Joaryvar Macedo
Vila de São Vicente das Lavras
As
penetrações pioneiras e a ocupação do solo do médio Salgado, no sul do Ceará,
das quais se tem notícia, datam do último quartel do Século XVII. Apossando-se
daqueles terrenos, que amanhavam e onde criavam seus gados, os desbravadores,
oriundos não apenas de Portugal, mas ainda, e, sobretudo, de capitanias do
território pátrio, passaram, posteriormente, a requerê-los aos capitães-mores
governadores da Capitania do Ceará.
Atendidos eles em suas solicitações, as sesmarias doadas formaram os
lastros das antigas propriedades rurais. Uma delas chamou-se Mangabeira.
Quando, aos primeiros anos da segunda metade do século XVIII, se
processou, em alguns pontos do sul cearense, a exploração do ouro, esse
trabalho estendeu-se a fazenda Mangabeira, aliás com resultado insatisfatório.
Por esta razão, em 1758 uma ordem régia determinava se sustassem as lavras ou
extrações de minérios. Assim, os mineradores tiveram de dispersar-se, indo
cuidar das atividades agropecuárias. Na Mangabeira, todavia, permaneceu um
aglomerado humano, com o nome de Arraial de São Gonçalo, pouco depois Povoação
de São Vicente Ferrer das Lavras da Mangabeira, em virtude de a capela ali
construída haver sido dedicada ao famoso taumaturgo dominicano.
Na
sexta década do século XVIII, a povoação já era tida como florescente e em
condições de erigir-se em vila. Com efeito, de uma representação da Câmara de
Iço, datada de 25 de novembro de 1767, consta a conveniência da sua criação,
por já ser o lugarejo assaz povoado e possuir “gente capaz de servir os
diversos cargos”. Sua autonomia político-administrativa, entretanto, retardaria
por cerca de meio século.
Em
face de uma provisão de 30 de agosto de 1813, instituiu-se a Freguesia de São Vicente
Ferrer das Lavras da Mangabeira e, um triênio depois, através de alvará de 27
de junho de 1816, criou-se o município, com a elevação de povoado a condição de
vila, sob a denominação oficial de Vila de São Vicente das Lavras, cuja
instalação se deu a 8 de janeiro de 1818. Na ocasião, em frente à
Igreja-Matriz, fixou-se o pelourinho, indicador da “supremacia local, sinal
heráldico da vila que se erigia”, marcando “a nobreza da sua comunidade
política”.
Decorridos sessenta e seis anos, já instituída a comarca, fato ocorrido
em 23 de agosto de 1873, a Vila de São Vicente das Lavras, por força de lei
provincial de 20 de agosto de 1884, era elevada à categoria de cidade. Um
decreto de 30 de dezembro de 1943 recuperava seu antigo, histórico e evocativo
topônimo: Lavras da Mangabeira.
Da
extração do ouro em meados do Século XVIII, precisamente na fazenda da
Mangabeira, conforme se registrou, proveio o nome da localidade. Aquele fato
dera origem, ali, a algumas lendas, todas ligadas a metais preciosos. Segundo
uma delas, por baixo do altar-mor da Igreja de São Vicente Ferrer passa um
descomunal filão de ouro. Ali, também, sempre se narraram histórias do
soterramento de espadas de ouro, de utensílios e depósitos refertos de ouro e
prata. Mais fascinantes, entanto, são as narrativas fantásticas envolvendo a
caverna do boqueirão, a majestosa garganta aberta na serra, abaixo da cidade,
por onde, na época invernosa, tranquilo e belo, passa o Salgado conduzindo a
totalidade das águas que descem do sudeste do Ceará.
Pelos meados do século passado, Lavras possuía muito poucas casas de
taipa com frente de tijolo. Só a partir do último quartel daquela centúria,
começaram a estruturar-se outras artérias. Eram sobremodo evocativos os nomes
das vias públicas do pretérito, que constituem o núcleo antigo da velha cidade:
Rua dos Alpendres (atual Padre Alzir Sampaio), Rua do Rio ou Rua da Beira do
Rio (a hodierna Cel. Raimundo Augusto), Rua da Praia (depois Santos Dumont),
Rua do Meio (atualmente Monsenhor Meceno), Rua do Tabuleiro (posteriormente
Major Ildefonso), Beco da Rua da Praia (ao flanco esquerdo da igreja) e Beco da
Matriz (ao flanco direito).
