quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Recursos Hidricos e Constituição


               Dimas Macedo


                  

             Na Constituição Federal podemos observar: a) a existência de uma competência da União para organizar serviços e exercer atribuições próprias do seu interesse (art. 21); b) uma competência privativa da União para legislar, inclusive sobre águas (art. 22); c) uma competência comum da União, dos Estados, Distrito Federal e dos Municípios para dispor sobre assuntos administrativos (art. 23); d) uma competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal para o exercício de sua competência legislativa (art. 24).
            No âmbito da legislação concorrente, “a competência da União limitar-se-á estabelecer normas gerais” (art. 24, 1º), sendo ainda de registrar que “a competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados” (art. 24, § 2º). E mais: esclarece a Constituição que “inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender às suas peculiaridades” (art. 24, § 3º), e que somente a superveniência de lei federal sobre as normas gerais poderá suspender a eficácia da lei estadual, naquilo que lhe for contrário (§ 4º).
  No rastro desse elenco de competências é que cabe aos Estados exercer a sua política legislativa, tanto mais quanto na proporção de outras competências constitucionais que lhe são reconhecidas (arts. 25 e 26), cabendo aos municípios exercer as suas competências na forma dos arts. 29, 30 e 31 da Constituição Federal.
   No que tange à competência privativa da União, para legislar sobre águas, prevista no inciso IV, do art. 22, cumpre salientar que citada previsão atende ao natural desdobramento do que está preceituado no art. 20, incisos III e IV, da Constituição Federal, que trata das águas fluentes ou em depósitos pertencentes ao domínio da União, excluídas, neste caso, as áreas das ilhas oceânicas e costeiras pertencentes aos Estados, aos Municípios ou de propriedade de terceiros, conforme o inciso II, do art. 26, da Constituição.
   Deflui também a competência privativa em apreço do inciso XIX, do art. 21, da Constituição Federal, que nos ensina competir à União, “instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso”; esclarecendo-se, por fim, que na forma do parágrafo único do art. 22, está assentado que “lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas no artigo em epígrafe”.
   Noutros termos, pelas normas da Constituição Federal, legislar sobre águas é competência privativa da União (art. 22, inciso IV). Entretanto, poderá Lei Complementar Federal autorizar os Estados-Membros a legislar sobre questões específicas relacionadas com os recursos hídricos.
   Mas, se para legislar sobre águas estão os Estados a depender de autorização da União, por via de lei complementar, nada obsta que os mesmos possam dispor sobre o aproveitamento dos seus bens e a utilização dos recursos hídricos sob o seu domínio, segundo a faculdade que lhe é conferida pela Constituição (art. 25, § 1º, e art. 26, incisos I e II).
    É também reconhecido aos Municípios, nesse tocante, o direito de legislar sobre assuntos hídricos de interesse local (art. 30, inciso I), isto é, sobre o aproveitamento e a utilização dos recursos hídricos municipais; e bem assim o de participar, juntamente com os órgãos da Administração direta da União, dos Estados e do Distrito Federal do resultado da exploração de recursos hídricos, existentes em seu território, para fins de geração de energia elétrica, na forma do parágrafo 1º, do art. 20, da Carta Magna da República.
   Compete ainda ao poder público dos Estados, “registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios”, para que assim se possa materializar a competência concorrente clássica, de natureza material, que lhe é reconhecida pelo art. 23, inciso XI, da Constituição Federal, cabendo ainda ao intérprete do Direito de Águas rastrear a competência legislativa concorrente dos Estados para dispor sobre “recursos naturais”, na forma do que preceitua o art. 24, inciso VI, da Constituição.
    Ainda no pertinente à competência material da União, cabe referir que somente “em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos” é que poderia o ente central federado explorar “os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água” (art. 21, inciso I, alínea b), valendo com isso firmar, que, para efeito de aproveitamento energético, deverá predominar a vontade nacional sempre que confrontada com o princípio da autonomia dos Estados, isto porque se está diante de uma situação regional cujo deslinde entende com a questão da estratégia e da segurança nacional.
     Insistimos, contudo: somente em situações desta natureza é que cabe reservar à União as competências constitucionais demarcadas. Vejam-se neste sentido, a título de exemplo e de analogia, as competências privativas do art. 22, conferidas à União para legislar sobre normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, mobilização das polícias militares, e sobre normas gerais de licitação e contrato administrativo, sem que isso embargue a competência material e legislativa dos Estados para a organização dessas corporações e para dispor sobre licitação e contrato administrativo.
     O que não podem são os Estados dispor de uma política legislativa de águas com implicação em possíveis monopólios de recursos hídricos regionais, almejando fins estratégicos ou geopolíticos, porque assim se estaria a ferir o equilíbrio federativo da República, proibido pelo o regime adotado pela Constituição.
     Dessa forma, pela disciplina do art. 22, inciso IV, da Constituição, legislar sobre águas é competência privativa da União, mas que essa competência deve ser entendida apenas em termos estratégicos, haja vista o sistema federativo que preside à organização do Estado brasileiro, onde a discriminação das águas que são bens de domínio da União se faz correlata à explicitação das águas cujo domínio pertence à pessoa política dos Estados, a quem se deve reconhecer a competência para dispor sobre o aproveitamento e utilização dos seus recursos naturais, emergentes, fluentes ou em depósito, para aqui nos valermos da técnica utilizada pela Constituição.
