sábado, 27 de novembro de 2021

 Pré-leitura do livro Trinta Navios, de Dimas Macedo



O Autor

       Dimas Macedo é poeta, jurista e crítico literário. Professor da UFC.

 A Publicação

      O livro Trinta Navios, de autoria de Dimas Macedo, foi lançado em 2021, pela editora Sarau das Letras, com 184 páginas, prefácio de Ítalo Gurgel, orelhas de Edmilson Caminha.

 Circunstâncias

       O escritor Dimas Macedo tem um vasto e qualificado público que costuma aguardar e cobrar sua próxima manifestação em forma de livro. Em termos de Poesia, seu lançamento mais recente foi de 2020 (Rimance da Infância e Outros Poemas, São Paulo, editora Penalux). Em termos de crítica literária, a espera já vinha desde o ano de 2016, quando saiu Resenhas e Perfis (editora Expressão Gráfica).

 O Livro

      Trinta Navios reúne a produção de crítica literária de Dimas Macedo nestes anos mais recentes, além de artigos, ensaios e crônicas sobre eventos e personagens da cena cultural. Não faltam leituras e releituras de recortes de sua própria trajetória. Nas ondas do livro, Breno Accioly, Machado de Assis, Sânzio de Azevedo e Juvenal Galeno, a Filosofia de Oscar d’Alva, a Estética de Alder Teixeira e a Personalidade de Paulo Ferreira da Cunha. Os poetas Padre Antônio Tomás, Eduardo Fontes, Sérgio Macedo, Joca do Arrojado, Neide Freire, Carlos Nejar. Inácio Almeida. A arte de Cláudio César e a obra de escritores como Eduardo Luz, Nilto Maciel, Cristina Couto e Marcos Antônio Abreu. Estudos sobre a obra de Clauder Arcanjo, Nelson Hoffmann e Bruno Paulino, merecendo destaque novas observações acerca de Jáder de Carvalho, Fideralina Augusto e Joaryvar Macedo.

 A Importância do Livro

      Dimas Macedo precisa ser lido, relido, interpretado e entendido. E depois lido outra vez. A cada livro dele, a comunidade da literatura acorda e se agita. E retoma conversas, renova energias, estabelece novas referências.

       Nas palavras do prefaciador Ítalo Gurgel — Dimas Macedo confessa com sincero fervor: ser escritor é uma necessidade que o impede de “morrer a cada momento”. Há mais de 40 anos, esse estro vital o tem levado a lançar ao mar da literatura dezenas de embarcações de longo curso, que hoje transitam pelas caudalosas correntes da poesia, da crônica, do conto, do memorialismo, do ensaio literário.

 Curtas

      “Sente frio, às vezes, quando a literatura não se faz sua companheira, quando o amor que sente pelo próximo não borbulha no seu coração, ou quando não promove o intercâmbio cultural, utilizando para isso, as páginas do jornal O Nheçuano.

     “Chovemos de alegria quando a palavra renasce, ou quando o sol se apresenta na nossa janela, anunciando a chegada do novo. A lua clareia o nosso esquecimento e a chuva nos redime diante da memória, refletindo, em nós, a incerteza dos nossos idiomas.

    “É como se o mapa-múndi fosse povoado de saudades e lembranças que se gravam nos recessos do sonho. É como se o Reno, o Tâmisa e o Sena refletissem a brisa serena do Salgado, o mais doce dos rios, que os meus olhos não se cansam de ver.

      “Os historiadores não imaginam os fatos; mas quando são, igualmente, criadores, aí, sim, lhes é permitido imaginar a sua obra literária. Coisa rara, na história, tem sido a existência de historiadores que foram também criadores.

      “Separei-me da crítica, sim, mas para viver com a proposta pregada pelo Clauder Arcanjo: separações plurais, separações sem fim, porque, leitores, o casamento entre pessoas jamais existiu, e porque a vida é uma separação entre o que existe e aquilo que nunca se tornou possível.

      “O estilo literário de Alder Teixeira afasta-se do jargão acadêmico, prima pela correção do texto e pela poética da sua alocução e do seu viés comunicativo, instâncias nas quais a literatura e o cinema aparecem como pano de fundo.

      “Se Antônio Sales é o melhor escritor cearense, nos domínios da expressão estética e na agitação da cena literária; Jáder de Carvalho seria o grande intelectual do Ceará, especialmente, como sociólogo e jornalista, mas também como poeta, que se destaca por sua militância política, rara e desenvolta, dentre aqueles que elegeram a Rua e a Praça como tribunas de suas trajetórias.

