quinta-feira, 17 de abril de 2014

Ciência, Tecnologia e Contrastes Regionais

                Dimas Macedo 

      Concebido a partir de uma dissertação de mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia na UNB, o livro de Fernando Barros – Confrontos e Contrastes Regionais da Ciência e Tecnologia no Brasil (Brasília: Paralelo 15/Editora Universidade de Brasília, 1999) – toca numa dessas feridas brasileiras que, de moda na década de 1970, passou a ser tema pouco lembrado como causa do atraso do nosso País, em relação às nações desenvolvidas.

     O que o livro de Fernando Barros questiona são as desigualdades regionais pertinentes ao nosso desenvolvimento científico e tecnológico, analisando-as fora da vala comum na qual o tema é questionado, sempre de forma superficial ou sem maiores profundidades.

    Segundo Fernanda Sobral, doutora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e apresentadora do volume, “trata-se de uma análise que não recai em raciocínios simplistas como o de demonstrar mais uma vez que as desigualdades constituem um reflexo da lógica capitalista”.

     Partindo da discussão acerca do caráter polissêmico do conceito de região, o autor traça um esboço das diferenças regionais da nossa base técnico-científica, denunciando a sua excessiva concentração no Sul e Sudeste do País. A constatação e essa denúncia, que soam fácil aos nossos ouvidos, somente nas últimas décadas vem despertando a preocupação dos nossos gestores.

     Infelizmente, ainda somos testemunhas do descaso político brasileiro para com o incremento das atividades científicas e tecnológicas em Estados estranhos às regiões Sul e Sudeste.

     Nessa sua instigante pesquisa, Fernando Barros opõe-se a essa visão perfunctória, eivada de preconceitos seculares e, principalmente, de alta dose de egocentrismo, que parte do falso pressuposto de que devemos deixar a massa do bolo crescer, para só depois dividi-lo.

     Além de trazer tabelas explicativas com dados que ratificam a existência do problema, a obra leva o leitor a questionamentos que não são inteiramente resolvidos, nem facilmente solucionáveis, tais como: não seria o planejamento do desenvolvimento científico e tecnológico, em nível local, mais adequado ao atendimento das necessidades sociais e econômicas regionais?

    Teria o planejamento mais condições de incentivar a participação do setor produtivo? E a articulação do governo federal com os estados-membros, não seria essencial para conter as desigualdades regionais, no plano do desenvolvimento tecnológico, e não seria, também, um incentivo à produção de conhecimento científico?

    Por último, o autor confronta o caso brasileiro com o tratamento dado à questão regional pela União Europeia e pela França, que conseguiu transformar-se em modelo de Estado descentralizado, no qual a instância regional desempenha papel estratégico para a organização e o desenvolvimento harmônico de todo o seu território, por meio de 21 regiões, com conselhos eleitos, com poder de decisão e de alocação de recursos financeiros próprios, concorrendo todos para a unidade  e solidariedade nacionais.

domingo, 13 de abril de 2014

Fortaleza

                                               Dimas Macedo


                                          
                                       

Fortaleza de noite:

eis todo um argumento

para viver a vida

plena de sentimento.

 

Deslizo pelas ruas

sorvendo antiga brisa.

No rio do asfalto

a noite se eterniza.

 

Fortaleza tem corpo

e atração fatal

que sangra nossos olhos

com lâmina de punhal.

 

Sou todo fortaleza,

penumbra e nostalgia.

Existo enquanto sonho

sua geografia.

 

Em noites de insônia

Fortaleza é assim:

é casa do espírito,

é princípio e é fim.

         
                                                         (Poema extraído do livro – Liturgia

                                                         do Caos. Brasília: Editora Códice, 1996)

Vozes de Fortaleza, Vozes da Cidadania

              Dimas Macedo

 
             Em dois poemas extraídos do meu livro Liturgia do Caos (Brasília, Editora Códice, 1996), intitulados: “Crônica” e “Mudanças”, está exposta uma parcela do amor que dedico a Fortaleza; mas em parte eles sintetizam os fulgores da minha consciência política, pois não saberia viver numa cidade sem que pudesse interagir com a plenitude das suas tentações e com os seus desafios de ordem política e social.

