Dimas Macedo
Entre 1979 e 1983, consolidou-se, no Ceará, uma
nova geração de escritores. 1983 foi um ano emblemático para os poetas dessa
geração, especialmente por constituir o primeiro decênio da morte de Pablo
Neruda (1904-1973), o poeta por excelência da cultura hispânico-americana e um
dos mais influentes intelectuais do século vinte, em todos os sentidos.
O evento foi rememorado no Ceará
de uma forma muito especial, pois, além de o suplemento Cultura de O
Povo, de 18.09.1983, ter sido todo ele dedicado a Neruda, com o artigo de
fundo por mim estrategicamente redigido, Luciano Maia lhe dedicou um livro de
excelente fatura: Neruda – Canto Memorial, publicado em São Paulo, pela
Editora Movimento.
A segunda edição desse livro veio a público
em 2000, pela Imprensa Universitária da UFC, em vista do I Encontro Amazônico
da Poesia Latino-Americana, em que Luciano Maia se fez presença destacada, na
condição de poeta e palestrante, ao lado de escritores como Jorge Tufic e
Thiago de Mello, sendo este último o prefaciador de Neruda – Canto Memorial.
O livro de Luciano Maia chega,
agora, à maioridade civil (e maioridade estética também, na melhor acepção da
palavra). E se evidencia resistente e autônomo exatamente neste ano de 2004,
quando Pablo Neruda completa o seu primeiro centenário de vida.
Pablo Neruda não foi apenas o
grande poeta latino-americano do seu tempo. Ele foi e é um escritor de porte
universal, pois soube sintetizar, como poucos, a consciência política da sua
geração, o lirismo romântico de corte amoroso e fraterno e o domínio
irrecusável de uma linguagem sutil e fulgurante, que tanto marcou a tradição da
cultura literária do Terceiro Mundo.
Político, diplomata, cidadão do
mundo e arauto do povo sofrido dos altiplanos da América, nasceu em Parral, no
interior do Chile, a 12 de julho de 1904, e foi batizado com o nome de Ricardo
Neftalí Reyes Basoalto, optando, posteriormente, pelo pseudônimo que o imortalizou.
E isto ele o fez após a redação do seu primeiro volume de poemas, intitulado Cadernos
de Temuco, escrito entre os quinze e dezessete anos, datando-se daí as Nascentes
do Rio que o conduziu para a posteridade.
Neruda viveu parte da infância
em Temuco e, na adolescência, em Santiago; foi um dos mais ativos militantes da
cena política e cultural, publicando o seu livro de estreia: Crepusculário,
em 1923 e, no ano seguinte, os seus Vinte Poemas de Amor e Uma Canção
Desesperada (Veinte Poemas de Amor y una Canción Desesperada).
Em 1927, foi nomeado Cônsul na
Birmânia, sendo transferido depois para o Ceilão (1928). Regressando ao Chile,
em 1932, publicou, no ano seguinte, o livro intitulado Residência na Terra
(Residencia en la Tierra), ocupando também o Consulado do Chile em
Buenos Aires (1933) e em Barcelona (1934).
Em 1935, é transferido para
Madrid, participando ali da resistência civil ao lado de Garcia Lorca. Demitido
do seu posto, por razões de ordem política tão-somente, viaja para Paris e
funda, na Capital francesa, com o poeta peruano César Vallejo, o Grupo
Latinoamericano de Ayuda a España, regressando ao Chile em 1937, e indo para
Paris dois anos depois.
Em Madrid, criou a revista Caballo
Verde Para la Poesía e, ao terminar a guerra civil espanhola, transferiu um
vasto contingente de exilados políticos para o Chile, fazendo-se Cônsul Geral
no México em 1940, onde publica Canto Para Bolívar e escreve Carta a
Estalingrado, que se torna um documento político bastante disputado pelo
povo mexicano. Visita os Estados Unidos em 1943 e, de regresso ao Chile, nesse
mesmo ano, empreende viagem pelo continente sul-americano, detendo-se em várias
cidades da Costa do Pacífico.
Em 1945, filia-se ao Partido
Comunista, recebe o Prêmio Nacional de Literatura, na Capital chilena, e é
eleito Senador da República. Faz conferências em Montevidéu e em Buenos Aires.
Dois anos depois (1947), vítima de perseguição política, perde a sua cadeira de
Senador e tem a sua prisão decretada por vários tribunais chilenos.
Passa, então, a viver na
clandestinidade e, inflamado pelo espírito do exílio e da clandestinidade,
redige o monumental Canto Geral (Canto General), publicado em
1950/1951, e que se converte, com o tempo, no poema maior e no texto literário
matriz da trajetória política, lírica e cultural dos povos da América Latina.
Já consagrado literariamente, viaja
pela Guatemala, Tchecoslováquia e Índia e recebe o Prêmio Internacional da Paz,
que lhe é entregue em Pequim. Empreende viagem a diversos países da Europa,
demorando-se em Berlim e Dinamarca, e especialmente na Itália, onde fixa
residência.
