segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Pablo Neruda - Canto Memorial

        Dimas Macedo


             Entre 1979 e 1983, consolidou-se, no Ceará, uma nova geração de escritores. 1983 foi um ano emblemático para os poetas dessa geração, especialmente por constituir o primeiro decênio da morte de Pablo Neruda (1904-1973), o poeta por excelência da cultura hispânico-americana e um dos mais influentes intelectuais do século vinte, em todos os sentidos.

             O evento foi rememorado no Ceará de uma forma muito especial, pois, além de o suplemento Cultura de O Povo, de 18.09.1983, ter sido todo ele dedicado a Neruda, com o artigo de fundo por mim estrategicamente redigido, Luciano Maia lhe dedicou um livro de excelente fatura: Neruda – Canto Memorial, publicado em São Paulo, pela Editora Movimento.

            A segunda edição desse livro veio a público em 2000, pela Imprensa Universitária da UFC, em vista do I Encontro Amazônico da Poesia Latino-Americana, em que Luciano Maia se fez presença destacada, na condição de poeta e palestrante, ao lado de escritores como Jorge Tufic e Thiago de Mello, sendo este último o prefaciador de Neruda – Canto Memorial.

           O livro de Luciano Maia chega, agora, à maioridade civil (e maioridade estética também, na melhor acepção da palavra). E se evidencia resistente e autônomo exatamente neste ano de 2004, quando Pablo Neruda completa o seu primeiro centenário de vida.

             Pablo Neruda não foi apenas o grande poeta latino-americano do seu tempo. Ele foi e é um escritor de porte universal, pois soube sintetizar, como poucos, a consciência política da sua geração, o lirismo romântico de corte amoroso e fraterno e o domínio irrecusável de uma linguagem sutil e fulgurante, que tanto marcou a tradição da cultura literária do Terceiro Mundo.

            Político, diplomata, cidadão do mundo e arauto do povo sofrido dos altiplanos da América, nasceu em Parral, no interior do Chile, a 12 de julho de 1904, e foi batizado com o nome de Ricardo Neftalí Reyes Basoalto, optando, posteriormente, pelo pseudônimo que o imortalizou. E isto ele o fez após a redação do seu primeiro volume de poemas, intitulado Cadernos de Temuco, escrito entre os quinze e dezessete anos, datando-se daí as Nascentes do Rio que o conduziu para a posteridade.

               Neruda viveu parte da infância em Temuco e, na adolescência, em Santiago; foi um dos mais ativos militantes da cena política e cultural, publicando o seu livro de estreia: Crepusculário, em 1923 e, no ano seguinte, os seus Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada (Veinte Poemas de Amor y una Canción Desesperada).

             Em 1927, foi nomeado Cônsul na Birmânia, sendo transferido depois para o Ceilão (1928). Regressando ao Chile, em 1932, publicou, no ano seguinte, o livro intitulado Residência na Terra (Residencia en la Tierra), ocupando também o Consulado do Chile em Buenos Aires (1933) e em Barcelona (1934). 

              Em 1935, é transferido para Madrid, participando ali da resistência civil ao lado de Garcia Lorca. Demitido do seu posto, por razões de ordem política tão-somente, viaja para Paris e funda, na Capital francesa, com o poeta peruano César Vallejo, o Grupo Latinoamericano de Ayuda a España, regressando ao Chile em 1937, e indo para Paris dois anos depois.

            Em Madrid, criou a revista Caballo Verde Para la Poesía e, ao terminar a guerra civil espanhola, transferiu um vasto contingente de exilados políticos para o Chile, fazendo-se Cônsul Geral no México em 1940, onde publica Canto Para Bolívar e escreve Carta a Estalingrado, que se torna um documento político bastante disputado pelo povo mexicano. Visita os Estados Unidos em 1943 e, de regresso ao Chile, nesse mesmo ano, empreende viagem pelo continente sul-americano, detendo-se em várias cidades da Costa do Pacífico.

            Em 1945, filia-se ao Partido Comunista, recebe o Prêmio Nacional de Literatura, na Capital chilena, e é eleito Senador da República. Faz conferências em Montevidéu e em Buenos Aires. Dois anos depois (1947), vítima de perseguição política, perde a sua cadeira de Senador e tem a sua prisão decretada por vários tribunais chilenos.

          Passa, então, a viver na clandestinidade e, inflamado pelo espírito do exílio e da clandestinidade, redige o monumental Canto Geral (Canto General), publicado em 1950/1951, e que se converte, com o tempo, no poema maior e no texto literário matriz da trajetória política, lírica e cultural dos povos da América Latina.

          Já consagrado literariamente, viaja pela Guatemala, Tchecoslováquia e Índia e recebe o Prêmio Internacional da Paz, que lhe é entregue em Pequim. Empreende viagem a diversos países da Europa, demorando-se em Berlim e Dinamarca, e especialmente na Itália, onde fixa residência.