            A mais bela cidade do mundo, Lavras da Mangabeira, situa-se na margem esquerda do Rio Salgado, no centro sul do Ceará. Pertenço a todos os traços e sinais que constituem a sua geografia e a sua memória ancestral e mitológica, mas é certo que Fortaleza passou a ser também a minha casa.

           Fortaleza – repito – e o seu potencial lírico e o amoroso incrustaram-se no meu coração de poeta e na minha alma de cidadão e militante político como se fossem uma carta de navegação e uma tatuagem.

            E, se falo da cidade, que agora me acolhe, oficialmente, como cidadão, é para rememorar, em primeiro lugar, a sua geografia estética e o seu imaginário, porque em Fortaleza o que menos falta é um espaço em que as relações se tecem com os fios do mais puro linho, e com o sopro dos ventos que a envolvem recitando a sua sinfonia.

            Amar uma cidade é se perder pelas suas ruas, é abraçar sua dimensão urbanística, é sentir a pulsação e a dinâmica das suas artérias, é sonhar com a sua humanização, projetando-se na sua expansão virtual e no seu futuro; é sorver as resinas e os sais, a cal e o cimento, os suores e as pedras que se alojaram na sua construção.

             Fortaleza, a capital dos ventos, a cidade-luz que viu a saga da libertação em primeiro lugar no Brasil, é por igual “a loira desposada do sol”, que o gênio artístico de Paula Ney transformou em símbolo de intenso amor e de paixão, vendo as suas “ruas alinhadas como os versos de um soneto”, porque a escansão poemática da cidade, em primeiro lugar, faz-se a partir do “Rosto Hermoso” de Vicente Pinzon, o espanhol que descobriu o Brasil em Fortaleza, antes da aventura de Cabral.

            Porque do Mucuripe, senhoras e senhores, partem todos os sinos da cidade, e todos os poemas tecidos de sol e maresia e de letras de sal e de neon, que se gravam no céu de Fortaleza e no dorso das suas jangadas trepidantes, que navegam por entre ventos plurais que nos vestem o corpo e o espírito, e que nos fazem livres para a grande festa do desejo.

            É um prazer imenso falar de Fortaleza, essa grande civilização do semiárido, uma cidade que aponta para o futuro com a sua indiscutível vocação internacional, e que, agora, mais do que nunca, exige do seu aparelho institucional e político e dos seus dirigentes virtuais uma compreensão plural e humana dos seus problemas estruturais e dos seus espaços de convivência e de lazer.

             Amo Fortaleza e, por isso mesmo, nela eu me perco e me encontro em peregrinações sucessivas, flanando pelas suas ruas e pelas suas noites, mormente pelas suas praias, por onde viajei e viajo ouvindo o marulho e o balanço das ondas, que se agitam entre a foz do Rio Ceará e a do Cocó, emitindo os sinais e os signos de uma cidade em que a água e o sal são, talvez, os seus elementos antropológicos distintivos.

            E quando me refiro a Fortaleza, vivos estão na imaginação os seus bairros elegantes e a sua maltratada periferia, por onde a sua população se derrama, comprimida em favelas não urbanizadas e em conjuntos habitacionais maltrapilhos. Esse lagamar periférico contrasta em muito com a imponência da cidade dos ricos, recortada por avenidas bem iluminadas e praças de pedras portuguesas.