Revogada a sua prisão, em 1952,
volta para o Chile, onde é recebido com grandes manifestações, e onde organiza,
em Santiago, o Congresso Continental da Cultura, de indiscutível projeção
internacional.
Abre-se, a partir de então, um tempo
de intensa criatividade para Pablo Neruda, datando-se dessa época Os Versos
do Capitão (Los Versos del Capitán), As Uvas e o Vento (Las
Uvas y el Viento) e Odes Elementares (Odes Elementales).
Casa-se, em 1955, com Matilde Urrutia, sua quarta mulher, que passaria a
exercer grande influência sobre a sua vida e a sua obra. A ela dedicou Cem Sonetos
de Amor (Cien Sonetos de Amor), publicado em 1959 e que constitui um
dos marcos da sua produção.
E continua Pablo Neruda mais do
que nunca andarilho, recebendo na Itália, em 1967, o Prêmio Literário
Internacional, consagrando-se como teatrólogo com a peça Fulgor e Morte de
Joaquim Murieta (Fulgor y Muerte de Joaquín Murieta), encenada
em 1967. O seu livro A Barcarola (La Barcarola) é publicado nessa
última data, e de 1969 são os livros Ainda (Aún) e Fim de
Mundo (Fin de Mundo), que integram um dos momentos líricos de maior
vigor e abrangência de toda a sua obra literária.
Aspirante à Presidência do Chile,
em 1970, pelo Partido Comunista, renuncia à candidatura em favor do líder
máximo dos partidos populares chilenos, Salvador Allende, que, uma vez eleito,
o nomeia para o cargo de Embaixador em Paris, sendo-lhe conferido, na Suécia, a
7 de junho de 1971, o Prêmio Nobel de Literatura, glória com a qual retorna ao
Chile, para ali falecer aos 23 de setembro de 1973.
A obra literária de Pablo Neruda é
diversificada e remarcada pela lírica em geral, pela épica de suas projeções
humanas e pelas intenções com que resgata as aflições de vários extratos
periféricos. O que não falta em todos os seus textos é a presença de um humanismo
de viés integral e militante e de uma fala ancestral e mitológica que não se
querem, jamais, em compasso de espera.
Publicou Neruda quase cinco dezenas
de livros de alta ressonância e alguns desses livros – duas dezenas e meia
deles, pelo menos – foram traduzidos e publicados no Brasil, a partir de
versões feitas por Thiago de Mello, Domingos Carvalho da Silva, Carlos Nejar,
Olga Savary e Fernando Sabino. O Rio Invisível, Cadernos de Temuco, Os
Versos do Capitão, Pelas Praias do Mundo e os seus dois livros de memórias
mais admirados – Confesso Que Vivi e Para Nascer, Nasci –foram
editados entre nós pela Bertrand Brasil.
A Barcarola, As Uvas e o Vento e Cem Sonetos de Amor
estão disponíveis no Brasil com o selo da editora gaúcha L&PM, enquanto a Antologia
Poética, com tradução de Eliane Zagury, foi publicada pela Editora José
Olympio, cabendo a Olga Savary a tradução de Fulgor e Morte de Joaquim
Murieta.
Vinte Poemas de Amor e Uma Canção
Desesperada
(tradução de Domingos Carvalho da Silva) e Ainda (tradução de Olga
Savary) são exemplos de livros de Neruda que se tornaram muito populares no
Brasil, ao lado do seu incomparável Canto Geral, poema épico fundador da
ancestralidade americana e da nossa condição de povo sofrido e esmagado.
As Uvas e o Vento é talvez o livro mais otimista
de Neruda. Quando publicado, em 1954, levantou uma polêmica não apenas poética,
mas política e ideológica, fundamentalmente. Nele o autor, um militante
comunista, presta uma homenagem ao socialismo e ao tenso movimento humanista do
pós-guerra, pintando com sonoridade e sensibilidade painéis sobre o homem e sua
paisagem-ambiente.
Se me
perguntassem, agora, sobre o significado da poesia de Neruda, responderia que,
num momento como este, em que a humanidade se volta para um tormentoso debate
em torno da sua própria desagregação, nada melhor para enfrentar os nossos
desafios do que voltar-se para a obra desse grande poeta universal, um nome que
nem o Chile nem a América Latina nem o resto do mundo jamais poderão esquecer.
Pablo Neruda, poeta maior da sua
nacionalidade e a expressão mais genuína da cultura de combate e resistência
que se forjou no século precedente, foi o escritor latino-americano que melhor
compreendeu a circunstância histórico-cultural, na qual nos encontramos
inseridos, e mais do que isso: foi ele um poeta que amou o seu povo, e o
chileno que melhor dimensionou seu País.
