Em dois poemas extraídos do meu livro Liturgia do Caos (Brasília, Editora Códice, 1996), intitulados: “Crônica” e “Mudanças”, está exposta uma parcela do amor que dedico a Fortaleza; mas em parte eles sintetizam os fulgores da minha consciência política, pois não saberia viver numa cidade sem que pudesse interagir com a plenitude das suas tentações e com os seus desafios de ordem política e social.
A mais bela cidade do mundo, Lavras
da Mangabeira, situa-se na margem esquerda do Rio Salgado, no centro sul do
Ceará. Pertenço a todos os traços e sinais que constituem a sua geografia e a
sua memória ancestral e mitológica, mas é certo que Fortaleza passou a ser
também a minha casa.
Fortaleza – repito – e o seu
potencial lírico e o amoroso incrustaram-se no meu coração de poeta e na minha
alma de cidadão e militante político como se fossem uma carta de navegação e uma
tatuagem.
E, se falo da cidade, que agora me
acolhe, oficialmente, como cidadão, é para rememorar, em primeiro lugar, a sua
geografia estética e o seu imaginário, porque em Fortaleza o que menos falta é
um espaço em que as relações se tecem com os fios do mais puro linho, e com o
sopro dos ventos que a envolvem recitando a sua sinfonia.
Amar uma cidade é se perder pelas
suas ruas, é abraçar sua dimensão urbanística, é sentir a pulsação e a dinâmica
das suas artérias, é sonhar com a sua humanização, projetando-se na sua
expansão virtual e no seu futuro; é sorver as resinas e os sais, a cal e o
cimento, os suores e as pedras que se alojaram na sua construção.
Fortaleza, a capital dos ventos, a
cidade-luz que viu a saga da libertação em primeiro lugar no Brasil, é por
igual “a loira desposada do sol”, que o gênio artístico de Paula Ney
transformou em símbolo de intenso amor e de paixão, vendo as suas “ruas
alinhadas como os versos de um soneto”, porque a escansão poemática da cidade,
em primeiro lugar, faz-se a partir do “Rosto Hermoso” de Vicente Pinzon, o
espanhol que descobriu o Brasil em Fortaleza, antes da aventura de Cabral.
Porque do Mucuripe, senhoras e
senhores, partem todos os sinos da cidade, e todos os poemas tecidos de sol e
maresia e de letras de sal e de neon, que se gravam no céu de Fortaleza e no
dorso das suas jangadas trepidantes, que navegam por entre ventos plurais que
nos vestem o corpo e o espírito, e que nos fazem livres para a grande festa do
desejo.
É um prazer imenso falar de
Fortaleza, essa grande civilização do semiárido, uma cidade que aponta para o
futuro com a sua indiscutível vocação internacional, e que, agora, mais do que
nunca, exige do seu aparelho institucional e político e dos seus dirigentes
virtuais uma compreensão plural e humana dos seus problemas estruturais e dos
seus espaços de convivência e de lazer.
Amo Fortaleza e, por isso mesmo,
nela eu me perco e me encontro em peregrinações sucessivas, flanando pelas suas
ruas e pelas suas noites, mormente pelas suas praias, por onde viajei e viajo
ouvindo o marulho e o balanço das ondas, que se agitam entre a foz do Rio Ceará
e a do Cocó, emitindo os sinais e os signos de uma cidade em que a água e o sal
são, talvez, os seus elementos antropológicos distintivos.
E quando me refiro a Fortaleza,
vivos estão na imaginação os seus bairros elegantes e a sua maltratada
periferia, por onde a sua população se derrama, comprimida em favelas não
urbanizadas e em conjuntos habitacionais maltrapilhos. Esse lagamar periférico
contrasta em muito com a imponência da cidade dos ricos, recortada por avenidas
bem iluminadas e praças de pedras portuguesas.
É impossível sentir a sedução de
viver em Fortaleza sem esquadrinhar, na alma, a sua geografia e a sua paisagem
fascinante, porque me apraz, de primeiro, lembrar o glamour sentimental da Piedade, a atmosfera cultural do Benfica, a
elegância da Praça do Ferreira, o charme incomparável da Praia de Iracema, o
polo gastronômico da Varjota, a maresia que navega solta na Praia do Futuro, e
as vozes tingidas de sol e de libido que se agitam em toda a extensão da
Beira-Mar, points que constituem um
retrato quase fiel de Fortaleza e da paixão dos que sabem sentir os seus
mistérios.