            É impossível sentir a sedução de viver em Fortaleza sem esquadrinhar, na alma, a sua geografia e a sua paisagem fascinante, porque me apraz, de primeiro, lembrar o glamour sentimental da Piedade, a atmosfera cultural do Benfica, a elegância da Praça do Ferreira, o charme incomparável da Praia de Iracema, o polo gastronômico da Varjota, a maresia que navega solta na Praia do Futuro, e as vozes tingidas de sol e de libido que se agitam em toda a extensão da Beira-Mar, points que constituem um retrato quase fiel de Fortaleza e da paixão dos que sabem sentir os seus mistérios.

             O desafio de amar Fortaleza é o de sentir o aceleramento do seu descompasso ambiental e da sua mal resolvida política de transportes públicos; é o de pensar o seu zoneamento e a sua ocupação urbana, feitos por instrumentos normativos que, muitas vezes, não se conciliam com a Lei e a Constituição.

             Mas não me cabe aqui dissertar sobre a Fortaleza que é, ainda, sobre a Fortaleza que será, pois o ritual pede-me tão-somente que eu agradeça o título de cidadão que, nesta Casa, acabei de conquistar.

             E o titulo que acabei de conquistar é o tributo com o qual se reconhece a dignidade de fazer literatura e de fazer a profissão de fé na alquimia da palavra ritmada e no poder sagrado da palavra que reparte o sonho com aqueles que perderam o direito de sonhar.

            O título que recebo, nesta noite de glamour e festa, não cabe nos recessos do meu contentamento. Pulveriza-se, antes, pelos espaços urbanos da cidade, desliza pelas suas casas de pasto e pelos seus polos de prazer e convivência, por onde espicho os meus olhos de ver e de sentir, porquanto sei de Fortaleza as suas avenidas, as suas estações e o seu jeito de deitar, porquanto me embalo em suas redes como se o seu corpo fosse os meus lençóis.

             Sei que existem várias Fortalezas a quem me compete agradecer: a Fortaleza que já se fez um traço memorável da política; a Fortaleza que chora e que reclama a dilapidação do seu patrimônio cultural; a Fortaleza que dormita embriagada pela ressaca da Praia de Iracema; a Fortaleza que lamenta a ausência de Augusto Pontes e de Cláudio Pereira, mas que se reconstrói pela irreverência do Clube do Bode e pelos noturnos de embriaguez e de poesia que afaguei com a emoção e o afeto, ouvindo as repúblicas utópicas que ajudei a levantar no Estoril e na Academia do Sonho, na Sociedade dos Amigos do Sábado e nos nichos de poder da Esquerda Democrática, na Confraria dos Puros e na Sociedade dos Poetas Vivos.

              Sim, porque não podemos mensurar em Fortaleza espaços que eu não tenha palmilhado, ruas que eu não tenha percorrido, vinhos e sabores que eu não tenha degustado, línguas ou idiomas da sua arquitetura que eu não tenha decifrado.

            Assim, agradeço o que fez Paulo Facó pela poesia, nomeando a mim como o representante dos poetas que esta Câmara de Vereadores achou por bem pautar e distinguir, porque aqui, de primeiro, premia-se o escritor; porque aqui, depois, valoriza-se o cidadão; e porque aqui, senhoras e senhores, o espaço público da cidade se coloca também em discussão.

          O meu jeito sincero de agradecer faz-se em extensão a todos os Vereadores desta Casa, e aos cuidados com que Sérgio Novaes tomou em suas mãos a grande liturgia desta noite, fazendo-a muito mais festiva e elegante.

           Mas os meus olhos de ver e de sentir esta cidade são os olhos que ouvem com desvelo os sinos inquietos do meu coração, pois é com a alma dos que amam a liberdade e as formas de viver em profusão que aqui compareço para dizer, de público e de tribuna, que me sinto nesta noite totalmente feliz.

           Feliz porque aqui me encontro como cidadão honorário da cidade que me acolheu e que me ensinou a arte de viver em comunhão, a arte de viver a minha liberdade política e a cidadania cultural que nunca deixei de praticar, a arte de intervir nas assembleias e de aprender os sentidos e valores da democracia, e os desafios de sustentar em público as minhas convicções e as minhas discordâncias.

