domingo, 25 de maio de 2014

Lavras da Mangabeira (Àlbum de Lavras)

                Joaryvar Macedo


 


                                                                       Vila de São Vicente das Lavras

          As penetrações pioneiras e a ocupação do solo do médio Salgado, no sul do Ceará, das quais se tem notícia, datam do último quartel do Século XVII. Apossando-se daqueles terrenos, que amanhavam e onde criavam seus gados, os desbravadores, oriundos não apenas de Portugal, mas ainda, e, sobretudo, de capitanias do território pátrio, passaram, posteriormente, a requerê-los aos capitães-mores governadores da Capitania do Ceará.   
                  
        Atendidos eles em suas solicitações, as sesmarias doadas formaram os lastros das antigas propriedades rurais. Uma delas chamou-se Mangabeira.

         Quando, aos primeiros anos da segunda metade do século XVIII, se processou, em alguns pontos do sul cearense, a exploração do ouro, esse trabalho estendeu-se a fazenda Mangabeira, aliás com resultado insatisfatório. Por esta razão, em 1758 uma ordem régia determinava se sustassem as lavras ou extrações de minérios. Assim, os mineradores tiveram de dispersar-se, indo cuidar das atividades agropecuárias. Na Mangabeira, todavia, permaneceu um aglomerado humano, com o nome de Arraial de São Gonçalo, pouco depois Povoação de São Vicente Ferrer das Lavras da Mangabeira, em virtude de a capela ali construída haver sido dedicada ao famoso taumaturgo dominicano.

         Na sexta década do século XVIII, a povoação já era tida como florescente e em condições de erigir-se em vila. Com efeito, de uma representação da Câmara de Iço, datada de 25 de novembro de 1767, consta a conveniência da sua criação, por já ser o lugarejo assaz povoado e possuir “gente capaz de servir os diversos cargos”. Sua autonomia político-administrativa, entretanto, retardaria por cerca de meio século.

          Em face de uma provisão de 30 de agosto de 1813, instituiu-se a Freguesia de São Vicente Ferrer das Lavras da Mangabeira e, um triênio depois, através de alvará de 27 de junho de 1816, criou-se o município, com a elevação de povoado a condição de vila, sob a denominação oficial de Vila de São Vicente das Lavras, cuja instalação se deu a 8 de janeiro de 1818. Na ocasião, em frente à Igreja-Matriz, fixou-se o pelourinho, indicador da “supremacia local, sinal heráldico da vila que se erigia”, marcando “a nobreza da sua comunidade política”.

         Decorridos sessenta e seis anos, já instituída a comarca, fato ocorrido em 23 de agosto de 1873, a Vila de São Vicente das Lavras, por força de lei provincial de 20 de agosto de 1884, era elevada à categoria de cidade. Um decreto de 30 de dezembro de 1943 recuperava seu antigo, histórico e evocativo topônimo: Lavras da Mangabeira.

          Da extração do ouro em meados do Século XVIII, precisamente na fazenda da Mangabeira, conforme se registrou, proveio o nome da localidade. Aquele fato dera origem, ali, a algumas lendas, todas ligadas a metais preciosos. Segundo uma delas, por baixo do altar-mor da Igreja de São Vicente Ferrer passa um descomunal filão de ouro. Ali, também, sempre se narraram histórias do soterramento de espadas de ouro, de utensílios e depósitos refertos de ouro e prata. Mais fascinantes, entanto, são as narrativas fantásticas envolvendo a caverna do boqueirão, a majestosa garganta aberta na serra, abaixo da cidade, por onde, na época invernosa, tranquilo e belo, passa o Salgado conduzindo a totalidade das águas que descem do sudeste do Ceará.

         Pelos meados do século passado, Lavras possuía muito poucas casas de taipa com frente de tijolo. Só a partir do último quartel daquela centúria, começaram a estruturar-se outras artérias. Eram sobremodo evocativos os nomes das vias públicas do pretérito, que constituem o núcleo antigo da velha cidade: Rua dos Alpendres (atual Padre Alzir Sampaio), Rua do Rio ou Rua da Beira do Rio (a hodierna Cel. Raimundo Augusto), Rua da Praia (depois Santos Dumont), Rua do Meio (atualmente Monsenhor Meceno), Rua do Tabuleiro (posteriormente Major Ildefonso), Beco da Rua da Praia (ao flanco esquerdo da igreja) e Beco da Matriz (ao flanco direito).