     Resguarda-se, pois, com as observações acima, o princípio da autonomia dos Estados Federados, assegurado, basicamente, pelo art. 25 da Constituição Federal, da mesma forma que aqui se faz a defesa do regime de bens sobre os quais os Estados exercem seu domínio (art. 26, inciso I), entre eles “as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito”, ressalvadas, neste caso específico e na forma da lei, aquelas armazenadas em obras construídas pela União.
     Não seria, assim, prudente afirmar, como o fez Manoel Gonçalves Ferreira Filho, comentando o inciso IV, do art. 22, aludido, que “defere-se neste passo à União legislar sobre a utilização de todos os recursos hídricos do território nacional, inclusive sobre as águas incluídas no patrimônio do Estado ou passadas para o de qualquer entidade pública” (in Comentários à Constituição Brasileira de 1988, São Paulo, Editora Saraiva, 1990, p. 173).
     Preferimos neste tópico, endossar a lição de Pinto Ferreira (in Comentários à Constituição Brasileira, São Paulo, Editora Saraiva, 1990, p. 24), no sentido de que, no pertinente ao “problema de águas”, a matéria “é bastante complexa”, em tudo “compreendendo-se na legislação específica o seu conteúdo, a determinação da sua natureza jurídica e de todo o seu regime legal, bem como o aproveitamento das águas”.
   Têm os Estados-Membros, portanto, na forma dos dispositivos constitucionais acima, o âmbito do poder que lhes toca em relação ao domínio dos recursos hídricos, sendo que com a União e os Municípios se acham intercambiados por força da disciplina do art. 23 da Constituição Federal, que trata dos acertos da competência comum dessas pessoas políticas, e que no seu parágrafo único verbera que “lei complementar fixará normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”.
    Assim sendo, o que parece inadmissível, nestas alturas, é que os intérpretes do direito de águas não tenham deslocado a sua ótica para a assimilação de outra forma de discriminação existente em nosso direito constitucional – exatamente aquela relacionada com a explicitação dos bens que são de domínio da União ou dos Estados, de par com a autonomia constitucional que lhes é assegurada.
    Seria letra morta o texto da Constituição Federal se se pudesse argumentar, com certo grau de certeza, que os Estados-Membros não podiam dispor da outorga do uso de águas represadas ou fluentes no território sobre o qual exercem o seu domínio, excluídas aquelas de domínio da União, por expressa disposição constitucional.
    A invasão da legislação federal, nessa área privativa dos Estados, a pretexto de salvaguarda das competências legislativas, é abusiva e de todo não se justifica, pois já no velho Código de Águas se veiculava a lição de que as concessões ou autorizações para derivação de águas que não se destinassem à produção de energia hidrelétrica seriam outorgadas pela União, pelos Estados ou pelos Municípios, “conforme o seu domínio sobre as águas a que se referir ou conforme os serviços públicos a que se destine a mesma derivação”.
    No art. 5º da Constituição de 1967, pela redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional de 1969, pertinente aos negócios dos Estados-Membros, era pacífica e assertiva de que se incluíam entre os bens dos Estados e Territórios “os lagos em terrenos de seu domínio, bem como os rios que neles tem nascente e foz”, assim como as ilhas fluviais e lacustres.
   Na Constituição de 1988 (art. 26, inciso II) o trato do assunto adquiriu uma nova expressão, pois agora os Estados podem arrolar entre os seus bens “as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes ou em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União”. Esta é a lição do art. 26 da Constituição Federal, o qual não pode deixar de ser interpretado em consonância com as competências pactuadas nos arts. 21/24 da mesma Constituição.
    A confirmação de que os recursos hídricos dos Estados podem ser aproveitados pelos mesmos na forma da Constituição e leis que adotarem, e a afirmação de que somente estariam afetas à União as águas do seu estrito domínio e aquelas de domínio dos Estados potencialmente hidroenergéticas, podem ser aferidas igualmente nos artigos 176 e 231, § 3º, da Constituição, onde se lê, no primeiro dispositivo, que “os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo” e que são eles pertencentes ao patrimônio da União; e, no segundo, que “o aproveitamento dos recursos hídricos, inclusive os potenciais energéticos”, encravados nas terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, somente pode ser efetivado com autorização do Congresso Nacional.
   Aspecto outro que excele na Constituição, pertinente ao ramo do direito em comento, é aquele previsto no art. 43, assim como nos seus parágrafos e incisos. O art. 43 trata da dimensão administrativa e socioeconômica das regiões, estabelecendo, em seu § 2º, inciso IV, que Lei Complementar disporá sobre a “prioridade para o aproveitamento econômico e social dos rios e das massas de águas represadas ou responsáveis nas regiões de baixa renda, sujeitas a secas periódicas”, esclarecendo o § 3º do mesmo dispositivo que “nas áreas a que se refere o § 2º, inciso IV, a União incentivará a recuperação de terras áridas e cooperará com os pequenos e médios proprietários rurais para o estabelecimento, em suas glebas, de fontes de águas e de pequena irrigação”.
     Por fim, faz-se necessário esclarecer: a leitura de todos estes dispositivos da Constituição Federal, sistematicamente confrontados, nos deixa a impressão de que novos avanços poderiam ter sido tentados pelo Constituinte neste setor, assim como, nos impõe aqui registrar uma preocupação que julgamos essencial discutir – aquela de que a Função Social da Água ainda não se mostrou esboçada qual um Princípio Constitucional, entre nós. Cabe, portanto, defender a existência desse princípio no nosso sistema jurídico.

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