Ninguém melhor do que ele soube
inventariar o nosso processo civilizatório e a nossa condição de povo
colonizado. E aí está o seu irrepreensível Canto
Geral (Canto General) para testemunhar a sua exasperação criativa,
um livro que, ao lado de Terra Nostra (Tierra
Nuestra), do mexicano
Carlos Fuentes, e de Cem Anos de Solidão (Cien
Anos de Soledad), de
Gabriel García Márquez, compõe a galeria de obras fundamentais para compreender
a formação do continente americano.
Bardo lírico de feição
predominantemente telúrica, poeta social de grave prospecção humanística,
Neruda foi por certo uma fulguração literária lastreada em múltiplas
perspectivas. Além do exercício do ato de viver, que enfaticamente salienta,
meditou a vida em toda a sua dimensão existencial e a apreendeu para além de
todos os seus encantos e sofismas.
A poesia de Pablo Neruda é toda ela
reveladora de um inegável poderio verbal inerente à tessitura literária do seu
criador. É toda ela detentora de uma inquestionável aventura expressiva e
exibidora de um vasto painel, no qual afloram todo um insubmisso discurso e
toda uma aliciante semântica.
Neruda se insere no rol daqueles
poetas de língua hispânica e de fala alucinadamente revolucionária que, de
forma mais corajosa, elegeram uma ininterrupta trajetória de luta como motivo
primordial do ato de existir, a exemplo de Ernesto Cardenal e Federico García
Lorca.
Enquanto viveu, Neruda sempre nos
revelou um engajamento quase que sem precedentes. Ele contestou, combateu e
resistiu, tanto com a palavra quanto com as ações. Lutou, amou e deu a vida
pela causa da liberdade e pelo expurgo da opressão. Foi Neruda um poeta
múltiplo, com certeza, porém um homem tremendamente injustiçado pelos poderosos
do seu país.
Marcaram-no, profundamente, tanto
a perseguição contra ele desencadeada pelo regime do Presidente González
Videla, quanto o brutal exílio ao qual se submeteu contra a sua vontade. Vibrou
com a ascensão de Allende à mais alta magistratura da nação, e tanto se irmanou
com os seus ideais, que com ele preferiu sucumbir antes de ter que assistir
mais uma vez ao Chile dominado por um regime de exceção.
Engajado nas causas do socialismo
e da liberdade, não deixou, contudo, a sua obra ser contaminada pelo viés
político-partidário. Exilado, resistente, combativo, corajoso e protagonista de
uma das aventuras mais expressivas da lírica em língua castelhana – legou-nos
os mais perfeitos, emotivos e emocionantes poemas que a estética literária
moderna se mostrou capaz de conceber.
Por último, devo dizer que conheci
Neruda através de Ainda (Aún), um livro que li com a maior
sofreguidão, especialmente porque nas suas páginas eu vi refletida a minha
infância, razão pela qual eu o guardo com a maior atenção. Pela
primeira vez, lendo Neruda, tomei conhecimento de que no sul do Chile as
araucárias existem em abundância e, mais tarde, depois de algumas outras
leituras, de que nessa mesma região existem lugares como Parral e Temuco,
cheios de paisagens sombrias e tempestuosas.
Em Parral, como vimos, nasceu este
poeta maior das Américas, aos 12 de julho de 1904, tendo falecido aos 69 anos,
depois de viver as grandes tragédias do século que ajudou a libertar e que,
decididamente, inscreve-se entre os momentos mais miseráveis e obscuros da
história da humanidade. Morreu aos 23 de setembro de 1973, após ver
vilipendiada a sua pátria e traídos os ideais socialistas do seu amigo Salvador
Allende. Esses desacertos e contradições, essas traições e turbulências
próprias desse século de “luzes” ele já havia cantado em Fim de Mundo (Fin de Mundo), livro cuja leitura nos transmitiria a certeza de que, em
verdade, estaríamos vivenciando a nossa própria hecatombe.
Se fizermos um balanço desses vinte
e um anos de ausência de Neruda, e dos cem anos de sua permanência entre nós,
iremos fatalmente constatar que em outro qualquer período jamais foi ele alvo
de tantas manifestações. Entre os seus fiéis admiradores, que hoje se espalham
por todos os continentes, dando-lhe uma dimensão universal, está o poeta Luciano
Maia, que nos brinda agora com a republicação de Neruda – Canto Memorial: livro a um só tempo iluminado e
maduro, e enriquecido pela apresentação de Thiago de Mello.
Com Neruda – Canto Memorial (Fortaleza,
Editora UFC, 3ª ed., 2004), Luciano Maia empresta à sua
construção literária uma configuração crítico-alegórica, ao mapear a tragédia
do grande poeta universal. Da poesia de Luciano Maia, esse grande poeta
latino-americano emerge não apenas como um bardo de fala insubmissa, senão como
sendero luminoso, direcionado para os caminhos da resistência e da
libertação, agigantando-se assim o autor de Sol de Espavento no contexto da literatura brasileira atual.