         Alguns dos imóveis integrantes do núcleo primevo merecem destaque por suas linhas arquitetônicas: a Igreja Matriz de São Vicente Ferrer, reconstruída ao tempo do paroquiado do padre Raimundo Augusto Bezerra em ordem a ampliação do templo menor, edificado em 1803, pelo capelão padre Joaquim de Figueiredo Arnaud, no mesmo local da primitiva capela; o edifício da Cadeia Pública, cuja construção remota ao ano de 1877; o sobradinho da rua Mons. Meceno, esquina com a Praça Getúlio Vargas; muitos casarões de residências da gente grada da terra, em geral rebentos da sua antiga aristocracia rural, vários deles pertencentes ainda a seus descendentes. Diversos desses prédios acham-se hoje descaracterizados, alguns inteiramente. Nem todos, porém, sofreram a deplorável ação deletéria da febre reformista.

         As ruazinhas antigas de Lavras da Mangabeira foram testemunhas silentes de importantes eventos sócio-políticos da história provincial cearense e de outros que a estes sucederam, dos quais, ora, se referem alguns, dentre os mais remotos. A partir de 1822, sua população vê crescer o prestígio e influência da vila, através da atuação e projeção do filho da terra e primeiro vigário da paróquia, o padre José Joaquim Xavier Sobreira. Figura de prol dos movimentos libertários na gleba cearense, com assinalados serviços prestados à causa da Independência, esse ilustre levita lavrense, depois de haver sido eleito procurador-geral da Província do Ceará junto ao Conselho de Procuradores-Gerais das Províncias do Brasil, integrou o segundo governo temporário cearense, em 1823, ano em que, também, se elegeu deputado à Assembleia Geral Constituinte.

           Em 1823, aos 27 de abril, por ali transitava, procedente do litoral, e rumo ao Piauí e Maranhão, a tropa chefiada pelo capitão-mor José Pereira Figueiras, com a finalidade de combater João José da Cunha Fidié, que, naquelas plagas, a despeito da proclamação da independência do Brasil, criava empeços à nova ordem estabelecida. Já no ano seguinte, os comandados do mesmo capitão-mor Figueiras, aos 24 de outubro, em marcha para o Crato, ocupavam a vila destruindo o pelourinho e substituindo a bandeira imperial pela republicana. Ainda em 1824, lá eram detidas as forças de Pernambuco e Paraíba, fugitivas de suas províncias, em face de esmagação do movimento revolucionário da confederação do equador. Entre os prisioneiros, encontrava-se o idealista e bravo frei Joaquim do Amor Divino Caneca. Dali partiram, escoltados, no dia 16 de dezembro daquele ano, em direção ao Recife.

          Ao tempo de guerra civil absolutista do coronel Joaquim Pinto Madeira, irrompida no extremo sul do Ceará, no ano de 1832, Lavras serviu-lhe como um dos mais relevantes cenários. Naqueles tropéis de forças antagônicas armadas, agindo, especialmente, todo o meridional da Província, a Vila de São Vicente transformou-se, por vezes, em ponto de concentração e de resistência, sendo, aos 21 de março daquele ano, invadida pelas tropas legalistas.

          Tablado de acontecimentos assim marcantes e, no sul cearense, um dos salientes centros de irradiação dos movimentos a prol da independência pátria, Lavras, nada obstante, apresentava no passado, quiçá mesmo em consequência de toda essa ebulição, aspecto físico pouco ou nada lisonjeiro. Efetivamente, quando em 1838, era visitada por George Gardner, esse respeitável naturalista escocês, fazendo-lhe interessante registro, assegurou, a certa altura do seu depoimento, que a vila “continha de oitenta a cem casas, todas pequenas e muitas caindo em ruínas”. Já em fins de 1859, ao demorar-se na localidade, a célebre Comissão Científica de Exploração encontrou-a “pequena e tristonha, com duas escolas primárias e uma igreja...”.

