Dimas Macedo
Na Constituição Federal podemos observar: a) a existência de uma competência da União para organizar serviços e exercer atribuições próprias do seu interesse (art. 21); b) uma competência privativa da União para legislar, inclusive sobre águas (art. 22); c) uma competência comum da União, dos Estados, Distrito Federal e dos Municípios para dispor sobre assuntos administrativos (art. 23); d) uma competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal para o exercício de sua competência legislativa (art. 24).
No âmbito da legislação concorrente, “a competência da União limitar-se-á estabelecer normas gerais” (art. 24, 1º), sendo ainda de registrar que “a competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados” (art. 24, § 2º). E mais: esclarece a Constituição que “inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender às suas peculiaridades” (art. 24, § 3º), e que somente a superveniência de lei federal sobre as normas gerais poderá suspender a eficácia da lei estadual, naquilo que lhe for contrário (§ 4º).
No rastro desse elenco de
competências é que cabe aos Estados exercer a sua política legislativa, tanto
mais quanto na proporção de outras competências constitucionais que lhe são
reconhecidas (arts. 25 e 26), cabendo aos municípios exercer as suas
competências na forma dos arts. 29, 30 e 31 da Constituição Federal.
No que tange à competência
privativa da União, para legislar sobre águas, prevista no inciso IV, do art.
22, cumpre salientar que citada previsão atende ao natural desdobramento do que
está preceituado no art. 20, incisos III e IV, da Constituição Federal, que
trata das águas fluentes ou em depósitos pertencentes ao domínio da União,
excluídas, neste caso, as áreas das ilhas oceânicas e costeiras pertencentes
aos Estados, aos Municípios ou de propriedade de terceiros, conforme o inciso
II, do art. 26, da Constituição.
Deflui também a competência
privativa em apreço do inciso XIX, do art. 21, da Constituição Federal, que nos
ensina competir à União, “instituir sistema nacional de gerenciamento de
recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso”;
esclarecendo-se, por fim, que na forma do parágrafo único do art. 22, está
assentado que “lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre
questões específicas das matérias relacionadas no artigo em epígrafe”.
Noutros termos, pelas normas
da Constituição Federal, legislar sobre águas é competência privativa da União
(art. 22, inciso IV). Entretanto, poderá Lei Complementar Federal autorizar os
Estados-Membros a legislar sobre questões específicas relacionadas com os
recursos hídricos.
Mas, se para legislar sobre águas
estão os Estados a depender de autorização da União, por via de lei
complementar, nada obsta que os mesmos possam dispor sobre o aproveitamento dos
seus bens e a utilização dos recursos hídricos sob o seu domínio, segundo a
faculdade que lhe é conferida pela Constituição (art. 25, § 1º, e art. 26,
incisos I e II).
É também reconhecido aos
Municípios, nesse tocante, o direito de legislar sobre assuntos hídricos de
interesse local (art. 30, inciso I), isto é, sobre o aproveitamento e a
utilização dos recursos hídricos municipais; e bem assim o de participar,
juntamente com os órgãos da Administração direta da União, dos Estados e do
Distrito Federal do resultado da exploração de recursos hídricos, existentes em
seu território, para fins de geração de energia elétrica, na forma do parágrafo
1º, do art. 20, da Carta Magna da República.
Compete ainda ao poder público
dos Estados, “registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de
pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios”,
para que assim se possa materializar a competência concorrente clássica, de
natureza material, que lhe é reconhecida pelo art. 23, inciso XI, da
Constituição Federal, cabendo ainda ao intérprete do Direito de Águas rastrear
a competência legislativa concorrente dos Estados para dispor sobre “recursos
naturais”, na forma do que preceitua o art. 24, inciso VI, da Constituição.