            E, assim sendo, declaro de público que honrarei com palavras e estrelas a dignidade com que fui distinguido, o título com que fui agraciado e que ficará na alma, gravado com o fogo do incenso e com os fios da cidadania, que é porta de entrada na política e de realização dos grandes anseios coletivos. (Fortaleza, 13.05.2010).

terça-feira, 8 de abril de 2014

O Pensamento de Arnaldo Vasconcelos

                  Dimas Macedo

 
              Arnaldo Vasconcelos integra a linhagem dos grandes filósofos do Direito. No Brasil, filia-se à escola do normativismo, sendo, nesse campo, um dos seus representantes. Arnaldo compreende o Direito enquanto processo dialético, revestido de humanismo de feição democrática, onde o fato e o valor aparecem como integrantes do tecido da norma.

             O positivismo lógico do Direito, isto é, o Direito como conjunto hierárquico de normas, constitui uma ordem jurídica nacional ou um sistema nacional de Direito, porém o Direito, enquanto fenômeno social e humano, não prescinde desse aparato normativo.  O Direito, ao contrário, se sustenta em outra modalidade de lógica, na qual a norma é resultante da implicação-polaridade existente entre o valor e o fato.

              A problemática da destinação e da aplicação do Direito seria a sua pedra de toque, e o Direito seria norma de conduta e afirmação da liberdade resultante do imperativo categórico.

              No seu enunciado doutrinário, o Direito não comporta atividade sancionatória, não se reduz à sentença, nem seria atividade jurisdicional por excelência, ou produto do sistema jurídico do Estado, como querem os que defendem a Teoria Pura do Direito.

              A imperatividade e a coação não pertencem ao mundo do Direito. A equação jurídica seria produto de um juízo disjuntivo, de caráter atributivo ou autorizante, e não uma força social capaz de coagir ou de executar previsões de cunho normativo.

             A partir dessa concepção, e centrando o seu ponto de vista no jusnaturalismo e no jusnormativismo, Arnaldo Vasconcelos desenvolve a sua teoria da norma jurídica, tomando o Humanismo e a Democracia como pontos de inflexão da sua pesquisa filosófica.

              A sua compreensão da deontologia jurídica, leva-o a aceitar a natureza do Direito como resultante do trinômio – norma, fato e valor. No entanto, é na tripartição axiológica do Direito que Arnaldo vai encontrar a originalidade e os elementos de maior destaque do seu pensamento.

              O seu discurso de viés escolástico e jusnaturalista, se expressa de forma bastante clara, na sua Teoria da Norma Jurídica (Rio, Editora Forense, 1978), livro que constitui uma espécie de suma das suas reflexões no campo do Direito.

              Nesse livro, Arnaldo Vasconcelos estuda a natureza da norma jurídica e os fundamentos da sua legitimidade, da sua eficácia e da sua vigência, lamentando o autor que o espírito filosófico e científico da norma jurídica ainda não tenha sido considerado, com a máxima precisão, pelos estudiosos do Direito.

              Na concepção de Arnaldo Vasconcelos, teria ocorrido um crescimento no estudo da norma quando ela passou a ser vista, não a partir da sua imperatividade, mas como afirmação da sua natureza indicativa, expressando-se o autor da Teoria da Norma Jurídica da seguinte maneira: “Na relação jurídica formada pela norma, e em cuja exclusiva esfera o Direito se manifesta, direitos e deveres se pressupõem e se alternam. A relação é de coordenação e não de subordinação”.

              Assim sendo, o Direito seria expressão da conduta humana “em sua interferência intersubjetiva”, e a norma jurídica seria o modo de pensar essa conduta compartida e multilateral, permeada de fatos e valores.

              Na sua Teoria da Norma Jurídica, Arnaldo Vasconcelos não nega as normas de convivência determinadas pelo ordenamento jurídico ou pelo direito legislado; nem atenua a importância do positivismo jurídico que remarca a existência do Direito na modernidade. Pelo contrário, afirma que “a melhor doutrina sobre a natureza da norma jurídica tem suas nascentes na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen”.

