Dois Livros de
Roberto Pontes
Dimas Macedo
1. Memória Corporal
A produção poética de Roberto Pontes o
insere, com muita propriedade, entre as mais expressivas vozes da poesia cearense
contemporânea, revelando-nos, talvez, a mais amadurecida criação artística
experimentada por um poeta brasileiro da sua geração.
As suas cogitações metafóricas
repousam na captação do binômio tempo/espaço, se redimensionando, a partir desse
ponto, numa complexa experiência do reencontro do homem com as suas
potencialidades sentimentais e afetivas.
Roberto Pontes procurou sempre acompanhar a
evolução da sua poesia por esse prisma, ou seja, buscou sempre perseguir essa
dualidade de fenômenos presente em sua poética, e isso o levou, finalmente, a
cristalizar a sua percepção do mundo em Unidade,
inventário poético ainda inédito, e que é, sem nenhuma dúvida, o resultado de
toda uma vivência encontrada nos seus livros anteriores Contracanto (1968) e Lições
de Espaço (1970).
Memória Corporal
(Rio: Editora Antares,1982) é a reflexão mais depurada da sua criação poética.
É, por assim dizer, o complemento da visão humanística do homem já prontamente
saciado no que tange às suas inquietações existenciais, vivendo em estado de
plenitude toda a exuberante e enigmática força do amor como expressão de
sensualidade e transcendência.
Em Memória Corporal Roberto Pontes lega-nos um livro denso de lirismo,
porque através do exercício da palavra conduz-nos ao exercício do amor. Memória Corporal é um poema perdidamente
sensual, contagiante à proporção que nos devolve a oportunidade da redescoberta
das nossas reservas eróticas.
Todos os poemas de Memória Corporal são peças artesanalmente
trabalhadas e que ao longo do contexto poético evoluem com a disciplina com
que o amor atinge o seu estágio de purificação. Para o poeta o amor nasce com
os gestos e se plenifica com a posse, que antecede ao repouso dos amantes e
enuncia a morte do amor. E o amor, assim descrito em todos os seus ingredientes
conceituais e retóricos, é que nos vem por fim revelar a memória e a verdade do
corpo.
Memória Corporal
é um poema feito de libertação e participação. Em toda a sua travessia o
prazer termina por resgatar o esquecido do homem e a nudez mostra-se despida de
todos os preconceitos. Para o poeta é o amor que deve prevalecer em toda a sua
ternura sobre as demais opções que possamos imaginar eleitas para as nossas
recriações e redescobertas. O que há de predominar, assegura o poeta, é o amor
em todas as suas formas de interpretação e representação.
O resgate do desejo patenteia-se em
todos os poemas de Memória Corporal e
tematiza a ideia do texto poético, de tudo se podendo aferir a certeza de que Memória Corporal encerra uma duradoura
unidade de concepção. Cada um dos quarenta e cinco poemas pode ser conhecido e
assimilado em separado, não implicando, por outro lado, que todo o livro possa
ser lido como um poema autônomo, que no seu cerne congrega o ato do fazer e do
sentir o amor.
Em Memória Corporal Roberto Pontes metamorfoseia o amor,
imprimindo-lhe os mais diferentes matizes. Da mesma forma que se anuncia em
"Cinco Prelúdios", o amor termina por completar seu ciclo evolutivo
em "Epitáfio", último poema do livro, o qual, depois de pacientemente
repensado, chega a nos despertar a feliz iniciativa de que em nós mesmos
podemos restaurar a nossa própria memória corporal.
Finalizando, eu diria já sem nenhuma
dúvida: Memória Corporal é um livro
de profunda densidade humana. É, como sentencia Carlos d'Alge em "A
Verdade do Corpo": "um canto g eral de integração e de ternura, de
paz e de realização humanas". Ou ainda como nos quis comunicar Lúcia
Helena na apresentação do pequeno volume: "uma obra que se apresenta como
uma das melhores realizações da poesia lírica contemporânea".
2.
Poesia Insubmissa
Poesia Insubmissa
Afrobrasilusa, de (Fortaleza: Edições UFC/Rio: Oficina do Autor, 1999), de
Roberto Pontes, é um livro que fere assunto muito pouco versado no âmbito dos
estudos literários, no caso, as aporias encontradas no universo da construção
poemática e as alternativas para superar seus paradoxos e contradições. Uma
ética fundante do discurso poético e as questões políticas que a envolvem – eis
o que propõe o autor discutir em referido estudo.
Trata-se de uma instigante pesquisa de
motivação acadêmica, escrita sob o signo da erudição e da competência e
apresentada, originalmente, como dissertação de mestrado junto ao Curso de
Mestrado em Letras da Universidade Federal do Ceará, em 1991. É, pois, trabalho
que honra a produção científica da Universidade e que distingue, também com louvor,
a trajetória literária de Roberto Pontes.