Ainda no pertinente à
competência material da União, cabe referir que somente “em articulação com os
Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos” é que poderia o ente
central federado explorar “os serviços e instalações de energia elétrica e o
aproveitamento energético dos cursos de água” (art. 21, inciso I, alínea b),
valendo com isso firmar, que, para efeito de aproveitamento energético, deverá
predominar a vontade nacional sempre que confrontada com o princípio da
autonomia dos Estados, isto porque se está diante de uma situação regional cujo
deslinde entende com a questão da estratégia e da segurança nacional.
Insistimos, contudo: somente
em situações desta natureza é que cabe reservar à União as competências
constitucionais demarcadas. Vejam-se neste sentido, a título de exemplo e de
analogia, as competências privativas do art. 22, conferidas à União para
legislar sobre normas gerais de organização, efetivos, material bélico,
garantias, mobilização das polícias militares, e sobre normas gerais de
licitação e contrato administrativo, sem que isso embargue a competência
material e legislativa dos Estados para a organização dessas corporações e para
dispor sobre licitação e contrato administrativo.
O que não podem são os
Estados dispor de uma política legislativa de águas com implicação em possíveis
monopólios de recursos hídricos regionais, almejando fins estratégicos ou
geopolíticos, porque assim se estaria a ferir o equilíbrio federativo da
República, proibido pelo o regime adotado pela Constituição.
Dessa forma, pela disciplina
do art. 22, inciso IV, da Constituição, legislar sobre águas é competência
privativa da União, mas que essa competência deve ser entendida apenas em
termos estratégicos, haja vista o sistema federativo que preside à organização
do Estado brasileiro, onde a discriminação das águas que são bens de domínio da
União se faz correlata à explicitação das águas cujo domínio pertence à pessoa
política dos Estados, a quem se deve reconhecer a competência para dispor sobre
o aproveitamento e utilização dos seus recursos naturais, emergentes, fluentes
ou em depósito, para aqui nos valermos da técnica utilizada pela Constituição.
Resguarda-se, pois, com as
observações acima, o princípio da autonomia dos Estados Federados, assegurado,
basicamente, pelo art. 25 da Constituição Federal, da mesma forma que aqui se
faz a defesa do regime de bens sobre os quais os Estados exercem seu domínio
(art. 26, inciso I), entre eles “as águas superficiais ou subterrâneas,
fluentes, emergentes e em depósito”, ressalvadas, neste caso específico e na
forma da lei, aquelas armazenadas em obras construídas pela União.
Não seria, assim, prudente
afirmar, como o fez Manoel Gonçalves Ferreira Filho, comentando o inciso IV, do
art. 22, aludido, que “defere-se neste passo à União legislar sobre a
utilização de todos os recursos hídricos do território nacional, inclusive
sobre as águas incluídas no patrimônio do Estado ou passadas para o de qualquer
entidade pública” (in Comentários à
Constituição Brasileira de 1988, São Paulo, Editora Saraiva, 1990, p. 173).
Preferimos neste tópico,
endossar a lição de Pinto Ferreira (in Comentários
à Constituição Brasileira, São Paulo, Editora Saraiva, 1990, p. 24), no
sentido de que, no pertinente ao “problema de águas”, a matéria “é bastante
complexa”, em tudo “compreendendo-se na legislação específica o seu conteúdo, a
determinação da sua natureza jurídica e de todo o seu regime legal, bem como o
aproveitamento das águas”.
Têm os Estados-Membros,
portanto, na forma dos dispositivos constitucionais acima, o âmbito do poder
que lhes toca em relação ao domínio dos recursos hídricos, sendo que com a
União e os Municípios se acham intercambiados por força da disciplina do art.
23 da Constituição Federal, que trata dos acertos da competência comum dessas
pessoas políticas, e que no seu parágrafo único verbera que “lei complementar
fixará normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal
e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar
em âmbito nacional”.