Bons Momentos

      “O norte magnético deste grande vate é constituído pela rebeldia e pela poética da dor e do espanto. Todos os instintos, uivos e clamores do corpo e da palavra, pulsam nos poemas reunidos no seu novo livro. Mas, no seu conjunto, a sua poesia parece toda ela escrita com o sangue, tornando-se o autor um arquiteto das formas com as quais reinventa as suas criações.

      “A civilização do Médio Salgado, no sul do Ceará, deu ao Nordeste uma das suas maiores oligarquias, cujo apogeu efetivou-se com o domínio de Dona Fideralina Augusto, que sempre se manteve no poder utilizando os velhos bacamartes e os eflúvios da sua inteligência. A despeito dos conflitos e sobressaltos com os quais se envolveu, especialmente no campo da política, nada foi maior, na sua vida, do que a decisão de invadir a vila de Princesa, no Estado da Paraíba, para vingar a morte do seu neto Ildefonso Augusto, em 1902.

      “A busca do tempo compreende muitos regressos e avanços. No universo, nada me parece mais circular do que esta equação. O tempo existe para nos entreter. E quanto mais nos afastamos do presente, menos dolorida será a nossa sensação de perda, e muito mais prazerosa será a nossa satisfação. Daí a busca do tempo melhor, aquele que reluz na demão do passado, que nos faz reviver a infância e que nos leva a pensar o quanto aquilo que perdemos é essencial para nós, e o quanto aquilo que ganhamos pode implicar a nossa negação.

       “Tenho consultado críticos de renome, como Vera Oliveira e Dias da Silva, mas eles apenas me confundem. Dizem que a crítica não existe e que sou um visionário em busca de uma mãe, e que a ausência que sentimos da mãe, transforma-se num princípio de dissolução que nos leva para a criação da arte. Citaram Freud e depois Montaigne, Ulisses e Guy de Maupassant. Pediram-me os escritores Sânzio de Azevedo e o Batista de Lima que eu rezasse pensando na alma de Araripe Júnior, de Antônio Candido ou de Braga Montenegro, e que fosse até Belo Horizonte e colhesse com o Fábio Lucas alguma sugestão para continuar escrevendo, mesmo diante da morte da crítica e do ensaio.

     “A inquietação existencial e cosmológica, as figuras lendárias da política de Lavras da Mangabeira, as histórias contadas por minha mãe, o rumor das águas do Salgado que passava próximo à nossa casa, a mania que eu tinha de contar as estrelas em noites de muita claridade, a vontade que eu tinha de fugir do drama que eu via prosperando na minha família, o sino que plangia diariamente na torre da Igreja de Lavras, a teimosia em aceitar os limites da educação formal que me era imposta pelos meus pais, o medo de morrer de forma inesperada, assim como todas as crianças que partiam e cujos enterros passavam pela minha rua, marcando a minha voz e o meu jeito de ser com as suas despedidas.

      “Fico estarrecido ao perceber o quanto esse poema responde às questões referentes à arte e ao significado da linguagem. Aos vinte e dois anos, quando escrevi esse poema, eu já me encontrava atravessado pelas interrogações do devir e da poesia enquanto pressuposto da minha existência e do ser existencial para a morte. Eu já sabia que estava condenado a escrever e a repetir o sacrifício de Sísifo como alternativa para as minhas crenças, sonhos e valores, em busca de uma resposta para as minhas dúvidas.

      “Como cristão e poeta, atravesso estes tempos extremos que estamos vivendo como se fosse a ostra em seu enfrentamento com o vento, como se fosse o rumor que, às vezes, se funde com a concha e com ela se recolhe no sopro sublime da paixão. Sei que a vida é uma Graça, e que, a cada dia, eu a desfruto com a beleza que Deus nos confiou, e com os dons e os talentos que ele conferiu à minha inquietude: branda, como as águas serenas de um rio, mas incompreendida, às vezes, por aqueles que não aceitam a minha liberdade.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

O Garrote Misterioso

                                                 Lobo Manso

            


Leitores eu vou narrar

Uma nova profecia

De um garrote que falou

No Estado da Bahia

Andando um fazendeiro

No campo com seu vaqueiro

Um garrote lhe deu bom dia

 