O desafio de amar Fortaleza é o de
sentir o aceleramento do seu descompasso ambiental e da sua mal resolvida
política de transportes públicos; é o de pensar o seu zoneamento e a sua
ocupação urbana, feitos por instrumentos normativos que, muitas vezes, não se
conciliam com a Lei e a Constituição.
Mas não me cabe aqui dissertar
sobre a Fortaleza que é, ainda, sobre a Fortaleza que será, pois o ritual
pede-me tão-somente que eu agradeça o título de cidadão que, nesta Casa, acabei
de conquistar.
E o titulo que acabei de
conquistar é o tributo com o qual se reconhece a dignidade de fazer literatura
e de fazer a profissão de fé na alquimia da palavra ritmada e no poder sagrado
da palavra que reparte o sonho com aqueles que perderam o direito de sonhar.
O título que recebo, nesta noite de glamour e festa, não cabe nos recessos
do meu contentamento. Pulveriza-se, antes, pelos espaços urbanos da cidade,
desliza pelas suas casas de pasto e pelos seus polos de prazer e convivência,
por onde espicho os meus olhos de ver e de sentir, porquanto sei de Fortaleza
as suas avenidas, as suas estações e o seu jeito de deitar, porquanto me embalo
em suas redes como se o seu corpo fosse os meus lençóis.
Sei que existem várias
Fortalezas a quem me compete agradecer: a Fortaleza que já se fez um traço
memorável da política; a Fortaleza que chora e que reclama a dilapidação do seu
patrimônio cultural; a Fortaleza que dormita embriagada pela ressaca da Praia
de Iracema; a Fortaleza que lamenta a ausência de Augusto Pontes e de Cláudio
Pereira, mas que se reconstrói pela irreverência do Clube do Bode e pelos
noturnos de embriaguez e de poesia que afaguei com a emoção e o afeto, ouvindo
as repúblicas utópicas que ajudei a levantar no Estoril e na Academia do Sonho,
na Sociedade dos Amigos do Sábado e nos nichos de poder da Esquerda
Democrática, na Confraria dos Puros e na Sociedade dos Poetas Vivos.
Sim, porque não podemos mensurar
em Fortaleza espaços que eu não tenha palmilhado, ruas que eu não tenha
percorrido, vinhos e sabores que eu não tenha degustado, línguas ou idiomas da
sua arquitetura que eu não tenha decifrado.
Assim, agradeço o que fez Paulo
Facó pela poesia, nomeando a mim como o representante dos poetas que esta
Câmara de Vereadores achou por bem pautar e distinguir, porque aqui, de
primeiro, premia-se o escritor; porque aqui, depois, valoriza-se o cidadão; e
porque aqui, senhoras e senhores, o espaço público da cidade se coloca também
em discussão.
O meu jeito sincero de agradecer
faz-se em extensão a todos os Vereadores desta Casa, e aos cuidados com que
Sérgio Novaes tomou em suas mãos a grande liturgia desta noite, fazendo-a muito
mais festiva e elegante.
Mas os meus olhos de ver e de sentir
esta cidade são os olhos que ouvem com desvelo os sinos inquietos do meu
coração, pois é com a alma dos que amam a liberdade e as formas de viver em
profusão que aqui compareço para dizer, de público e de tribuna, que me sinto
nesta noite totalmente feliz.
Feliz porque aqui me encontro como
cidadão honorário da cidade que me acolheu e que me ensinou a arte de viver em
comunhão, a arte de viver a minha liberdade política e a cidadania cultural que
nunca deixei de praticar, a arte de intervir nas assembleias e de aprender os
sentidos e valores da democracia, e os desafios de sustentar em público as
minhas convicções e as minhas discordâncias.
E, assim sendo, declaro de público
que honrarei com palavras e estrelas a dignidade com que fui distinguido, o
título com que fui agraciado e que ficará na alma, gravado com o fogo do
incenso e com os fios da cidadania, que é porta de entrada na política e de
realização dos grandes anseios coletivos.
(Fortaleza, 13.05.2010).
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