domingo, 13 de abril de 2014

Vozes de Fortaleza, Vozes da Cidadania

              Dimas Macedo

 
             Em dois poemas extraídos do meu livro Liturgia do Caos (Brasília, Editora Códice, 1996), intitulados: “Crônica” e “Mudanças”, está exposta uma parcela do amor que dedico a Fortaleza; mas em parte eles sintetizam os fulgores da minha consciência política, pois não saberia viver numa cidade sem que pudesse interagir com a plenitude das suas tentações e com os seus desafios de ordem política e social.

            A mais bela cidade do mundo, Lavras da Mangabeira, situa-se na margem esquerda do Rio Salgado, no centro sul do Ceará. Pertenço a todos os traços e sinais que constituem a sua geografia e a sua memória ancestral e mitológica, mas é certo que Fortaleza passou a ser também a minha casa.

           Fortaleza – repito – e o seu potencial lírico e o amoroso incrustaram-se no meu coração de poeta e na minha alma de cidadão e militante político como se fossem uma carta de navegação e uma tatuagem.

            E, se falo da cidade, que agora me acolhe, oficialmente, como cidadão, é para rememorar, em primeiro lugar, a sua geografia estética e o seu imaginário, porque em Fortaleza o que menos falta é um espaço em que as relações se tecem com os fios do mais puro linho, e com o sopro dos ventos que a envolvem recitando a sua sinfonia.

            Amar uma cidade é se perder pelas suas ruas, é abraçar sua dimensão urbanística, é sentir a pulsação e a dinâmica das suas artérias, é sonhar com a sua humanização, projetando-se na sua expansão virtual e no seu futuro; é sorver as resinas e os sais, a cal e o cimento, os suores e as pedras que se alojaram na sua construção.

             Fortaleza, a capital dos ventos, a cidade-luz que viu a saga da libertação em primeiro lugar no Brasil, é por igual “a loira desposada do sol”, que o gênio artístico de Paula Ney transformou em símbolo de intenso amor e de paixão, vendo as suas “ruas alinhadas como os versos de um soneto”, porque a escansão poemática da cidade, em primeiro lugar, faz-se a partir do “Rosto Hermoso” de Vicente Pinzon, o espanhol que descobriu o Brasil em Fortaleza, antes da aventura de Cabral.

            Porque do Mucuripe, senhoras e senhores, partem todos os sinos da cidade, e todos os poemas tecidos de sol e maresia e de letras de sal e de neon, que se gravam no céu de Fortaleza e no dorso das suas jangadas trepidantes, que navegam por entre ventos plurais que nos vestem o corpo e o espírito, e que nos fazem livres para a grande festa do desejo.

            É um prazer imenso falar de Fortaleza, essa grande civilização do semiárido, uma cidade que aponta para o futuro com a sua indiscutível vocação internacional, e que, agora, mais do que nunca, exige do seu aparelho institucional e político e dos seus dirigentes virtuais uma compreensão plural e humana dos seus problemas estruturais e dos seus espaços de convivência e de lazer.

             Amo Fortaleza e, por isso mesmo, nela eu me perco e me encontro em peregrinações sucessivas, flanando pelas suas ruas e pelas suas noites, mormente pelas suas praias, por onde viajei e viajo ouvindo o marulho e o balanço das ondas, que se agitam entre a foz do Rio Ceará e a do Cocó, emitindo os sinais e os signos de uma cidade em que a água e o sal são, talvez, os seus elementos antropológicos distintivos.

            E quando me refiro a Fortaleza, vivos estão na imaginação os seus bairros elegantes e a sua maltratada periferia, por onde a sua população se derrama, comprimida em favelas não urbanizadas e em conjuntos habitacionais maltrapilhos. Esse lagamar periférico contrasta em muito com a imponência da cidade dos ricos, recortada por avenidas bem iluminadas e praças de pedras portuguesas.

            É impossível sentir a sedução de viver em Fortaleza sem esquadrinhar, na alma, a sua geografia e a sua paisagem fascinante, porque me apraz, de primeiro, lembrar o glamour sentimental da Piedade, a atmosfera cultural do Benfica, a elegância da Praça do Ferreira, o charme incomparável da Praia de Iracema, o polo gastronômico da Varjota, a maresia que navega solta na Praia do Futuro, e as vozes tingidas de sol e de libido que se agitam em toda a extensão da Beira-Mar, points que constituem um retrato quase fiel de Fortaleza e da paixão dos que sabem sentir os seus mistérios.