               Leitor das fontes originais da cultura clássica e esteta por exigência das suas formas de pesquisa, Arnaldo Vasconcelos é autor de uma obra complexa e recortada de conhecimentos eruditos.

               Não lhe apraz o conhecimento do Direito legislado ou codificado, do direito-força ou do direito expressão da vontade dos que governam a máquina do Estado. O que lhe interessa, enquanto teórico do Direito, é a norma de conduta emergente do Direito Natural e a sua aplicação enquanto conduta humana intersubjetiva.

               A Teoria da Norma Jurídica, de Arnaldo Vasconcelos, constitui obra pioneira, e até hoje única no Brasil, no campo da sua especialidade. A clareza e a concisão da sua escritura e os argumentos com que Arnaldo construiu a sua exposição, fazem desse livro um clássico do nosso pensamento jurídico.

                Todas as formas de abordagem da norma jurídica são enfrentadas por Arnaldo Vasconcelos na elaboração desse livro. Nele já se contém, ainda que de modo implícito, os lineamentos da tridimensionalidade axiológica do Direito, teoria por ele formulada em – Direito, Humanismo e Democracia (São Paulo, Editora Malheiros, 1998).

                  Nesse último livro, assim como no seu ensaio – Direito e Força: Uma Visão Pluridimensional do Direito (São Paulo, Editora Dialética, 2001) – e na sua tese de doutoramento – Teoria Pura do Direito: Repasse Crítico dos Seus Principais Fundamentos (Rio, Editora Forense, 2003) –, Arnaldo Vasconcelos ombreia-se a filósofos do Direito do porte de Miguel Reale, Lourival Vilanova, Machado Neto e Tércio Sampaio Ferraz Júnior, ultrapassando diversos teóricos do Direito amplamente cultuados por gerações recentes.

O Caso Cesare Battisti

           Dimas Macedo

                                          
                                                                            Tela de Vando Figueiredo
 

               Condenado pela Justiça da Itália e da França, e pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, pela prática de crimes contra a vida; fugitivo da vida carcerária da sua nação de origem; e preso pela Polícia Federal do Brasil, pela falsificação de documento, Cesare Battisti não é um ideólogo do bem, como querem os que o têm na condição de mito da esquerda.

             É inadmissível que tenha encontrado tanta proteção, nos altos escalões da República, e que tenha sido julgado qual um líder, capaz de arrebatar seguidores ou admiradores.

            Se no Brasil não existissem Leis ou Constituição, talvez fosse correto dizer que os atos discricionários do Presidente Lula e do seu Ministro da Justiça, a favor de Cesare Battisti, constituem traços da generosidade ou da psicologia dos que exercem o poder político do Estado.

             Na trajetória de Battisti, consta a prática de crime contra o Ministério da Justiça, pois entrando no Brasil como fugitivo, falsificou o seu próprio Passaporte. E quando foi preso pelo cometimento desse crime, não existia (e ainda não existe) qualquer forma de proteção legal, capaz de transformá-lo em refugiado, sendo este, também, o entendimento do Supremo Tribunal Federal.

             Portanto, se não é refugiado político; se o Brasil não lhe concedeu asilo; se foi preso pela Justiça brasileira por falsificação de documento; se está condenado pela Justiça da Itália, pela prática de crime de sangue; e se, ainda assim, recebeu Battisti a garantia de que não será extraditado, é porque não existe mais lógica na instância oficial do Estado brasileiro.

              Luiz Inácio Lula da Silva, indiscutivelmente, no caso específico de Battisti, ratificou o fato de que o Brasil não é um País sério, porque se justo fosse o governo brasileiro, não seríamos para a ordem jurídica planetária o paraíso da impunidade e a nação que sempre acolhe com carinho os grandes fugitivos da Justiça.