Foi isto em quarenta e três

A quatro de fevereiro

Na fazenda São José

Assim me disse o vaqueiro

Que viu o animal falando

Ele e o homem escutando

Debaixo de um juazeiro

 

O garrote era zebu

De tamanho descomunal

Bem-feito como no mundo

Não pode haver outro igual

Com quatro letras escritas

Com tinta muito bonita

No lombo desse animal

 

O garrote assim falou

Bom dia, meu capitão

Com és o fazendeiro

Mais nobre deste sertão

Agora eu vou lhe dizer

E o senhor vai escrever

A minha declaração

 

O capitão quando viu

Aquela cena horrorosa

Ficou de queixo caído

E a fala muito tremosa

Disse muito admirado:

Aquele 4 dobrado

Já vi que letra mimosa

 

Disse o garrote estas letras

Cravadas aqui em meu lombo

São iniciais da guerra

Que traz o mundo em assombro

Desta vez a Alemanha

Bota fora toda a manha

Deixando no mundo um rombo

 

Falou que o 4 dobrado

É sinal de acidente

Oito países oprimidos

Em um grande continente

Ficam sujeitos ao Japão

Ficam sendo outra nação

Um só rei ou presidente

 

Esse M quer dizer

Muito país derrotado

Muita riqueza destruída

Muito barco naufragado

Muito homem enlouquecido

Muita mulher sem marido

Muito sangue derramado

 

A letra N quer dizer

Não conhecemos o futuro

Não sabemos pra onde vamos

Não temos planos seguros

E o mais tudo se some

Não sei como é que os homens

Na terra querem ser duros

 

A letra P quer dizer

Pedimos com piedade

Pedimos a Nossa Senhora

Pra nos dar felicidade

Pedimos a Nosso Senhor

Por ser grande protetor

Que proteja a orfandade

 

Temos um superior

Que a todo mundo domina

Escreve em linhas tortas

E o direito discrimina

É Deus grande e valoroso

Só ele é poderoso

E nunca mudou seu clima.

                          Esta guerra onde atingir

No lugar onde passar

É como rede de arrasto

Quando o dono vai pescar

Tiro de peça e canhão

Bombardeios de avião

Feliz de quem escapar

 

Vê-se gente espedaçada

De uma e outra nação

Uns sem perna outros sem braço

Rolados pelo canhão

Uns doidos e outros sem fala

Todos varados de bala

Rolando frios no chão

 

Na água os submarinos

Torpedeando os navios

Na terra o tanque avançando

Com os outros em desafio

Fazendo grande explosão

Pelos ares o avião

Solta bombas sem desvio

 

De repente este garrote

Transformou-se em um pavão

Com umas pintas doiradas

E outras cor-de-carvão

Tornou-se um pássaro bonito

E no peito estava escrito

Meu Padim Ciço Romão

 

Disse adeus meu fazendeiro

Não posso mais demorar

Meu Padrinho está em Roma

Ouço ele me chamar

E o mais tudo se move

Até em noventa e nove

Quando o mundo se acabar

                                          Lobo Manso

                                                   Batista de Lima


          Antônio Lobo de Macêdo é o verdadeiro nome do poeta Lobo Manso. Nascido em Lavras da Mangabeira, em 29 de julho de 1888, veio a falecer na mesma cidade, em 20 de abril de 1960.

       Poeta popular de reconhecido valor literário, Lobo Manso teve um filho e um neto na Academia Cearense de Letras, no caso, Joaryvar Macedo e Dimas Macedo. Isso sem contar outros descendentes que também cultivavam a poesia, como é o caso de Zito Lobo, seu filho. É, pois, sua família, um esteio de poetas.

     Em 1988, por ocasião do centenário de seu nascimento, seus descendentes organizaram homenagens de cunho religioso e político, como missa na capela do Sítio Calabaço, onde ele nascera, e na Câmara Municipal de Lavras, onde ele tivera assento como vereador.

         Naquela ocasião, seu filho escritor, Joaryvar Macedo, organizou um livro, com sua produção literária, com o título de Antônio Lobo de Macedo: O Homem e o Poeta. Mais recentemente, 2010, por ocasião do cinquentenário de sua morte, seu neto, o poeta Dimas Macedo, reeditou o livro com alguns acréscimos.

