Dimas Macedo
Eduardo Luz,
Durante três
noites, estando em viagem pelo Continente, li o seu livro sobre os mistérios de
Helena, a filha adotiva de Machado de Assis e o princípio de sua transgressão
incestuosa.
Li cada uma
das partes em cidades diferentes, obedecendo à minha intuição. Na primeira
noite, a leitura fluiu com os vinhos de Mendoza; na segunda, a travessia mais
longa, acendi a calefação do meu apartamento; na terceira, concluí a leitura a
passos de um tango.
Dia seguinte,
desfilando pela Rua Florida, encontrei dois autores que muito admiro.
Inesperadamente, Rayuela e Dom Casmurro estavam lado a lado na
vitrine de uma livraria. Feliz coincidência, pensei. Mas veio-me à lembrança
que Cortázar tinha sido citado no último segmento do seu texto.
Somente aí
fechei a leitura do seu livro sobre a tragédia de Helena, a mãe de todas as
mulheres de Machado de Assis, entre as quais, incluo as raízes de Iaiá Garcia e a santidade de sua musa
Carolina.
Já no segundo
instante da minha caminhada, um rio abriu-se em minha alma e senti que Helena
já não estava comigo. Eu esquecera o seu livro na Casa de Vitória Ocampo, que
visitei no dia anterior.
Tomei, então,
a esquerda do restaurante La Cabrera, e eis o que deparo na terceira esquina: a
Plazoleta Cortázar e sua duvidosa triangulação, feita de forma a abraçar a
Calle Luis Borges, o dono do bairro de Palermo.
Na mimosa
Livraria Borges, encontrei-me com o Quincas
Borba, e um cão labrador passou a me seguir os passos. Saí do meu isolamento
e lembrei que o autor de Ficções
tinha o hábito de ali se recolher em silêncio quase absoluto.
O cânon de
Machado de Assis já não será o mesmo depois da sua pesquisa: arguta, grega,
intensa, sutil e refinada. Quem escreve assim, o faz para a posteridade e para
a riqueza da língua.
O Livro Que Não Foi Lido: Helena, de Machado de Assis, bem que
merecia um parêntese, quem sabe, um colchete ou uma chave. A clave que usei não
abriu todas as portas do seu livro, pois o seu trabalho revela não somente um
enigma, mas uma pedra angular com gosto de cabala.
Virgília é
Virgília, e Capitu tem apenas os olhos de ressaca. Não possuía um escorpião no
desejo, assim como Helena, nem a santidade que cuidava dos olhos de Machado, o
mais doente de todos os escritores brasileiros e o menos lunático.
A pilhagem
da tragédia grega, levada a cabo por Machado de Assis, ao sabor da sua leitura
fervorosa, é verosímil e oferece pano para as mangas.
Não sei onde
ficou em mim a primeira e única leitura de Helena.
Preparava-me para um vestibular em 1977 (dividindo-se aqui vinte e quatro por
três), quando me ocorreu o encontro. Fiquei embaraçado e não compreendi, mas Helena ficou em meu juízo, teimando com
a razão e com o ócio. Agora, quarenta e dois anos depois, vejo que a metade do
período, quando dividida por três, aponta para o número mais conhecido da
Cabala.
Dois mil e
dezenove também se permite um bloco de imagens que redunda em um signo, e a
imposição que me chega leva-me a supor que tenho que ler Helena duas vezes ainda este ano. Espero que Machado de Assis permita
e que você entenda o significado do meu gesto.
Antes,
contudo, de abrir o seu livro, li, sem querer, Casa Velha, mas Helena,
o romance, não quis abrir suas portas, como eu esperava.
Melchior, um cretino; Helena, uma calculista;
Estácio, quase nada; e o Conselheiro Aires, o mesmo Conselheiro Vale na
maturidade.
Um impostor, Machado de Assis, assim como
aquele agrimensor que não consegue alcançar o Castelo que foi edificado para
nunca ser acessado. Kafka, enquanto leitor de Machado, viu que os grandes
enigmas da alma nunca serão atingidos, porque são Castelos do Mundo Interior,
ainda que a sua quantidade seja sete, nas lições da maior Doutora da Igreja.
Nesse sentido, Eduardo, seu livro é apenas uma
hipótese e quase não é nada, diante da grandeza de um velho bruxo, mas a sua
pesquisa se impõe, porque, indiscutivelmente, é muito original, enquanto
trabalho acadêmico e Manual de Bruxaria.
Ler Machado
de Assis é mergulhar no abismo. Não compreender a sua criação é chamá-la de
obra romanesca. Esse escritor não é anjo, mas demônio, que vestiu, desde cedo,
alma feminina, e que não poupou nem o Conselheiro Aires, às portas do seu
falecimento. Vejam-se aí suas mulheres, e veremos que o velho diplomata não
existe.
Machado de
Assis não é apenas um mágico, mas uma voz que perpassa toda cultura literária,
a clássica e a moderna.
Donde Shakespeare, Dante, Goethe, Virgínia
Woolf ou Tolstoi, somando-se a esse grupo mais quatro escritores, Machado de
Assis está entre eles, trazendo para si o segredo que envolve a arte da
palavra.
Não fosse
o seu livro tão enigmático e tão afetuoso, eu não teria ganhado o tempo
precioso de escrever esta carta.
Entre Buenos Aires e São Paulo, em 28/08/2019
Machado de Assis é um gênio que merece ser melhor dissecado como nesta carta supra!
ResponderExcluirPrezado Aury, grato por sua leitura.
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