          Todavia, nas últimas décadas do século em trânsito até princípios do vigente, Lavras logrou prosperar. Foi quando passou a constituir-se em razoável centro comercial, e as localidades mais próximas se lhe tornaram satélites. Surgiram, então, mais algumas artérias, e as antigas tiveram seus imóveis reconstruídos ou melhorados. Desde essa fase da história lavrense, se regular desenvolvimento econômico, as famílias abastadas se preocuparam mais com o encaminhamento dos filhos aos centros adiantados, onde pudessem habilitar-se para os cursos superiores que não poucos vieram a concluir.

          Essa, outrossim, a época em que Lavras mais se notabilizou pela vigência, ali, de uma das mais célebres e vigorosas oligarquias nordestinas – a família Augusto. Na verdade, alicerçada na casa-grande da fazenda do Logradouro de propriedade de Francisco Xavier Ângelo Sobreira, segundo capitão-mor e comandante-geral da vila e genitor do sobredito deputado José Joaquim Xavier Sobreira, a referida oligarquia, famosa e aguerrida, consolidou-se mercê do irrecusável prestígio do categorizado chefe político major João Carlos Augusto, tronco da supracitada linhagem. Ressalte-se que o domínio oligárquico dos Augustos de Lavras, de singular notoriedade, de marcada atuação e de decisiva influência na atividade política do Ceará, atingiu o fastígio enquanto teve por personagem central a destemida dona Fideralina Augusto Lima.

        A notável matrona sertaneja em apreço, considerada uma das figuras femininas de maior projeção na vida política cearense, fora dotada de tal capacidade de liderança, dominação e influência que entrou até mesmo para o terreno lendário.

        Celeiro de personagens de real valor, de legítimos mandões e oligarcas, Lavras se constituiu, por isso, em cenário de arraigadas rivalidades de origem político-partidária, causadoras de contundentes atos de violência e de funestas lutas fratricidas, responsáveis por seu declínio, após um período de certa florescência, e sua estagnação ao longo de algumas decúrias.

        Hodiernamente, no entanto, a cidade experimenta um novo surto de desenvolvimento. Lá estão para atestá-lo as novas e modernas ruas, praças e edifícios, os estabelecimentos comerciais e os de prestação de serviços, educandários, hospitais, agências bancárias, indústrias, clube ou centros socio-recreativos e assistenciais, meios de comunicação, entre outros órgãos e entidades que lhe conferem os foros de comuna de fato progressista.

         Registre-se, ademais, que Lavras da Mangabeira ressai, notadamente, qual berço pródigo de um povo operoso e inteligente, bem assim de numerosos filhos insignes. Neste tocante, afirmou o historiador Dimas Macedo: “Dali alçaram voo meninos sonhadores e inquietos que mais tarde se projetariam nas mais diferentes atividades humanas”. Em verdade, naquele chão fecundo, viram a luz do dia conselheiros imperiais, ministros e secretários de estado, líderes políticos de nomeada, senadores, deputados, desembargadores, professores universitários, sacerdotes, cientistas, escritores, poetas, artistas, militares, médicos, advogados e, em suma, profissionais liberais em profusão e em todas as áreas, podendo-se, enfim, contar algumas centenas de graduados, vindos ao mundo sob aqueles céus.

         Os lavrenses, ilustres ou não, como os demais bons filhos das boas terras, amam ardorosamente a gleba dadivosa e bela do seu nascimento e se enternecem, fascinados por sua história, suas tradições e suas lendas. E os ausentes, quando retornam, no silêncio de sua tranquilidade interior, comovidos e agradecidos, como o poeta Linhares Filho, bendizem o torrão natal, em amorável e terna confidência:

          “Nossa Terra! Antes de seres Lavras da Mangabeira, foste a Mangabeira das Lavras, revelando-se bem tua natureza de árvore, natureza pela qual, completando o aconchego de colo materno do chão, abrigas, refrescas com tua sombra e alimentas com os teus frutos os teus filhos e os que moram em ti, como a extinta Mangabeira anciã, que acolhia os teus primeiros povoadores e os viajantes que passavam por teu solo. Posta em boa hora nos trilhos do progresso estás, no entanto serás sempre a doçura e singeleza da nossa eterna infância, o reencontro de nós mesmos, cansados e desfigurados pelos caminhos enganosos da vida, nós que vimos a ti, materno seio, para a queixa e o alívio”.


                                                                                                                           Fortaleza, 1986





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