             O desafio de amar Fortaleza é o de sentir o aceleramento do seu descompasso ambiental e da sua mal resolvida política de transportes públicos; é o de pensar o seu zoneamento e a sua ocupação urbana, feitos por instrumentos normativos que, muitas vezes, não se conciliam com a Lei e a Constituição.

             Mas não me cabe aqui dissertar sobre a Fortaleza que é, ainda, sobre a Fortaleza que será, pois o ritual pede-me tão-somente que eu agradeça o título de cidadão que, nesta Casa, acabei de conquistar.

             E o titulo que acabei de conquistar é o tributo com o qual se reconhece a dignidade de fazer literatura e de fazer a profissão de fé na alquimia da palavra ritmada e no poder sagrado da palavra que reparte o sonho com aqueles que perderam o direito de sonhar.

            O título que recebo, nesta noite de glamour e festa, não cabe nos recessos do meu contentamento. Pulveriza-se, antes, pelos espaços urbanos da cidade, desliza pelas suas casas de pasto e pelos seus polos de prazer e convivência, por onde espicho os meus olhos de ver e de sentir, porquanto sei de Fortaleza as suas avenidas, as suas estações e o seu jeito de deitar, porquanto me embalo em suas redes como se o seu corpo fosse os meus lençóis.

             Sei que existem várias Fortalezas a quem me compete agradecer: a Fortaleza que já se fez um traço memorável da política; a Fortaleza que chora e que reclama a dilapidação do seu patrimônio cultural; a Fortaleza que dormita embriagada pela ressaca da Praia de Iracema; a Fortaleza que lamenta a ausência de Augusto Pontes e de Cláudio Pereira, mas que se reconstrói pela irreverência do Clube do Bode e pelos noturnos de embriaguez e de poesia que afaguei com a emoção e o afeto, ouvindo as repúblicas utópicas que ajudei a levantar no Estoril e na Academia do Sonho, na Sociedade dos Amigos do Sábado e nos nichos de poder da Esquerda Democrática, na Confraria dos Puros e na Sociedade dos Poetas Vivos.

              Sim, porque não podemos mensurar em Fortaleza espaços que eu não tenha palmilhado, ruas que eu não tenha percorrido, vinhos e sabores que eu não tenha degustado, línguas ou idiomas da sua arquitetura que eu não tenha decifrado.

            Assim, agradeço o que fez Paulo Facó pela poesia, nomeando a mim como o representante dos poetas que esta Câmara de Vereadores achou por bem pautar e distinguir, porque aqui, de primeiro, premia-se o escritor; porque aqui, depois, valoriza-se o cidadão; e porque aqui, senhoras e senhores, o espaço público da cidade se coloca também em discussão.

          O meu jeito sincero de agradecer faz-se em extensão a todos os Vereadores desta Casa, e aos cuidados com que Sérgio Novaes tomou em suas mãos a grande liturgia desta noite, fazendo-a muito mais festiva e elegante.

           Mas os meus olhos de ver e de sentir esta cidade são os olhos que ouvem com desvelo os sinos inquietos do meu coração, pois é com a alma dos que amam a liberdade e as formas de viver em profusão que aqui compareço para dizer, de público e de tribuna, que me sinto nesta noite totalmente feliz.

           Feliz porque aqui me encontro como cidadão honorário da cidade que me acolheu e que me ensinou a arte de viver em comunhão, a arte de viver a minha liberdade política e a cidadania cultural que nunca deixei de praticar, a arte de intervir nas assembleias e de aprender os sentidos e valores da democracia, e os desafios de sustentar em público as minhas convicções e as minhas discordâncias.

            E, assim sendo, declaro de público que honrarei com palavras e estrelas a dignidade com que fui distinguido, o título com que fui agraciado e que ficará na alma, gravado com o fogo do incenso e com os fios da cidadania, que é porta de entrada na política e de realização dos grandes anseios coletivos. (Fortaleza, 13.05.2010).

Nenhum comentário:

Postar um comentário