             Sei que os arautos de Battisti e da hegemonia política em expansão no Brasil, desde 2002, acreditam que a defesa do status quo significa também a absolvição dos crimes da máquina do Estado. A minha consciência de jurista, contudo, está acima dessa contingência.

              O Caso Cesare Battisti (2ª ed.: Fortaleza, Editora LCR, 2012), de Walter Filho, não é um libelo de acusação ou de condenação contra Cesare Battisti. E não é, por igual, um documento de confronto com os donos do poder político de plantão. É antes uma radiografia e uma análise muito cuidadosa dos processos nos quais Battisti foi condenado pela prática de crimes de homicídio.

             Não existe no livro um questionamento acerca da vida de Battisti, enquanto militante de facções situadas à margem do Estado, isto porque os crimes políticos por ele cometidos deverão ser olhados como se fossem razões de defesa ou de necessidade, não interferindo na análise dos seus crimes comuns.

              Sabemos que a anistia de um crime político, ou até mesmo o seu esquecimento, não garante a nossa imunidade diante da Justiça Criminal, nem nos dá um passaporte para delinquir ou para violar a Ética e o Direito em nome das nossas intenções.

             Walter Filho esteve em Milão em outubro de 2009, na fase inicial de suas pesquisas, examinando, in loco, os processos criminais contra Battisti, em tudo colocando Walter as suas lentes de Promotor de Justiça e de defensor do Estado Democrático.

              Não realizou nenhum trabalho leviano, e no seu livro não denunciou sequer as autoridades brasileiras que se envolveram com a proteção de Battisti, manchando de improbidade as suas trajetórias.

             Não vou explicar para o leitor a sequência lógica desse livro, que considero exemplar para os que lutam contra a violência e a impunidade; e faço isto na mesma proporção em que os defensores de Battisti nunca entraram no debate sobre a legitimidade dos seus atos, talvez com receio de ouvir os seus fantasmas, ou a falsificação de sua inconsciência.

                Infelizmente, assaltar os cofres do Estado, mentir e falsear a verdade tornaram-se, no Brasil, as armas do poder contra a consciência e as divisas da paixão contra a liberdade.

               Acrescento, por fim, que constitui uma honra fazer a defesa desse livro – O Caso Cesare Battisti –, em princípio, porque não posso negar a minha condição de jurista, comprometido com a liberdade e com o Estado de Direito.

              Assim como o autor, acredito na Constituição do Brasil, no combate do Direito contra a arrogância e a criminalidade, nas decisões do Supremo Tribunal Federal e na verdade (material e formal) da Justiça italiana.

             E ainda que seja doloroso saber que o estelionato, o abuso de poder e a improbidade são as moedas da vida partidária e do poder político no Brasil, é factível pensar que nem todos os que se acham no centro do Estado carregam um monstro na barriga, ou pensam que a lógica do Direito está a seu favor.

Reflexões Sobre o Poder Militar

                 Dimas Macedo

 

         A questão do poder militar na América Latina e, de uma maneira geral, nos países do Terceiro Mundo, se até hoje não justificou a sintomática razão de sua emergência, pelo menos serviu para testemunhar a ineficiência de suas propostas.

        Livros como A Ordem Política nas Sociedades em Mudança (Rio, Editora Forense-Universitária, 1975), de Samuel Phuntington, tentaram mas parece que não conseguiram interpretar a presença do soldado como consolidador de instituições.

        Posteriormente, Alain Rouquié, com O Estado Militar na América Latina (Berkeley, Universidade da Califórnia, 1987), procurou estudar o assunto através de novas abordagens, e com isso logrou melhores resultados. Alain não se preocupou propriamente com a transparência das Forças Armadas, mas com as condições que propiciam o avanço dos militares como elite ou núcleo do poder.

       Contudo, apesar de não haver oferecido maiores soluções para o problema, Samuel Phuntington, entre todos os estudiosos do assunto, foi quem melhor apreendeu a função pretoriana de que os militares sempre se acharam investidos.