            Revogada a sua prisão, em 1952, volta para o Chile, onde é recebido com grandes manifestações, e onde organiza, em Santiago, o Congresso Continental da Cultura, de indiscutível projeção internacional.

           Abre-se, a partir de então, um tempo de intensa criatividade para Pablo Neruda, datando-se dessa época Os Versos do Capitão (Los Versos del Capitán), As Uvas e o Vento (Las Uvas y el Viento) e Odes Elementares (Odes Elementales). Casa-se, em 1955, com Matilde Urrutia, sua quarta mulher, que passaria a exercer grande influência sobre a sua vida e a sua obra. A ela dedicou Cem Sonetos de Amor (Cien Sonetos de Amor), publicado em 1959 e que constitui um dos marcos da sua produção.

             E continua Pablo Neruda mais do que nunca andarilho, recebendo na Itália, em 1967, o Prêmio Literário Internacional, consagrando-se como teatrólogo com a peça Fulgor e Morte de Joaquim Murieta (Fulgor y Muerte de Joaquín Murieta), encenada em 1967. O seu livro A Barcarola (La Barcarola) é publicado nessa última data, e de 1969 são os livros Ainda (Aún) e Fim de Mundo (Fin de Mundo), que integram um dos momentos líricos de maior vigor e abrangência de toda a sua obra literária.

            Aspirante à Presidência do Chile, em 1970, pelo Partido Comunista, renuncia à candidatura em favor do líder máximo dos partidos populares chilenos, Salvador Allende, que, uma vez eleito, o nomeia para o cargo de Embaixador em Paris, sendo-lhe conferido, na Suécia, a 7 de junho de 1971, o Prêmio Nobel de Literatura, glória com a qual retorna ao Chile, para ali falecer aos 23 de setembro de 1973.

          A obra literária de Pablo Neruda é diversificada e remarcada pela lírica em geral, pela épica de suas projeções humanas e pelas intenções com que resgata as aflições de vários extratos periféricos. O que não falta em todos os seus textos é a presença de um humanismo de viés integral e militante e de uma fala ancestral e mitológica que não se querem, jamais, em compasso de espera.

          Publicou Neruda quase cinco dezenas de livros de alta ressonância e alguns desses livros – duas dezenas e meia deles, pelo menos – foram traduzidos e publicados no Brasil, a partir de versões feitas por Thiago de Mello, Domingos Carvalho da Silva, Carlos Nejar, Olga Savary e Fernando Sabino. O Rio Invisível, Cadernos de Temuco, Os Versos do Capitão, Pelas Praias do Mundo e os seus dois livros de memórias mais admirados – Confesso Que Vivi e Para Nascer, Nasci –foram editados entre nós pela Bertrand Brasil.

          A Barcarola, As Uvas e o Vento e Cem Sonetos de Amor estão disponíveis no Brasil com o selo da editora gaúcha L&PM, enquanto a Antologia Poética, com tradução de Eliane Zagury, foi publicada pela Editora José Olympio, cabendo a Olga Savary a tradução de Fulgor e Morte de Joaquim Murieta.

          Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada (tradução de Domingos Carvalho da Silva) e Ainda (tradução de Olga Savary) são exemplos de livros de Neruda que se tornaram muito populares no Brasil, ao lado do seu incomparável Canto Geral, poema épico fundador da ancestralidade americana e da nossa condição de povo sofrido e esmagado.

             As Uvas e o Vento é talvez o livro mais otimista de Neruda. Quando publicado, em 1954, levantou uma polêmica não apenas poética, mas política e ideológica, fundamentalmente. Nele o autor, um militante comunista, presta uma homenagem ao socialismo e ao tenso movimento humanista do pós-guerra, pintando com sonoridade e sensibilidade painéis sobre o homem e sua paisagem-ambiente. 

Se me perguntassem, agora, sobre o significado da poesia de Neruda, responderia que, num momento como este, em que a humanidade se volta para um tormentoso debate em torno da sua própria desagregação, nada melhor para enfrentar os nossos desafios do que voltar-se para a obra desse grande poeta universal, um nome que nem o Chile nem a América Latina nem o resto do mundo jamais poderão esquecer.

           Pablo Neruda, poeta maior da sua nacionalidade e a expressão mais genuína da cultura de combate e resistência que se forjou no século precedente, foi o escritor latino-americano que melhor compreendeu a circunstância histórico-cultural, na qual nos encontramos inseridos, e mais do que isso: foi ele um poeta que amou o seu povo, e o chileno que melhor dimensionou seu País. 

