quarta-feira, 8 de setembro de 2021

                           Dimas Macedo, Capitão de Longo Curso

Edmílson Caminha

                                   

Poeta, jurista, professor, crítico literário, ensaísta, historiador, memorialista, editor, contista, cronista, Dimas Macedo é intelectual ilustre, na mais nobre acepção do termo, nome que engrandece as letras cearenses e honra a literatura brasileira. Entre o verso e a prosa, inclui-se na genealogia literária a que pertencem Mário de Andrade, Ivan Junqueira e Antônio Carlos Secchin: grandes poetas que também se destacam, em outros gêneros, pela agudeza crítica, pelo apuro do estilo, pela correção da linguagem.

Estes Trinta navios juntam-se à Liturgia do caos, às Vozes do silêncio, a O rumor e a concha, ao Codicírio e a tantas outras obras que fazem de Dimas Macedo uma das mais eloquentes expressões da literatura cearense contemporânea. Como um velho lobo do mar, o autor vai do cinema de Ingmar Bergman à poesia popular de Geraldo Amâncio, da lírica do Padre Antônio Tomás à pintura de Sinhá D’Amora, do telurismo de Jáder de Carvalho à fabulação de Clauder Ancanjo, sempre com clareza de pensamento, com lucidez crítica e com o saber de experiência feito.

Diferentemente de escritores que nunca vão além da navegação de cabotagem, Dimas Macedo prova-se, com Trinta navios, um capitão de longo curso, a velejar tranquilo pelas águas da grande literatura. Para a felicidade nossa, passageiros privilegiados de uma travessia ao termo da qual nunca seremos os mesmos, pelo sentimento de que nos tornamos pessoas melhores, para quem, depois da invenção de Gutemberg, não há viagem mais bela, nem mais prazerosa, do que ler um bom livro.

                                                                                                                                                                     Brasília, 25/06/2019

                           Confidências a Dimas

                                     Clauder Arcanjo*

 

 

Lembro o meu pai

apascentando estrelas

e solidões

em tardes duradouras

e a minha mãe

na sombra do alpendre

de olhos no algeroz.

Lembro o meu pai, Dimas, mas não tive a poética de descrevê-lo tão bem. Dele, tu acreditas, colhi a singeleza do luar sertanejo, o abrigo do conselho amigo; enquanto minha mãe, com suas mãos-úberes e dadivosa, ofertava o pão, o leite e o afago para toda a família.

Lembro o meu pai

taciturno

em horas de agonia

e a minha mãe

tecendo alegorias

ao seu rebanho

de dores e aflições.

Até hoje, Dimas Macedo, busco descobrir o segredo do engenho dos meus pais. Zequinha, de saúde não tão boa, mas forte na palavra; e Maria, companheira a tanger-lhe as fraquezas, a sarar-lhe as dores com lenimentos de carinho. Logo em seguida, os dois, tomavam nossas mãos e guiavam-nos na direção da luta da educação. Enquanto meu pai, nas agonias frequentes, escondia-nos a batalha do diário sustento.

E tu, Dimas, a te confessares com teus pais, descritos em versos tão fortes, transmuta-los em fraternos, e paternos, de todos nós.

Lembro o meu pai

e a minha mãe

em inventários

elaborando

o seu rosário de preocupações.

                                       &&&

         Adoro conversar sobre literatura com quem costura versos na algibeira das pequenas digressões. Dimas Macedo é mestre neste valioso ofício.

Rosa Guimarães a linguagem,

a liberdade nos sertões gerais.

Quando cuido em louvar-te o trocadilho, tu, Dimas, me narras o vasto mundo mineiro, agora em outro trem.

Longo é o texto, vasto é o sonho:

Minas é o mundo e algo mais.

Drummond, gauche, nos faz companhia, vindo de Itabira, e tu convidas novas poéticas personagens. E eu, de queixo caído e de olhos alados, sou ser-tão todo ouvido.

O sertão nas asas do vento é Riobaldo.

Diadorim é poema que se faz em mim.

Quando menos dou conta, lá tu me aprontas contos de saga sem fim. Montados em burros estradeiros, marchamos por dentro de sagarana. Toda magia, enfim.

Saga, sagarana:

onde a magia do burrinho pedrês?

A noite se estica no mineiro proseado; e, conosco, despontam novos condenados, a luzirem seus olhos de leitorados entre tantas minas gerais.