          Além destes textos iniciais, aparecem, logo em seguida, os poemas do homenageado, e, ao final, a árvore genealógica para mostrar todos os descendentes do poeta. É nesse momento que se descortina uma família com muitos de seus membros destacados nas mais diferentes atividades humanas.

           A ênfase, no entanto, recai sobre a produção poética de Lobo Manso, o patriarca. Sua poesia, de feição popular, se estrutura em redondilha maior, seguindo um esquema de rimas tradicionalmente usado pelos poetas do povo. Até aí, não há muita novidade.

           O que chama mais a atenção do leitor é o inusitado dos seus temas. A sua visão de mundo mostra um poeta cético diante dos exageros visionários da maioria dos sertanejos que acreditam primeiramente em milagres e premonições, antes de encarar a realidade que lhes cerca. Muitos estão com os olhos em subjetividades e esquecem a razão.

      Esse compromisso com o real o levou a confeccionar seu antológico poema de negação às experiências muitas vezes malogradas dos profetas da chuva. O poema foi publicado em folheto de cordel e teve grande repercussão por desmontar as crendices oriundas daqueles que vivem a fazer previsões de inverno. Logo de início ele afirma que "profeta como se diz / escreve sem garantia".

          Para citar algumas das experiências ele utiliza uma de suas décimas e desanca os visionários. "Nem torreame no Norte / nem relampo no Nascente / nem a barra do Poente / tudo isso não dá sorte / nem parado o vento forte / nem mancha do sul fugida / nem lua nova pendida / nada disso faz chover / depois de Deus não querer / toda ciência é perdida.”

         Ainda nesse poema, Lobo Manso utiliza outra décima para, na mesma batida popular, fazer um alerta para quem deseja fazer versos. É um momento em que a poesia fala de si própria, fazendo com que o leitor se veja diante de um texto metapoético.

          Daí que ele assevera: "precisa muita instrução / um homem pra ser poeta / fazer a obra completa / polida com perfeição / com toda a pontuação / fazer a rima direita / a poesia bem-feita / precisa estar no toante / faltando a consoante / torna-se a obra malfeita.” Como se vê, o polimento, ele defende, como para nos dizer que a poesia não é apenas produto de inspiração.

           Lobo Manso, no entanto, não foi apenas poeta. Afinal, militou a vida toda na política municipal de Lavras, chegando a vereador da cidade e guardando fidelidade ao seu partido político, no caso, a UDN, que no Ceará tinha como principais dirigentes, os representantes da família Távora. Seus ídolos, na política, eram: Juarez Távora, Fernandes Távora e Vírgílio. Tavorista ferrenho, sempre fez oposição à família Augusto, de Lavras, que dominou a cidade por quase cem anos e militava no PSD.

          Ainda na política, não restringiu seu olhar ao cenário lavrense. Quando surgiu a Revolução de 30, ele cantou loas à derrocada dos coronéis sertanejos. Não ficou apenas a cantar o enfraquecimento de Raimundo Augusto, coronel local, mas voltou-se na sua desforra verbal contra o coronel Zé Pereira, o famoso mandatário de Princesa.

          "Zé Pereira já foi trunfo / em todo aquele sertão / foi protetor de bandido / da mais alta posição / foi sócio de Suassuna / no tempo de Lampião". Essa oposição lavrense, leia-se UDN, dificilmente chegava ao poder, mas era resistente e comandada por: José Linhares, Alexandre Benício, Lobo Manso e João Ludgero Sobreira.

        Mesmo cético com relação a crendices e fanatismos, não deixou de cantar [no poema O Garrote Misterioso], talvez inspirado em O Pavão Misterioso, a história de um garrote que teria falado no Estado da Bahia.

        Na realidade, é um poema de desabafo contra a 2ª Guerra Mundial liderada pela Alemanha, mas também uma previsão do fim do mundo para 1999. Daí uma das estrofes: "Vê-se gente despedaçada / de uma e outra nação / um sem perna outro sem braço / rolados pelo canhão / uns doidos outros sem fala / todos varados de bala / rolando frios no chão.”

          Como se vê, Lobo Manso estava antenado com o que acontecia na Europa, Bahia e Lavras da Mangabeira. Agricultor, pouco letrado, deixou seus versos e sua honradez para os pósteros, como prova de seu tirocínio voltado para o futuro. Daí os valores intelectuais e morais de seus descendentes.                        

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  Diário do Nordeste.

                                                                                                                                      Fortaleza, 15.02.2011