terça-feira, 7 de setembro de 2021

Dois Livros de Roberto Pontes

                               Dimas Macedo


 1. Memória Corporal


         A produção poética de Roberto Pontes o insere, com muita propriedade, entre as mais expressivas vozes da poesia cea­rense contemporânea, revelando-nos, talvez, a mais amadure­cida criação artística experimentada por um poeta brasileiro da sua geração.

          As suas cogitações metafóricas repousam na captação do binômio tempo/espaço, se redimensionando, a partir desse ponto, numa complexa experiência do reen­contro do homem com as suas potencialidades sentimentais e afetivas.

          Roberto Pontes procurou sempre acompanhar a evolução da sua poesia por esse prisma, ou seja, buscou sempre perse­guir essa dualidade de fenômenos presente em sua poética, e isso o levou, finalmente, a cristalizar a sua percepção do mundo em Unidade, inventário poético ainda inédito, e que é, sem ne­nhuma dúvida, o resultado de toda uma vivência encontrada nos seus livros anteriores Contracanto (1968) e Lições de Espaço (1970).

          Memória Corporal (Rio: Editora Antares,1982) é a reflexão mais depurada da sua cria­ção poética. É, por assim dizer, o complemento da visão humanística do homem já prontamente saciado no que tange às suas inquietações existenciais, vivendo em estado de plenitude toda a exuberante e enigmática força do amor como expressão de sensualidade e transcendência.

          Em Memória Corporal Roberto Pontes lega-nos um livro denso de lirismo, porque através do exercício da palavra conduz­-nos ao exercício do amor. Memória Corporal é um poema per­didamente sensual, contagiante à proporção que nos devolve a oportunidade da redescoberta das nossas reservas eróticas.

           Todos os poemas de Memória Corporal são peças artesa­nalmente trabalhadas e que ao longo do contexto poético evo­luem com a disciplina com que o amor atinge o seu estágio de purificação. Para o poeta o amor nasce com os gestos e se ple­nifica com a posse, que antecede ao repouso dos amantes e enuncia a morte do amor. E o amor, assim descrito em todos os seus ingredientes conceituais e retóricos, é que nos vem por fim revelar a memória e a verdade do corpo.

          Memória Corporal é um poema feito de libertação e parti­cipação. Em toda a sua travessia o prazer termina por resgatar o esquecido do homem e a nudez mostra-se despida de todos os preconceitos. Para o poeta é o amor que deve prevalecer em toda a sua ternura sobre as demais opções que possamos ima­ginar eleitas para as nossas recriações e redescobertas. O que há de predominar, assegura o poeta, é o amor em todas as suas formas de interpretação e representação.

          O resgate do desejo patenteia-se em todos os poemas de Memória Corporal e tematiza a ideia do texto poético, de tudo se podendo aferir a certeza de que Memória Corporal encerra uma duradoura unidade de concepção. Cada um dos quarenta e cinco poemas pode ser conhecido e assimilado em separado, não implicando, por outro lado, que todo o livro possa ser lido como um poema autônomo, que no seu cerne congrega o ato do fazer e do sentir o amor.

           Em Memória Corporal Roberto Pontes metamorfoseia o amor, imprimindo-lhe os mais diferentes matizes. Da mesma forma que se anuncia em "Cinco Prelúdios", o amor termina por completar seu ciclo evolutivo em "Epitáfio", último poema do livro, o qual, depois de pacientemente repensado, chega a nos despertar a feliz iniciativa de que em nós mesmos podemos res­taurar a nossa própria memória corporal.

           Finalizando, eu diria já sem nenhuma dúvida: Memória Cor­poral é um livro de profunda densidade humana. É, como sen­tencia Carlos d'Alge em "A Verdade do Corpo": "um canto g eral de integração e de ternura, de paz e de realização humanas". Ou ainda como nos quis comunicar Lúcia Helena na apresenta­ção do pequeno volume: "uma obra que se apresenta como uma das melhores realizações da poesia lírica contemporânea".

 

2. Poesia Insubmissa

 

           Poesia Insubmissa Afrobrasilusa, de (Fortaleza: Edições UFC/Rio: Oficina do Autor, 1999), de Roberto Pontes, é um livro que fere assunto muito pouco versado no âmbito dos estudos literários, no caso, as aporias encontradas no universo da construção poemática e as alternativas para superar seus paradoxos e contradições. Uma ética fundante do discurso poético e as questões políticas que a envolvem – eis o que propõe o autor discutir em referido estudo.

          Trata-se de uma instigante pesquisa de motivação acadêmica, escrita sob o signo da erudição e da competência e apresentada, originalmente, como dissertação de mestrado junto ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal do Ceará, em 1991. É, pois, trabalho que honra a produção científica da Universidade e que distingue, também com louvor, a trajetória literária de Roberto Pontes.