          Ninguém melhor do que ele soube inventariar o nosso processo civilizatório e a nossa condição de povo colonizado. E aí está o seu irrepreensível Canto Geral (Canto General) para testemunhar a sua exasperação criativa, um livro que, ao lado de Terra Nostra (Tierra Nuestra), do mexicano Carlos Fuentes, e de Cem Anos de Solidão (Cien Anos de Soledad), de Gabriel García Márquez, compõe a galeria de obras fundamentais para compreender a formação do continente americano.

           Bardo lírico de feição predominantemente telúrica, poeta social de grave prospecção humanística, Neruda foi por certo uma fulguração literária lastreada em múltiplas perspectivas. Além do exercício do ato de viver, que enfaticamente salienta, meditou a vida em toda a sua dimensão existencial e a apreendeu para além de todos os seus encantos e sofismas.

            A poesia de Pablo Neruda é toda ela reveladora de um inegável poderio verbal inerente à tessitura literária do seu criador. É toda ela detentora de uma inquestionável aventura expressiva e exibidora de um vasto painel, no qual afloram todo um insubmisso discurso e toda uma aliciante semântica.

            Neruda se insere no rol daqueles poetas de língua hispânica e de fala alucinadamente revolucionária que, de forma mais corajosa, elegeram uma ininterrupta trajetória de luta como motivo primordial do ato de existir, a exemplo de Ernesto Cardenal e Federico García Lorca.

             Enquanto viveu, Neruda sempre nos revelou um engajamento quase que sem precedentes. Ele contestou, combateu e resistiu, tanto com a palavra quanto com as ações. Lutou, amou e deu a vida pela causa da liberdade e pelo expurgo da opressão. Foi Neruda um poeta múltiplo, com certeza, porém um homem tremendamente injustiçado pelos poderosos do seu país. 

             Marcaram-no, profundamente, tanto a perseguição contra ele desencadeada pelo regime do Presidente González Videla, quanto o brutal exílio ao qual se submeteu contra a sua vontade. Vibrou com a ascensão de Allende à mais alta magistratura da nação, e tanto se irmanou com os seus ideais, que com ele preferiu sucumbir antes de ter que assistir mais uma vez ao Chile dominado por um regime de exceção.

             Engajado nas causas do socialismo e da liberdade, não deixou, contudo, a sua obra ser contaminada pelo viés político-partidário. Exilado, resistente, combativo, corajoso e protagonista de uma das aventuras mais expressivas da lírica em língua castelhana – legou-nos os mais perfeitos, emotivos e emocionantes poemas que a estética literária moderna se mostrou capaz de conceber.

             Por último, devo dizer que conheci Neruda através de Ainda (Aún), um livro que li com a maior sofreguidão, especialmente porque nas suas páginas eu vi refletida a minha infância, razão pela qual eu o guardo com a maior atenção. Pela primeira vez, lendo Neruda, tomei conhecimento de que no sul do Chile as araucárias existem em abundância e, mais tarde, depois de algumas outras leituras, de que nessa mesma região existem lugares como Parral e Temuco, cheios de paisagens sombrias e tempestuosas.

           Em Parral, como vimos, nasceu este poeta maior das Américas, aos 12 de julho de 1904, tendo falecido aos 69 anos, depois de viver as grandes tragédias do século que ajudou a libertar e que, decididamente, inscreve-se entre os momentos mais miseráveis e obscuros da história da humanidade. Morreu aos 23 de setembro de 1973, após ver vilipendiada a sua pátria e traídos os ideais socialistas do seu amigo Salvador Allende. Esses desacertos e contradições, essas traições e turbulências próprias desse século de “luzes” ele já havia cantado em Fim de Mundo (Fin de Mundo), livro cuja leitura nos transmitiria a certeza de que, em verdade, estaríamos vivenciando a nossa própria hecatombe. 

           Se fizermos um balanço desses vinte e um anos de ausência de Neruda, e dos cem anos de sua permanência entre nós, iremos fatalmente constatar que em outro qualquer período jamais foi ele alvo de tantas manifestações. Entre os seus fiéis admiradores, que hoje se espalham por todos os continentes, dando-lhe uma dimensão universal, está o poeta Luciano Maia, que nos brinda agora com a republicação de Neruda – Canto Memorial: livro a um só tempo iluminado e maduro, e enriquecido pela apresentação de Thiago de Mello.

            Com Neruda – Canto Memorial (Fortaleza, Editora UFC, 3ª ed., 2004), Luciano Maia empresta à sua construção literária uma configuração crítico-alegórica, ao mapear a tragédia do grande poeta universal. Da poesia de Luciano Maia, esse grande poeta latino-americano emerge não apenas como um bardo de fala insubmissa, senão como sendero luminoso, direcionado para os caminhos da resistência e da libertação, agigantando-se assim o autor de Sol de Espavento no contexto da literatura brasileira atual.

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