A
abordagem pretendida pelo autor fala de três dimensões da poesia contemporânea,
que são, a rigor, três dimensões da poesia de todos os tempos, sendo elas: a) a
poesia de projeção retórica, cujo modelo escolhido foi o da produção do
português Jose Gomes Ferreira; b) a chamada poesia de impasse, representada
pela fase política da criação de Carlos Drummond de Andrade; e, por último, a
poesia de combate e de motivação transformadora, recaindo, neste caso, a preferência
sobre a poesia angolana de expressão portuguesa de Agostinho Neto, o poeta de
formação social que utilizou a poesia como instrumento de libertação do seu
próprio país.
A
poesia como arma, seu poder de intervenção e de provocação de rupturas sociais
e históricas, seu papel de instrumento conscientizador e de ordenação do caos:
estas, em linhas gerais, as propostas de Poesia
Insubmissa Afrobrasilusa, que versa, como já afirmei neste comentário, tema
original e indiscutivelmente muito pouco explorado no âmbito dos estudos
universitários.
Na
introdução do seu belo ensaio acadêmico declina o autor que foi guiado por uma
fascinação antiga e por uma crença cada vez mais inabalável, a de que “a poesia
é fundamental para o ser humano, mormente nos momentos históricos atípicos,
quando os indivíduos parecem haver perdido a noção de si mesmos, quando já não
têm a identidade necessária para imprimir sentido e direção à existência
individual e à coletiva”.
De
fato, se olharmos para a fase da poesia de Drummond escolhida para objeto de
análise, aquela de dimensão lírica e social a um só tempo, que está enfeixada
em A Rosa do Povo, não podemos
discordar das argumentações do autor. E isso também poderíamos dizer da poesia
de Agostinho Neto e de Gomes Ferreira, ambos, autores decisivos e com propostas
poéticas decisivas para as experiências históricas vividas pelos seus países
nas épocas em que fizeram suas intervenções artísticas.
Por
outro lado, se atentarmos para a literatura brasileira, no seu âmbito eu me
permitiria citar, no rastro das argumentações do autor, o caso singularíssimo
da poesia de Castro Alves, a qual foi elemento precioso no processo de
libertação dos escravos e de tomada de posição em defesa de uma política do
livro e da educação.
A
provocação acadêmica de Roberto Pontes, ao contrário do que se pode imaginar,
não é uma proposta em torno do engajamento na área da literatura, que considero
uma discussão falaciosa, nem uma tentativa de ideologização ou de
partidarização da poesia ou de qualquer forma de criação literária. E, antes de
tudo, uma tentativa de demarcação de uma ética fundante da construção poemática
e as suas implicações políticas, sempre que fundamentadas numa estética de
elevado nível literário, objetivo último a que poderia aspirar um escritor.
As
convicções do autor estão abeberadas em teóricos e críticos literários de
formação clássica e moderna e no exame da produção original dos poetas
escolhidos como objetos de estudo. Não se trata, portanto, de uma
reinterpretação daquilo já interpretado, mas de uma leitura de fontes, com um
tratamento de texto que retrata um modo de dizer muito pessoal, matizado por
linguagem própria, com poucas citações, com indiscutível marca de estilo, com
especificações que afastam o ensaio em apreço das técnicas de colagem ou
copidescagem que têm caracterizado boa parte da produção universitária
brasileira no campo da pesquisa de pós-graduação.
Outro
ponto a ressaltar é a rigorosa revisão de linguagem e de aspectos
metodológicos, a qual, em parte, consagra, igualmente, a competência do
orientador, que se lê no introito como sendo o poeta Linhares Filho, um dos
mais eruditos professores do Curso de Mestrado em Letras da UFC.
Falei
de teóricos e críticos literários clássicos e modernos em que se abeberou a
pesquisa. Entre os clássicos, gostaria de referir os nomes de Horácio, de
Lucács, de Todorov, e de Lucien Goldmann e, entre os de língua portuguesa, os
nomes de João Gaspar Simões e Otto Maria Carpeaux.
Quanto
à estrutura do trabalho e para finalizar as poucas linhas desta recensão,
gostaria de destacar que o livro começa com uma introdução, onde são
conceituados os elementos teóricos daquilo que o autor chama de Poesia Insubmissa Afrobrasilusa e cinco
premissas metodológicas são ali racionalmente colocadas, como ponto de partida
das argumentações, o que confere ao estudo um caráter de autêntica obra
literária e não apenas o valor acadêmico que lhe possa ser atribuído.
As
conclusões estão sincronizadas com as premissas levantadas originalmente e por
todo o corpo do ensaio perpassa um jogo equilibrado de coerência do discurso
com o esforço do autor de pensar os questionamentos pela reserva teórica da sua
própria cabeça, circunstância que também singulariza o estudo universitário em
comento.
Por
fim, cumpre registrar ser o autor de referida tese um dos poetas de maior
destaque da literatura cearense atual, o que de plano confere a este novo livro
de Roberto Pontes um aparato todo especial, confirmado assim uma vocação
literária que sempre julguei aliciante e muito criativa, criteriosa e
indiscutivelmente bastante relevante.
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