Dimas Macedo
Conhecido por levar uma vida solitária e isolada e por ser
considerado um dos fundadores do existencialismo, Soren Kierkegaard é uma das
grandes revelações culturais da humanidade.
Não é fácil, numa primeira leitura,
compreender o significado da sua obra filosófica. Pensador essencialmente
subjetivista, e teólogo, talvez, com pretensões a fundar uma Filosofia da
Religião, esse escritor dinamarquês continua provocando a argúcia de estudiosos
da Teologia.
Filho
de um próspero comerciante e de uma empregada doméstica, Kierkegaard nasceu na
Dinamarca, em 1813, recebendo, desde cedo, educação luterana rigorosa, tendo as
marcas da moral religiosa exercido influência profunda na sua formação.
Em
1830, ingressou no curso de Teologia e Filosofia da Universidade de Copenhague,
o qual foi interrompido com a morte de seu pai, em 1838. Mas o certo é que, em
1841, concluiu o curso universitário com uma tese sobre a filosofia de
Sócrates, intitulada – Sobre o Conceito de Ironia.
Para
a maioria dos seus biógrafos, a interrupção dos seus estudos acadêmicos, não
está propriamente ligada à morte do seu pai, mas à necessidade de experimentar
a vida desregrada, que foi encontrar nos cafés, teatros e na vida social
de Copenhague, e que elegeu como destino das suas inquietações.
Em
1837, conheceu Regine Olsen, com quem viveu uma estranha relação sentimental.
Logo após tê-la pedido em casamento, desistiu do enlace e mergulhou numa crise
de arrependimento. Com o pretenso objetivo de salvar a reputação de Regine, fez
com que parecesse à sociedade ter sido ela a romper o noivado. Fugiu, então,
para a Alemanha, onde passou uma longa temporada.
Na
Alemanha, foi aluno de Schelling e ali esboçou alguns dos seus textos mais
importantes.Volta a Copenhague em 1842, e, em 1843, publica A Alternativa,
Temor e Tremor e A Repetição. Em 1844, saem Migalhas
Filosóficas e O Conceito de Angústia. Um ano depois, dá à estampa As
Etapas no Caminho da Vida e, em 1846, o Post-Scriptum a Migalhas
Filosóficas.
Os paradoxos da existência religiosa, para esse filósofo, assumem o
caráter socrático do autoconhecimento e a reflexão acerca do indivíduo diante
da verdade cristã. Kierkegaard elabora seu pensamento tendo em vista o exame
concreto do homem religioso historicamente situado, o que o eleva à condição
fundador do existencialismo.
Desde
a década de 1850, Kierkegaard foi tomado por um surto de reformador da moral
teológica, passando a atacar a prática religiosa vigente na Dinamarca, onde o poder
estatal se sobrepunha ao poder religioso. Mas Soren, infelizmente, veio a
falecer em outubro de 1855.
As
inquietações e angústias que o acompanharam, estão expressas em seus textos,
incluindo a relação dolorosa que manteve com o Cristianismo – herança de um pai
extremamente religioso, que cultuava os rígidos princípios do Protestantismo,
que na Dinamarca de meados do século dezenove, foi transformado em
fundamentalismo religioso controlado pelo Estado.
A
posição de Kierkegaard leva alguns estudiosos a levantar dúvidas a respeito do
caráter filosófico de seu pensamento. Para esses, tratar-se-ia muito mais de um
pensador religioso do que de um filósofo.
Nele não encontramos as motivações tradicionais que serviram de objeto
para a Filosofia. Isso fica claro quando ele reage às filosofias de sua época –
em especial à de Hegel. Não se
trata de questionar as incorreções ou as inconsistências do sistema hegeliano.
Trata-se muito mais de rebelar-se contra a própria ideia de sistema e aquilo
que essa ideia representa.
Para
esse pensador, o homem que se reconhece finito enquanto parte da realização de
uma totalidade infinita, se compraz na finitude, porque a vê como uma etapa de
algo cujo sentido é infinito.
Mas
o homem que se coloca frente ao seu destino e à sua finitude, desnudado do
aparato lógico, não se vê diante de um sistema de ideias mas diante de fatos,
mais precisamente de um fato fundamental que nenhuma lógica pode explicar: a
Fé. Ela não é o sucedâneo daquilo que não podemos compreender
racionalmente; tampouco é um estádio provisório do que existe enquanto não se
completam e fortalecem as luzes da razão.
Não há, portanto, outro caminho para a Verdade a não ser o da
interioridade e do aprofundamento da nossa dimensão subjetiva. Isso porque a
individualidade autêntica supõe a vivência profunda da culpa: sem esse
sentimento, jamais nos situaremos, de forma verdadeira, diante da redenção e,
consequentemente, da mediação de Cristo.
A subjetividade de Kierkegaard não é tributária da atmosfera romântica que
envolvia sua época. Seu profundo significado a-histórico tem mais a ver com uma
concepção de existência que torna todos os homens contemporâneos de Cristo, do
que com as características do Romantismo então em voga no continente europeu.
A redenção, ainda quando observada como fato histórico, possui uma dimensão que
a transforma numa referência intemporal para se vivenciar a Fé. O cristão é
aquele que se sente continuamente na presença de Deus pela mediação do Cristo,
e a religião só tem sentido se for vivida como comunhão com o sofrimento da
cruz.
Por tudo isso é que esse filósofo critica o Cristianismo da sua época,
principalmente o Protestantismo dinamarquês, imiscuído, segundo ele, de
conceituação filosófica que esconde a brutalidade do fato religioso, minimiza a
distância entre Deus e o homem e sufoca o sentimento de angústia que acompanha
a Fé.
Essa
angústia, no entender de Kierkegaard, estaria ilustrada no episódio do
sacrifício de Abraão. Esse relato bíblico indica a solidão e o abandono do
indivíduo voltado unicamente para a vivência da fé. O que Deus pede a Abraão –
que ele sacrifique o único filho para demonstrar sua fé – é absurdo e desumano
segundo a ética dos homens.
Abraão não está na situação do herói trágico que deve escolher entre
valores subjetivos (individuais e familiares) e valores objetivos (a cidade, a
comunidade), como no caso da tragédia grega. Nada está em jogo, a não ser ele
mesmo e a sua fé. Deus não está testando a sabedoria de Abraão, da mesma forma
como os deuses testavam a sabedoria de Édipo.
Por tudo o que decorre da sua afirmação,
a Fé não pode ser elucidada pelos conceitos. Eles não dariam conta das tensões
e contradições que marcam a vida individual. Existir é existir diante de Deus,
e a impossibilidade de compreensão da infinitude divina, faz com que a
consciência vacile como se estivesse diante de um abismo.
A Fé reúne a reflexão e o êxtase, a procura infindável e a
visão instantânea da Verdade. O paradoxo de ser o pecado, ao mesmo tempo, a
condição de salvação, é algo bastante sintomático, já que foi por causa do
pecado original que Cristo veio ao mundo.
Qualquer
filosofia que não leve em conta essas tensões, que afinal são derivadas de
estar o finito e o infinito em presença um do outro, não constituirá fundamento
adequado da vida e da ação.
A Filosofia deve ser imanente à vida. A especulação desgarrada da
realidade concreta não orientará a ação, muito simplesmente porque as decisões
humanas não se ordenam por conceitos, mas por alternativas e saltos.
Revista da Academia Cearense de
Letras,
nº
76. Fortaleza, 2015
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