Alguns dos imóveis integrantes do núcleo primevo merecem destaque por
suas linhas arquitetônicas: a Igreja Matriz de São Vicente Ferrer, reconstruída
ao tempo do paroquiado do padre Raimundo Augusto Bezerra em ordem a ampliação
do templo menor, edificado em 1803, pelo capelão padre Joaquim de Figueiredo
Arnaud, no mesmo local da primitiva capela; o edifício da Cadeia Pública, cuja
construção remota ao ano de 1877; o sobradinho da rua Mons. Meceno, esquina com
a Praça Getúlio Vargas; muitos casarões de residências da gente grada da terra,
em geral rebentos da sua antiga aristocracia rural, vários deles pertencentes
ainda a seus descendentes. Diversos desses prédios acham-se hoje
descaracterizados, alguns inteiramente. Nem todos, porém, sofreram a deplorável
ação deletéria da febre reformista.
As
ruazinhas antigas de Lavras da Mangabeira foram testemunhas silentes de
importantes eventos sócio-políticos da história provincial cearense e de outros
que a estes sucederam, dos quais, ora, se referem alguns, dentre os mais
remotos. A partir de 1822, sua população vê crescer o prestígio e influência da
vila, através da atuação e projeção do filho da terra e primeiro vigário da
paróquia, o padre José Joaquim Xavier Sobreira. Figura de prol dos movimentos
libertários na gleba cearense, com assinalados serviços prestados à causa da
Independência, esse ilustre levita lavrense, depois de haver sido eleito
procurador-geral da Província do Ceará junto ao Conselho de Procuradores-Gerais
das Províncias do Brasil, integrou o segundo governo temporário cearense, em
1823, ano em que, também, se elegeu deputado à Assembleia Geral Constituinte.
Em
1823, aos 27 de abril, por ali transitava, procedente do litoral, e rumo ao
Piauí e Maranhão, a tropa chefiada pelo capitão-mor José Pereira Figueiras, com
a finalidade de combater João José da Cunha Fidié, que, naquelas plagas, a
despeito da proclamação da independência do Brasil, criava empeços à nova ordem
estabelecida. Já no ano seguinte, os comandados do mesmo capitão-mor Figueiras,
aos 24 de outubro, em marcha para o Crato, ocupavam a vila destruindo o pelourinho
e substituindo a bandeira imperial pela republicana. Ainda em 1824, lá eram
detidas as forças de Pernambuco e Paraíba, fugitivas de suas províncias, em
face de esmagação do movimento revolucionário da confederação do equador. Entre
os prisioneiros, encontrava-se o idealista e bravo frei Joaquim do Amor Divino
Caneca. Dali partiram, escoltados, no dia 16 de dezembro daquele ano, em
direção ao Recife.
Ao
tempo de guerra civil absolutista do coronel Joaquim Pinto Madeira, irrompida
no extremo sul do Ceará, no ano de 1832, Lavras serviu-lhe como um dos mais
relevantes cenários. Naqueles tropéis de forças antagônicas armadas, agindo,
especialmente, todo o meridional da Província, a Vila de São Vicente
transformou-se, por vezes, em ponto de concentração e de resistência, sendo,
aos 21 de março daquele ano, invadida pelas tropas legalistas.
Tablado de acontecimentos assim marcantes e, no sul cearense, um dos
salientes centros de irradiação dos movimentos a prol da independência pátria,
Lavras, nada obstante, apresentava no passado, quiçá mesmo em consequência de
toda essa ebulição, aspecto físico pouco ou nada lisonjeiro. Efetivamente,
quando em 1838, era visitada por George Gardner, esse respeitável naturalista
escocês, fazendo-lhe interessante registro, assegurou, a certa altura do seu
depoimento, que a vila “continha de oitenta a cem casas, todas pequenas e
muitas caindo em ruínas”. Já em fins de 1859, ao demorar-se na localidade, a
célebre Comissão Científica de Exploração encontrou-a “pequena e tristonha, com
duas escolas primárias e uma igreja...”.
Todavia, nas últimas décadas do século em trânsito até princípios do
vigente, Lavras logrou prosperar. Foi quando passou a constituir-se em razoável
centro comercial, e as localidades mais próximas se lhe tornaram satélites.