        Num dos capítulos do seu livro acima referido, sem perder de vista a perspectiva pretoriana das forças armadas, Samuel Phuntington tentou interpretar algumas circunstâncias que gravitam em torno da ocupação do poder pelos militares, nos países em via de modernização.

       O Estado Pretoriano, para Phuntington, não é apenas aquele no qual se dá a intervenção dos militares na política. Para ele, o pretorianismo igualmente se difunde nas sociedades onde se processa uma politização geral das forças e instituições sociais, tais como o clero, a elite latifundiária ou a classe trabalhadora.

      O pretorianismo, das suas origens aos dias atuais, expandiu as suas manifestações através de diversas investidas. Foi inicialmente oligárquico, depois radical e, por último, evoluiu ou transitou para o chamado pretorianismo de massa.

       A sua presença, a história dos últimos dois ou três séculos, pode ser facilmente constatada na América Latina, que foi sempre cenário de marchas e contramarchas pretorianas, levadas a efeito, no século XIX, principalmente, para preencher a vacância do imperialismo, na oportunidade, afastado do Continente pelos processos de independência política e, no século XX, para consolidar os anseios de uma classe média emergente, ou para atender às exigências de alguns fenômenos populistas que aqui ousaram se instalar.

       Nos países em vias de modernização, o pretorianismo se instrumentaliza como força social emergente capaz de deter o enfraquecimento das instituições, enfraquecimento no qual esses países se acham mergulhados.

        O objetivo principal do pretorianismo seria resgatar o País da chamada “decadência política” e, com isso, aumentar o seu grau de politização; seria fortalecer as instituições políticas existentes ou criar novas instituições capazes de mudar o curso do processo político e social.

         Propõe-se sempre legítimo o pretorianismo, mesmo quando o grupo renovador não encarna o mínimo de representação, a exemplo de alguns segmentos militares comandados por oficiais menos graduados. A sua legitimidade confunde-se com as aspirações ideológicas de caráter antidemocrático, isto é, com os interesses dessas aspirações.

         Se se busca enxergar no pretorianismo uma instituição preocupada com problemas econômicos e sociais, está-se a laborar em lamentável engano. O que o que ele busca é a comprovação da sua estratégia ideológica e dos seus mecanismos de controle e dominação.

     Durante a década de 1980, alguns estudiosos da nossa formação buscaram projetar luzes acerca do pretorianismo no Brasil, mas o que revelaram aos leitores foi a constatação de uma vontade de potência e de intervenção por parte desses estamentos militares, numa argumentação que parece apontar, nas forças armadas brasileiras, um permanente desejo de controle da nossa transição, aspirando também que a sociedade, agora fortemente conscientizada, não se possa voltar contra o seu agressor.

    Procurando estudar a intervenção militar brasileira à luz de diversas tendências políticas, o que os nossos estudiosos geralmente nos tem revelado é que o poder militar pretoriano somente encontra a razão de sua ressurgência dentro de padrões comportamentais tomados de empréstimo à ciência política, e nesta hipótese, me parece, estaria incluído o caso do Brasil.

     Mas o Brasil, finalmente, amadureceu no exercício da vida democrática e na consolidação das suas instituições, de forma que o poder militar, no Brasil, está seguramente submetido à Constituição, e não à ideologia da tradição e ou propriedade, não me parecendo plausível que as suas intenções possam prosperar, por maior que seja o nosso conflito político.

      O Brasil, no momento, passa por ajustes econômicos, pertinentes à acumulação do capital e à expansão dos seus potenciais financeiros, numa política de mercado na qual a nossa forma primitiva de fazer política e de ampliar a máquina do Estado não se compadece com os avanços do nosso crescimento. E neste ponto o Brasil precisa de ajustes, e não de apelos saudosistas que nos levem de volta para a ditadura militar.