Assim sendo, o que parece
inadmissível, nestas alturas, é que os intérpretes do direito de águas não
tenham deslocado a sua ótica para a assimilação de outra forma de discriminação
existente em nosso direito constitucional – exatamente aquela relacionada com a
explicitação dos bens que são de domínio da União ou dos Estados, de par com a
autonomia constitucional que lhes é assegurada.
Seria letra morta o texto da Constituição
Federal se se pudesse argumentar, com certo grau de certeza, que os
Estados-Membros não podiam dispor da outorga do uso de águas represadas ou
fluentes no território sobre o qual exercem o seu domínio, excluídas aquelas de
domínio da União, por expressa disposição constitucional.
A invasão da legislação
federal, nessa área privativa dos Estados, a pretexto de salvaguarda das
competências legislativas, é abusiva e de todo não se justifica, pois já no
velho Código de Águas se veiculava a
lição de que as concessões ou autorizações para derivação de águas que não se
destinassem à produção de energia hidrelétrica seriam outorgadas pela União,
pelos Estados ou pelos Municípios, “conforme o seu domínio sobre as águas a que
se referir ou conforme os serviços públicos a que se destine a mesma
derivação”.
No art. 5º da Constituição de
1967, pela redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional de 1969,
pertinente aos negócios dos Estados-Membros, era pacífica e assertiva de que se
incluíam entre os bens dos Estados e Territórios “os lagos em terrenos de seu
domínio, bem como os rios que neles tem nascente e foz”, assim como as ilhas
fluviais e lacustres.
Na Constituição de 1988 (art.
26, inciso II) o trato do assunto adquiriu uma nova expressão, pois agora os
Estados podem arrolar entre os seus bens “as águas superficiais ou
subterrâneas, fluentes, emergentes ou em depósito, ressalvadas, neste caso, na
forma da lei, as decorrentes de obras da União”. Esta é a lição do art. 26 da
Constituição Federal, o qual não pode deixar de ser interpretado em consonância
com as competências pactuadas nos arts. 21/24 da mesma Constituição.
A confirmação de que os
recursos hídricos dos Estados podem ser aproveitados pelos mesmos na forma da
Constituição e leis que adotarem, e a afirmação de que somente estariam afetas
à União as águas do seu estrito domínio e aquelas de domínio dos Estados
potencialmente hidroenergéticas, podem ser aferidas igualmente nos artigos 176
e 231, § 3º, da Constituição, onde se lê, no primeiro dispositivo, que “os
potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo” e
que são eles pertencentes ao patrimônio da União; e, no segundo, que “o
aproveitamento dos recursos hídricos, inclusive os potenciais energéticos”,
encravados nas terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, somente pode
ser efetivado com autorização do Congresso Nacional.
Aspecto outro que excele na
Constituição, pertinente ao ramo do direito em comento, é aquele previsto no
art. 43, assim como nos seus parágrafos e incisos. O art. 43 trata da dimensão
administrativa e socioeconômica das regiões, estabelecendo, em seu § 2º, inciso
IV, que Lei Complementar disporá sobre a “prioridade para o aproveitamento
econômico e social dos rios e das massas de águas represadas ou responsáveis
nas regiões de baixa renda, sujeitas a secas periódicas”, esclarecendo o § 3º
do mesmo dispositivo que “nas áreas a que se refere o § 2º, inciso IV, a União
incentivará a recuperação de terras áridas e cooperará com os pequenos e médios
proprietários rurais para o estabelecimento, em suas glebas, de fontes de águas
e de pequena irrigação”.
Por fim, faz-se necessário
esclarecer: a leitura de todos estes dispositivos da Constituição Federal,
sistematicamente confrontados, nos deixa a impressão de que novos avanços
poderiam ter sido tentados pelo Constituinte neste setor, assim como, nos impõe
aqui registrar uma preocupação que julgamos essencial discutir – aquela de que
a Função Social da Água ainda não se mostrou esboçada qual um Princípio Constitucional,
entre nós. Cabe, portanto, defender a existência desse princípio no nosso
sistema jurídico.
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