Manuelzão e Miguilim:

essas estórias plurais.

Em tudo, Guimarães Rosa. Por tudo, Rosa Guimarães. Veredas do ser tão sem fim.

Veredas do sertão:

Rosa Guimarães, princípio e fim.

— Bem-vindos, rosas, rosianos, rosários, diadorinhos, sagrados sagaranos, pedreses burrinhos, riobaldos dos vastos mundos dos sertões: grandes veredas, nonadas, letras do céu e do chão! — bendize-nos, mestre Rosa. Ô trem bão, sô!

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         A lua e as estrelas

o sol e os alabastros,

as cicatrizes de Deus

e as mulheres nuas

são formas puras de amor

que reconheço,

são como cactos

que me ferem os olhos

Quando me defronto com versos de fina cesura, os meus olhos, Dimas, ganham o brilho do halo da lua. Entre sol, lua, estrelas e donzelas, somos todos bestas-feras, dissimulados como se feridos por pontudo anzol. Por mulheres, eleitas princesas, montamos casas, subimos na mesa, e ofertamos o peito indefeso a todas as penas do Céu.

na distância,

tais os mistérios densos,

as perdas preciosas,

a dor de não viver a vida

presa na garganta.

                             &&&

         Em águas de Caponga,

nas ribeiras do sol,

o mar se vai tornando laranja;

e se vão plantando

estrelas e silêncios;

Quando anoitece, amigo Dimas, sempre fujo da beira do mar. E se à tarde eu estiver na Caponga, onde as águas se alaranjam com o descanso do sol, recolho logo o meu bisaco, pois bem sei que dentro de mim brotará um plantio de estrelas cadentes e uma fieira de silêncio de dar dó.

e se vão tecendo

memórias e lembranças:

nos lençóis de linho

e na nudez de plumas

da magia de Uka;

Um certo dia perdi as horas e quando dei por mim a noite já havia se tecido fogosa. Com pouco, as memórias me lembraram de coisas que já as imaginava mortas e enterradas. Qual nada!, elas me jogaram sobre um lençol de espinhos. E eu, frente à nudez primitiva da vida, suei entre espantos, magias, uivos e gritos.

se vão fazendo lenha

os nossos corpos;

se vão tornando pão

os nossos lábios,

lavados pela chama.

                                         &&&

         Fortaleza de noite:

eis todo um argumento

para viver a vida

plena de sentimento.

Lamento de cidade devassada pelos sorrisos da noite, pelas paixões declaradas sob o luar de um mar de asfalto, acompanhadas bem de perto pelos verdes mares. Abriga-me, Fortaleza!

Deslizo pelas ruas

sorvendo antiga brisa.

No rio do asfalto

a noite se eterniza.

Em tuas ondas de corpo, valentes e dadivosas, opera-se o milagre do sonho e do coito eternos; enquanto nos leitos brancos, as mãos se ofertam às serpentes assanhadas do amor. Em Fortaleza.

Fortaleza tem corpo

e atração fatal

que sangra nossos olhos

com lâmina de punhal.

Quando a ti me acheguei, Fortaleza, tive que trocar meus amores ribeirinhos por deusas abissais: esculturas de carne e osso a debutarem nas tardes de ressacas fatais. E eu a levitar, com punhal na calça jeans, à beira-mar de Iracema.

Sou todo fortaleza,

penumbra e nostalgia.

Existo enquanto sonho

sua geografia.

Eu, que me confessava, Dimas, matuto tristonho das ribeiras do Acaraú, hoje, inquieto, declaro-me adotado, de coração e abastança, por Fortaleza, metrópole que se me mostrava, na juventude, tão estranha.

Quando, Fortaleza, eu de ti me afasto, sonho a caminhar por tuas ruas, praças e avenidas todos os dias.

Em noites de insônia

Fortaleza é assim:

é casa do espírito,

é princípio e é fim.

                                         &&&

        Te amo sobretudo os lábios

e a resina viscosa dos teus seios,

pois a vulva dos teus olhos enlaça

a sedução invisível dos meus pelos,

onde começo a viver e me embaraço,

porque me mato de amor quando te vejo.

Sempre decantamos a amada guardada no casulo mais fremente. A ela, Dimas, nos entregamos com o corpo resinoso e frio, a sairmos de tal entrega com a alma inteira fervente. Na sedução invisível do embaraço e dos pespontos, eis que urdimos, na noite grávida de espanto, um tear de murmúrios e gritos infrenes. Nos olhos, no buço, na pele e nos órgãos instigados, o amor se entrega como se o casal estivesse diante do último tormento.