             A abordagem pretendida pelo autor fala de três dimensões da poesia contemporânea, que são, a rigor, três dimensões da poesia de todos os tempos, sendo elas: a) a poesia de projeção retórica, cujo modelo escolhido foi o da produção do português Jose Gomes Ferreira; b) a chamada poesia de impasse, representada pela fase política da criação de Carlos Drummond de Andrade; e, por último, a poesia de combate e de motivação transfor­madora, recaindo, neste caso, a preferência sobre a poesia angolana de expressão portuguesa de Agostinho Neto, o poeta de formação social que utilizou a poesia como instrumento de libertação do seu próprio país.

           A poesia como arma, seu poder de intervenção e de provocação de rupturas sociais e históricas, seu papel de instrumento conscientizador e de ordenação do caos: estas, em linhas gerais, as propostas de Poesia Insubmissa Afrobrasilusa, que versa, como já afirmei neste comentário, tema original e indiscutivelmente muito pouco explorado no âmbito dos estudos universitários.

           Na introdução do seu belo ensaio acadêmico declina o autor que foi guiado por uma fascinação antiga e por uma crença cada vez mais inabalável, a de que “a poesia é fundamental para o ser humano, mormente nos momentos históricos atípicos, quando os indivíduos parecem haver perdido a noção de si mesmos, quando já não têm a identidade necessária para imprimir sentido e direção à existência individual e à coletiva”.

            De fato, se olharmos para a fase da poesia de Drummond escolhida para objeto de análise, aquela de dimensão lírica e social a um só tempo, que está enfeixada em A Rosa do Povo, não podemos discordar das argumentações do autor. E isso também poderíamos dizer da poesia de Agostinho Neto e de Gomes Ferreira, ambos, autores decisivos e com propostas poéticas decisivas para as experiências históricas vividas pelos seus países nas épocas em que fizeram suas intervenções artísticas.

           Por outro lado, se atentarmos para a literatura brasileira, no seu âmbito eu me permitiria citar, no rastro das argumentações do autor, o caso singularíssimo da poesia de Castro Alves, a qual foi elemento precioso no processo de libertação dos escravos e de tomada de posição em defesa de uma política do livro e da educação.

           A provocação acadêmica de Roberto Pontes, ao contrário do que se pode imaginar, não é uma proposta em torno do engajamento na área da literatura, que considero uma discussão falaciosa, nem uma tentativa de ideologização ou de partidarização da poesia ou de qualquer forma de criação literária. E, antes de tudo, uma tentativa de demarcação de uma ética fundante da construção poemática e as suas implicações políticas, sempre que fundamentadas numa estética de elevado nível literário, objetivo último a que poderia aspirar um escritor.

            As convicções do autor estão abeberadas em teóricos e críticos literários de formação clássica e moderna e no exame da produção original dos poetas escolhidos como objetos de estudo. Não se trata, portanto, de uma reinterpretação daquilo já interpretado, mas de uma leitura de fontes, com um tratamento de texto que retrata um modo de dizer muito pessoal, matizado por linguagem própria, com poucas citações, com indiscutível marca de estilo, com especificações que afastam o ensaio em apreço das técnicas de colagem ou copidescagem que têm caracterizado boa parte da produção universitária brasileira no campo da pesquisa de pós-graduação.

           Outro ponto a ressaltar é a rigorosa revisão de linguagem e de aspectos metodológicos, a qual, em parte, consagra, igualmente, a competência do orientador, que se lê no introito como sendo o poeta Linhares Filho, um dos mais eruditos professores do Curso de Mestrado em Letras da UFC.

            Falei de teóricos e críticos literários clássicos e modernos em que se abeberou a pesquisa. Entre os clássicos, gostaria de referir os nomes de Horácio, de Lucács, de Todorov, e de Lucien Goldmann e, entre os de língua portuguesa, os nomes de João Gaspar Simões e Otto Maria Carpeaux.

          Quanto à estrutura do trabalho e para finalizar as poucas linhas desta recensão, gostaria de destacar que o livro começa com uma introdução, onde são conceituados os elementos teóricos daquilo que o autor chama de Poesia Insubmissa Afrobrasilusa e cinco premissas metodológicas são ali racionalmente colocadas, como ponto de partida das argumentações, o que confere ao estudo um caráter de autêntica obra literária e não apenas o valor acadêmico que lhe possa ser atribuído.

            As conclusões estão sincronizadas com as premissas levantadas originalmente e por todo o corpo do ensaio perpassa um jogo equilibrado de coerência do discurso com o esforço do autor de pensar os questionamentos pela reserva teórica da sua própria cabeça, circunstância que também singulariza o estudo universitário em comento.

          Por fim, cumpre registrar ser o autor de referida tese um dos poetas de maior destaque da literatura cearense atual, o que de plano confere a este novo livro de Roberto Pontes um aparato todo especial, confirmado assim uma vocação literária que sempre julguei aliciante e muito criativa, criteriosa e indiscutivelmente bastante relevante.

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