Surgiram, então, mais algumas artérias, e as antigas tiveram seus imóveis
reconstruídos ou melhorados. Desde essa fase da história lavrense, se regular
desenvolvimento econômico, as famílias abastadas se preocuparam mais com o
encaminhamento dos filhos aos centros adiantados, onde pudessem habilitar-se
para os cursos superiores que não poucos vieram a concluir.
Essa, outrossim, a época em que Lavras mais se notabilizou pela
vigência, ali, de uma das mais célebres e vigorosas oligarquias nordestinas – a
família Augusto. Na verdade, alicerçada na casa-grande da fazenda do Logradouro
de propriedade de Francisco Xavier Ângelo Sobreira, segundo capitão-mor e
comandante-geral da vila e genitor do sobredito deputado José Joaquim Xavier
Sobreira, a referida oligarquia, famosa e aguerrida, consolidou-se mercê do
irrecusável prestígio do categorizado chefe político major João Carlos Augusto,
tronco da supracitada linhagem. Ressalte-se que o domínio oligárquico dos Augustos
de Lavras, de singular notoriedade, de marcada atuação e de decisiva influência
na atividade política do Ceará, atingiu o fastígio enquanto teve por personagem
central a destemida dona Fideralina Augusto Lima.
A
notável matrona sertaneja em apreço, considerada uma das figuras femininas de
maior projeção na vida política cearense, fora dotada de tal capacidade de
liderança, dominação e influência que entrou até mesmo para o terreno lendário.
Celeiro
de personagens de real valor, de legítimos mandões e oligarcas, Lavras se
constituiu, por isso, em cenário de arraigadas rivalidades de origem
político-partidária, causadoras de contundentes atos de violência e de funestas
lutas fratricidas, responsáveis por seu declínio, após um período de certa
florescência, e sua estagnação ao longo de algumas decúrias.
Hodiernamente, no entanto, a cidade experimenta um novo surto de
desenvolvimento. Lá estão para atestá-lo as novas e modernas ruas, praças e edifícios,
os estabelecimentos comerciais e os de prestação de serviços, educandários,
hospitais, agências bancárias, indústrias, clube ou centros socio-recreativos e
assistenciais, meios de comunicação, entre outros órgãos e entidades que lhe
conferem os foros de comuna de fato progressista.
Registre-se, ademais, que Lavras da Mangabeira ressai, notadamente, qual
berço pródigo de um povo operoso e inteligente, bem assim de numerosos filhos
insignes. Neste tocante, afirmou o historiador Dimas Macedo: “Dali alçaram voo
meninos sonhadores e inquietos que mais tarde se projetariam nas mais
diferentes atividades humanas”. Em verdade, naquele chão fecundo, viram a luz
do dia conselheiros imperiais, ministros e secretários de estado, líderes
políticos de nomeada, senadores, deputados, desembargadores, professores
universitários, sacerdotes, cientistas, escritores, poetas, artistas,
militares, médicos, advogados e, em suma, profissionais liberais em profusão e
em todas as áreas, podendo-se, enfim, contar algumas centenas de graduados,
vindos ao mundo sob aqueles céus.
Os
lavrenses, ilustres ou não, como os demais bons filhos das boas terras, amam
ardorosamente a gleba dadivosa e bela do seu nascimento e se enternecem,
fascinados por sua história, suas tradições e suas lendas. E os ausentes,
quando retornam, no silêncio de sua tranquilidade interior, comovidos e
agradecidos, como o poeta Linhares Filho, bendizem o torrão natal, em amorável
e terna confidência:
“Nossa Terra! Antes de seres Lavras da Mangabeira, foste a Mangabeira
das Lavras, revelando-se bem tua natureza de árvore, natureza pela qual,
completando o aconchego de colo materno do chão, abrigas, refrescas com tua
sombra e alimentas com os teus frutos os teus filhos e os que moram em ti, como
a extinta Mangabeira anciã, que acolhia os teus primeiros povoadores e os
viajantes que passavam por teu solo. Posta em boa hora nos trilhos do progresso
estás, no entanto serás sempre a doçura e singeleza da nossa eterna infância, o
reencontro de nós mesmos, cansados e desfigurados pelos caminhos enganosos da
vida, nós que vimos a ti, materno seio, para a queixa e o alívio”.
Fortaleza, 1986