.
A senzala continua lá. Fideralina entrou o século vinte criando negros. Ela
criava negros e vendia negros para quem deles necessitasse.
Rui – Ignorou
completamente a Abolição.
Dimas – Sim, ignorou
completamente a Abolição. Um dos negros nascidos no [sítio] Tatu, filho de um
dos seus escravos, tornou-se a maior referência do maracatu no Ceará. Trata-se
do Zé Rainha [José Ferreira da Silva], rainha do maracatu cearense. Ele nasceu
no Tatu, propriedade dela, como está registrado na biografia dele. Existem
quadras populares acerca dos chamados negros de Dona Fideralina. Eu transcrevo
duas dessas quadras no perfil dela que escrevi para o meu blog (http://dimasmacedo.blogspot.com).
Nelas, o Tatu é apresentado como um lugar de criação de negros. Ela criava
negros e vendia negros e não estava preocupada com os avanços da modernidade
social do início do século passado.
Rui – Reprodução
de escravos...
Dimas – É. Ela apartava
os negros das suas mães, como se aparta um bezerro no criatório bovino. Ela
cuidava das suas escravas, assim como se cuida de uma vaca leiteira. Ela criava
os seus escravos e os vendia para proprietários da região. Isso é uma coisa
muito comentada no município de Lavras. Existem dois negros bem conhecidos no
Ceará que são provenientes da sua senzala. Um é o Zé Rainha, do maracatu
cearense, já referido. O outro é o Preto Luís, que foi transformado em
personagem de um poema de Batista de Lima.
Rui – É o que não
tomava banho, por causa de uma surra?
Dimas – É. Existe
também uma tela de caráter figurativo sobre o Luís Preto, de autoria de Bruno
Pedrosa, artista de projeção internacional, nascido em Lavras da Mangabeira e
que mora na Itália. O Preto Luís é o negro no qual ela deu uma surra, porque ele
tomou banho na cacimba da casa-grande do Tatu [você ainda vai lá]. Lá existia
uma cacimba para serventia doméstica e uma outra cacimba destinada à sua
reserva pessoal, com latada, cercada de palha de coqueiro. A cacimba era dela.
Ali o banheiro era dela. E o negro Luís, possivelmente ainda adolescente, foi
pego tomando banho na cacimba dela. Aí ela deu uma surra tão violenta no Luís
que ele, até a morte, com quase cem anos, nunca mais tomou banho, porque ficou
traumatizado. Na região, existem diversas lendas sobre escravos de Dona
Fideralina.
Rui – Uma coisa
atraente, nesta pesquisa, é a existência daquilo que os historiadores chamam
disputa de memória. A divisão política e os ódios pessoais dentro da própria
família e no município em geral, gerou duas memórias diferentes. Uma enaltece
Fideralina, outra a descreve como uma megera. Diante disso eu indago: quem são
as fontes a quem eu devo procurar para ouvir os dois lados?
Dimas – Uma fonte
confiável seria o historiador Joaryvar Macedo, que escreveu os seus livros
utilizando-se de critérios científicos. Outra fonte que você pode consultar
encontra-se no meu livro Lavrenses
Ilustres, porque nesse livro eu mostro tudo isso, mostro o mito e a
realidade. No perfil de Dona Fideralina, constante nesse livro, as duas coisas
estão registradas. Eu digo que existem muitas lendas sobre ela e ali eu falo
acerca de algumas dessas lendas. Essa história do escravo, em quem ela deu uma
surra, e cuja história real terminou elevada aos planos da lenda, realmente
existiu. Já, a história da escrava que, depois de açoitada, passou as mãos
ensanguentadas na parede da senzala, mas cujas manchas, muito embora a parede
fosse pintada de branco, ressurgiam sempre vermelhas e assim continuavam, isso
eu tenho na conta de lenda. Agora, dizer que ela vendia negros, aí já é
realidade. Sim, a venda de negros, em pleno século XX, é realidade. Sobre ela,
existe a plaqueta de Rachel de Queiroz e Heloísa Buarque de Holanda, bastante
fantasiosa; o opúsculo de Rejane Augusto, sintético, porém criterioso: A Vocação Política de Fideralina Augusto
Lima; e o livro de Melquíades Pinto Paiva: Uma Matriarca do Sertão – Fideralina Augusto Lima.
Rui – E os amantes
ocasionais, são parte da realidade?
Dimas – Parte da
realidade. Mas parte também da lenda.
Rui – Ela matava
os amantes, como a aranha chamada Viúva Negra?
Dimas – Se Dona
Fideralina teve ou não os seus amantes, é improvável que ela os tenha matado.
Rachel de Queiroz diz que ela rezava um rosário feito com as orelhas dos seus
inimigos. Isso é uma lenda, assim como fica no plano da lenda a maioria dos
casos contados por Rachel de Queiroz no seu texto pioneiro publicado na revista
O Cruzeiro em 1946. Eu acho que ela
teve mesmo foi aquilo que chamamos de affair,
mas isso deve ter sido feito de forma camuflada. Nesse ponto, ela foi muito
discreta. Não foi um traço forte da personalidade de Dona Fideralina ter
amantes, mas se cercar de homens de confiança, que foram raros, mas que fazem
também a distinção na sua biografia. No poder político ela ancorava a sua
libido. E aí ela gastava o máximo de suas energias. Mas a extensão do seu poder
ela não confiou a mulheres. Parece que não teve grandes amizades nesse plano.
Mas é certo que a tradição e a memória da cultura lavrense se referem a uma
certa transgressão dela nessa área do código moral da sua época.