                                           &&&

         Pássaro soturno

pousado em minha sombra

tal como o corvo de Poe.

Poe me acena com seus olhos de corvo feroz, e eu fujo em direção aos verdes mares da bravia Iracema.

Gatos alados

que voam no silêncio

do quarto de Rimbaud.

Ah, Dimas!, tu nem ensinaste tão belo trocadilho com Rimbaud. Ficarei, então, a te esperar embaixo das lanternas cor de aurora do mestre Sânzio.

Besouro cego

e sem plumas

tal como o cão raivoso de Averróis.

Instigados pelo mundo que nos abandona, voltamo-nos para o coser da palavra em forma de manto: a um tempo, jazigo, ressureição, sepultura e acalanto.

Há em geral, Dimas, um cão a nos acolher e lamber quando seduzimos a lua com palavras-ossadas de arrebóis.

Vampiro surdo

de garras afiadas

deitado em meus lençóis.

                        &&&

         Minha querida, o esterno,

é mais do que eterno

o osso do teu peito.

Fico sem jeito

olhando o teu vestido

tão revestido de rosas

e o corpo tão ardente.

A musa se revela na sessão mais saudável e operosa. Sem notar que seu hálito de monarca, suas vestes de deusa helênica, seu perene riso em esterno arfante atiçam o corpo que segue tão puros ensinamentos.

Tão transparente o teu beijo,

assim como a salina dos olhos

e a franja dos cabelos.

Haverás de te entregares às rosas que flutuam em torno da manhã, pois sabes bem que o desejado corpo haverá de murchar com o anúncio do fim do tempo.

Teu tornozelo,

uma bela saliência,

e a tua leniência

me eriçando os pelos.

Daímôn!... Filho de Larvas, há um vulcão dentro das miradas dos ribeirinhos do Salgado?

                        &&&

         Deus mudou de residência

quando eu o procurei no meu corpo.

Eu o quis novamente no cérebro

e ele já se havia plantado na alma.

Ele tinha sossegado o meu busto.

Ele fazia escrituras nos dedos

e acariciava os meus olhos

que viviam completamente tontos de enganos.

Dimas, há muitos que ainda insistem em descrever nosso Deus com a tinta da razão, assim como acolhê-lO no fundo do cérebro. O Pai só quer o colo da alma; e só nos deixará quietos e sossegados quando nos deixarmos zelar pelas carícias de Seu mistério.

As minhas miragens morriam

quando ele chegou muito perto e me disse:

a luz é a que fica gravada na memória,

e o sol é o que nasce brilhando a cada dia,

pois a tua honra e a tua lâmina,

pois a tua glória e o teu escudo

são essas rugas de paz

e essas dálias brancas

e essas tardes mágicas

e essas plantas nobres

que se deixam cair na correnteza.

Numa tarde quieta e mansa, Tua voz rompeu por entre a correnteza dos meus pés, as horas se plantaram no chão sem viço, e a tarde, antes tão sem festa, anunciou-se florida e veloz.

E Deus já se havia chegado

por entre os fios do sonho

e se havia anunciado leve

como as espumas e os cristais de rocha,

mas ainda não se havia desnudo,

porque as marcas ficam na alma,

porque o vórtice e as vértebras

às vezes me levam para a morte.

Pleno da saudade do nosso “convívio inteligente”, respeito as horas de quaresma que Cristo nos impõe. Recolhemo-nos, amigo, ao calvário das tardes, à luz cambiante das reminiscências recentes. Eu, reles pedinte, oro a Deus e à Virgem que nos cubram com a proteção do divino manto.

Mas a luz de Deus chegou

para ficar dançando no silêncio

e o silêncio

para ficar gravado nas palavras

e as palavras para serem

faladas para o próximo,

porque no próximo o instante,

porque no próximo o quadrante

e as sarças de fogo da espera.

No instante em que tu te julgares pronto e refeito, dançaremos novamente o tango da amizade, tocaremos um blues sem ressentimento. A partir de então, gravaremos, em palavras poéticas, o samba da espera, ritmo de dorido lamento por tão difíceis momentos.

O amor não se compraz no pranto.

A alma é como a música do bosque.

Porque maduro e belo é o encanto

dos que se vão serenos pela vida.

