sábado, 14 de setembro de 2019

Machado de Assis - Carta a Eduardo Luz


      Dimas Macedo




         Eduardo Luz,

        Durante três noites, estando em viagem pelo Continente, li o seu livro sobre os mistérios de Helena, a filha adotiva de Machado de Assis e o princípio de sua transgressão incestuosa.

         Li cada uma das partes em cidades diferentes, obedecendo à minha intuição. Na primeira noite, a leitura fluiu com os vinhos de Mendoza; na segunda, a travessia mais longa, acendi a calefação do meu apartamento; na terceira, concluí a leitura a passos de um tango.

         Dia seguinte, desfilando pela Rua Florida, encontrei dois autores que muito admiro. Inesperadamente, Rayuela e Dom Casmurro estavam lado a lado na vitrine de uma livraria. Feliz coincidência, pensei. Mas veio-me à lembrança que Cortázar tinha sido citado no último segmento do seu texto.

        Somente aí fechei a leitura do seu livro sobre a tragédia de Helena, a mãe de todas as mulheres de Machado de Assis, entre as quais, incluo as raízes de Iaiá Garcia e a santidade de sua musa Carolina.

        Já no segundo instante da minha caminhada, um rio abriu-se em minha alma e senti que Helena já não estava comigo. Eu esquecera o seu livro na Casa de Vitória Ocampo, que visitei no dia anterior.

         Tomei, então, a esquerda do restaurante La Cabrera, e eis o que deparo na terceira esquina: a Plazoleta Cortázar e sua duvidosa triangulação, feita de forma a abraçar a Calle Luis Borges, o dono do bairro de Palermo.

         Na mimosa Livraria Borges, encontrei-me com o Quincas Borba, e um cão labrador passou a me seguir os passos. Saí do meu isolamento e lembrei que o autor de Ficções tinha o hábito de ali se recolher em silêncio quase absoluto.

         O cânon de Machado de Assis já não será o mesmo depois da sua pesquisa: arguta, grega, intensa, sutil e refinada. Quem escreve assim, o faz para a posteridade e para a riqueza da língua.

          O Livro Que Não Foi Lido: Helena, de Machado de Assis, bem que merecia um parêntese, quem sabe, um colchete ou uma chave. A clave que usei não abriu todas as portas do seu livro, pois o seu trabalho revela não somente um enigma, mas uma pedra angular com gosto de cabala.

          Virgília é Virgília, e Capitu tem apenas os olhos de ressaca. Não possuía um escorpião no desejo, assim como Helena, nem a santidade que cuidava dos olhos de Machado, o mais doente de todos os escritores brasileiros e o menos lunático.

           A pilhagem da tragédia grega, levada a cabo por Machado de Assis, ao sabor da sua leitura fervorosa, é verosímil e oferece pano para as mangas.

           Não sei onde ficou em mim a primeira e única leitura de Helena. Preparava-me para um vestibular em 1977 (dividindo-se aqui vinte e quatro por três), quando me ocorreu o encontro. Fiquei embaraçado e não compreendi, mas Helena ficou em meu juízo, teimando com a razão e com o ócio. Agora, quarenta e dois anos depois, vejo que a metade do período, quando dividida por três, aponta para o número mais conhecido da Cabala.

         Dois mil e dezenove também se permite um bloco de imagens que redunda em um signo, e a imposição que me chega leva-me a supor que tenho que ler Helena duas vezes ainda este ano. Espero que Machado de Assis permita e que você entenda o significado do meu gesto.

         Antes, contudo, de abrir o seu livro, li, sem querer, Casa Velha, mas Helena, o romance, não quis abrir suas portas, como eu esperava.

          Melchior, um cretino; Helena, uma calculista; Estácio, quase nada; e o Conselheiro Aires, o mesmo Conselheiro Vale na maturidade.

          Um impostor, Machado de Assis, assim como aquele agrimensor que não consegue alcançar o Castelo que foi edificado para nunca ser acessado. Kafka, enquanto leitor de Machado, viu que os grandes enigmas da alma nunca serão atingidos, porque são Castelos do Mundo Interior, ainda que a sua quantidade seja sete, nas lições da maior Doutora da Igreja.

           Nesse sentido, Eduardo, seu livro é apenas uma hipótese e quase não é nada, diante da grandeza de um velho bruxo, mas a sua pesquisa se impõe, porque, indiscutivelmente, é muito original, enquanto trabalho acadêmico e Manual de Bruxaria.

            Ler Machado de Assis é mergulhar no abismo. Não compreender a sua criação é chamá-la de obra romanesca. Esse escritor não é anjo, mas demônio, que vestiu, desde cedo, alma feminina, e que não poupou nem o Conselheiro Aires, às portas do seu falecimento. Vejam-se aí suas mulheres, e veremos que o velho diplomata não existe.

            Machado de Assis não é apenas um mágico, mas uma voz que perpassa toda cultura literária, a clássica e a moderna.

             Donde Shakespeare, Dante, Goethe, Virgínia Woolf ou Tolstoi, somando-se a esse grupo mais quatro escritores, Machado de Assis está entre eles, trazendo para si o segredo que envolve a arte da palavra.

              Não fosse o seu livro tão enigmático e tão afetuoso, eu não teria ganhado o tempo precioso de escrever esta carta.
                                    
                                                                        Entre Buenos Aires e São Paulo, em 28/08/2019

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