Rui – É, ouvir as
gerações que vieram depois faz parte de uma coisa que está sendo pesquisada,
hoje, pelos historiadores, sob o nome de memória herdada.
Dimas – Concordo
plenamente. A historiografia não pode mais negar as fontes da memória ou da
história oral. Um descendente de Dona Fideralina escreveu uma biografia dela...
[...]. Nessa biografia tem uma passagem interessante, na qual ele desautoriza
qualquer suposição acerca da vida íntima dela, após a viuvez. [...] Ele foi
incisivo: como é que eu vou dizer um negócio desse sem prova? Eu respondi: você
deve se referir ao domínio público, pois não existe prova concreta, mas não
pode ignorar essa passagem da vida dela... [...]. Mas achar que uma mulher, com
tanto poder político e com tanta disposição para a luta, não tenha tido também
uma libido acentuada, o que é isso?
Rui – Faz sentido.
Dimas – Eu acho que
esse assunto deve ser considerado e analisado, porque essa feminilidade
peculiar de Dona Fideralina é que dá o traço daquilo que vai ser o homem grande
ou a mulher grande, no plano da vida. Caso ela não tivesse esse traço...
R – Ou
masculinidade, porque o embate político, os combates a bala, a luta pelo poder
tudo isso são traços masculinos na cultura da época. E a transgressão do código
de conduta sexual também era um traço masculino.
Dimas – Outro traço da
conduta dela, que também era uma coisa rara, no interior do Nordeste da sua
época, é o fato de que ela bebia.
Rui – Bebida
pesada?
Dimas – Bebida pesada.
Ela bebia cachaça.
Rui – Não era
sinhazinha, não.
Dimas – Não! Ela tinha
o traço de homem forte.
Rui – As irmãs
dela também tinham esse traço?
Dimas – Não, as
irmãs... Exceção de Pombinha, que era muito destemida, foram manipuladas pelos
parentes. A Pombinha transgrediu e foi a única que ousou se medir com a irmã
que se vestia com atitudes de coronel.
Rui – A Pombinha
liderou a família...
Dimas – A Pombinha foi
a rebelião dentro da família.
Rui – E o marido
da Pombinha? Ela era viúva também?
Dimas – O marido da
Pombinha, Simplício Carneiro de Oliveira, foi vereador e presidente da Câmara
em Lavras, teve alguma influência política, mas não o suficiente para sair da
sombra da cunhada. Quando o marido deixou de exercer o poder institucional,
Pombinha se posicionou. Mas é interessante observar que ela só se levantou
contra a irmã quando a irmã derrubou o genro dela, o Honório. A partir de então,
ela fez oposição ao poder da irmã [Fideralina] até o fim da vida.
Rui – E o marido
[da Pombinha] ainda era vivo?
Dimas – Não, já havia
morrido.
Rui – E as outras
irmãs?
Dimas – A sua irmã
Minervina Augusto Brasil (Vinta), era casada com um neto do deputado José
Joaquim da Silva Brasil. Outra irmã dela [Floripes Augusto de Aquino] foi
casada com o major Raimundo Tomás de Aquino, que foi presidente da Câmara
Municipal de Lavras em várias legislaturas. Simplício Carneiro de Oliveira
(marido da sua irmã Pombinha) foi também presidente da Câmara. Durante o
Império, existia um domínio quase completo da família de Dona Fideralina na
Vila de Lavras. Eu já afirmei, depois de uma pesquisa exaustiva, que é quase
impossível encontrar um cargo do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário que
não tenha sido exercido por um membro da família Augusto, na vila e na cidade
de Lavras, durante o século dezenove e primeiras décadas do século vinte. Todos
os ocupantes de cargos públicos, ali, eram filhos, sobrinhos, genros ou
cunhados dela. O major Ildefonso Correia Lima foi presidente da Câmara,
delegado de polícia e juiz municipal na vila de Lavras; o coronel Honório, além
de vereador e presidente da Câmara, foi promotor público e juiz de Direito da
Comarca. Um dos genros de Dona Fideralina [Gilberto Ribeiro de Saboia] também
exerceu as funções de promotor público e juiz de direito e foi praticamente
forçado, segundo uma velha tradição, a casar com a sua filha Josefa. Despois,
ele retirou-se para o Amazonas, onde foi um dos fundadores da Faculdade de
Direito, da qual se tornou Professor Catedrático. Desde a época do pai de Dona
Fideralina (meados do século dezenove) até meados no século vinte, o seu
marido, filhos e netos detiveram o controle das finanças do município como
coletores. E nisso também se projetou o traço dessa famosa oligarquia chefiada
por Dona Fideralina.
Rui – E a relação
de Dona Fideralina com Francisca Clotilde, como era?
Dimas – Existe um traço
em Fideralina que eu acho muito interessante, mas que somente vim a descobrir
recentemente: ela era concunhada de Francisca Clotilde. Fideralina foi
representante, em Lavras, da revista Estrella,
fundada por Francisca Clotilde e pela sua filha Antonieta Clotilde. Isso me foi
revelado acerca de uns vinte anos, pelo escritor Otacílio Colares, que me
mostrou um número da revista Estrella
onde ela figura como representante da revista, em Lavras da Mangabeira, mas eu
não sabia que elas eram concunhadas. Não é como assinante, não. É como
representante dessa importante revista que ela figura no seu expediente. Isso
ajuda a entender a sua personalidade complexa e a extensão da sua cultura.
Rui – Uma aluna
minha fez uma tese sobre a Francisca Clotilde. Ela ressaltou essa ligação.
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