Sigamos juntos, Dimas Macedo, somos duplo e uno. A amizade e a literatura nos irmanaram, egrégios siameses. Agora, ontem e, Deus haverá de querer, para todo o porvir.

Somos o duplo talvez

de algum castelo

misterioso

daquilo que há em nós.

 Obs.: os trechos em itálico foram extraídos dos livros Sintaxe do desejo, Liturgia do caos e O rumor e a concha, de Dimas Macedo.

 *Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-

grandense de Letras.

                                                                                                24/04/2020

                                           Oswald Barroso - Bibliografia

                                         Dimas Macedo

                                     


Mercado (Cordel). Juazeiro do Norte (CE): Ed. Urubu, 1976.

 

Urubu (Cordel). Juazeiro do Norte (CE): Ed. Urubu, 1976.

 

Poemas do Cárcere e da Liberdade. Fortaleza: edição do autor, 1979.

 

Cultura Insubmissa - Estudos e Reportagens (parceria com Rosemberg Cariry). Fortaleza: Ed. Nação Cariri / Secretaria de Cultura,1982.

 

Almanaque Poético de uma Cidade do Interior. Fortaleza: Editora Nação Cariri,1982.

 

Histórias Populares: teatro (O Reino da Luminura) e literatura de cordel. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1984.

 

Periferia - Poemas e Canções. Fortaleza: Secretaria de Cultura,1985.

 

Teatro - Duas Peças de Teatro e um Libreto de Ópera (A Irmandade da Santa Cruz do Deserto, O Pão e Moacir das 7 Mortes). Fortaleza: Secretaria de Cultura, 1986.

 

Romeiros - Textos sobre religiosidade popular. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1989.

 

Tristão Araripe (Alma Afoita da Revolução) - Perfil Histórico. Fortaleza, Secretaria de Cultura e Desporto, 1993.

 

Letras ao Sol - Antologia da Literatura Cearense (parceria com Alexandre Barbalho). Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha,1996.

 

Reis de Congo - Teatro Popular Tradicional. Fortaleza: Minc / Flacso / MIS, 1997.

 

Corpo Místico & Outros Textos para Teatro (Corpo Místico, Além do Vasto Oceano, Alma Afoita, Raimundo & Raimunda e Filho do Herói). Fortaleza: Casa José de Alencar / UFC, 1997. 

 

Theatro José de Alencar: O Teatro e a Cidade. Fortaleza: Terra da Luz Editorial, 2002.

 

A Arte e a Cultura na Reforma Agrária. Fortaleza: INCRA, 2004.

 

Memória do Caminho. Fortaleza: Terra da Luz Editorial, 2006.

 

Dormir Talvez Sonhar. Fortaleza: Fortgraf, 2007.

 

O Ceará de Curumins e Curuminhas (parceria com Ângela Rodrigues). Fortaleza: UNICEF e UNDIME, 2007.

 

Meninos e Meninas Potiguares. (parceria com Ângela Rodrigues). Fortaleza: UNICEF e FEMURN, 2007.

 

Mãos Preciosas: O Artesanato do Ceará (fotografia de Valdenir Cunha e Ilustração Maurício Negro). São Paulo: Luste Editores, 2008.

 

Antropologia da Arte, 2ª ed. Fortaleza: UAB / UECE, 2010.

 

O Vasto Mundo dos Assentados. Fortaleza: Caldeirão das Artes, 2010.

 

Entre Ritos, Risos e Batalhas. Fortaleza: SECULT, 2011.

 

Teatro como Encantamento: Bois e Reisados de Caretas. Fortaleza: Armazém da Cultura, 2013

 

Um Certo Contato com a Lua: Antônio Girão Barroso: Poesia e Vida (organizador). Fortaleza: Armazém da Cultura, 2014.

 

Teatro São José (ilust. de Descartes Gadelha). Fortaleza: Expressão Gráfica, 2016.

 

Brincadeira de Boi (ilust. de Alexandre Jales). Fortaleza: Armazém da Cultura, 2017.

 

Menino Amarelo (ilust. de Descartes Gadelha). Fortaleza: Expressão Gráfica, 2018.

 

Ceará Mestiço. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2019.

 

Risco Vermelho (ilust. de Descartes Gadelha). Fortaleza: Expressão Gráfica, 2019.

 

Aproximações (Prosa de Antônio Girão Barroso - organizador). Fortaleza: Expressão Gráfica, 2019.