terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Soren Kierkegaard

Dimas Macedo 


          Conhecido por levar uma vida solitária e isolada e por ser considerado um dos fundadores do existencialismo, Soren Kierkegaard é uma das grandes revelações culturais da humanidade.

          Não é fácil, numa primeira leitura, compreender o significado da sua obra filosófica. Pensador essencialmente subjetivista, e teólogo, talvez, com pretensões a fundar uma Filosofia da Religião, esse escritor dinamarquês continua provocando a argúcia de estudiosos da Teologia.

         Filho de um próspero comerciante e de uma empregada doméstica, Kierkegaard nasceu na Dinamarca, em 1813, recebendo, desde cedo, educação luterana rigorosa, tendo as marcas da moral religiosa exercido influência profunda na sua formação.

          Em 1830, ingressou no curso de Teologia e Filosofia da Universidade de Copenhague, o qual foi interrompido com a morte de seu pai, em 1838. Mas o certo é que, em 1841, concluiu o curso universitário com uma tese sobre a filosofia de Sócrates, intitulada – Sobre o Conceito de Ironia.

          Para a maioria dos seus biógrafos, a interrupção dos seus estudos acadêmicos, não está propriamente ligada à morte do seu pai, mas à necessidade de experimentar a vida desregrada, que foi encontrar nos cafés, teatros e na vida social de Copenhague, e que elegeu como destino das suas inquietações.

          Em 1837, conheceu Regine Olsen, com quem viveu uma estranha relação sentimental. Logo após tê-la pedido em casamento, desistiu do enlace e mergulhou numa crise de arrependimento. Com o pretenso objetivo de salvar a reputação de Regine, fez com que parecesse à sociedade ter sido ela a romper o noivado. Fugiu, então, para a Alemanha, onde passou uma longa temporada.

          Na Alemanha, foi aluno de Schelling e ali esboçou alguns dos seus textos mais importantes.Volta a Copenhague em 1842, e, em 1843, publica A Alternativa, Temor e Tremor e A Repetição. Em 1844, saem Migalhas Filosóficas e O Conceito de Angústia. Um ano depois, dá à estampa As Etapas no Caminho da Vida e, em 1846, o Post-Scriptum a Migalhas Filosóficas.

          Os paradoxos da existência religiosa, para esse filósofo, assumem o caráter socrático do autoconhecimento e a reflexão acerca do indivíduo diante da verdade cristã. Kierkegaard elabora seu pensamento tendo em vista o exame concreto do homem religioso historicamente situado, o que o eleva à condição fundador do existencialismo.

           Desde a década de 1850, Kierkegaard foi tomado por um surto de reformador da moral teológica, passando a atacar a prática religiosa vigente na Dinamarca, onde o poder estatal se sobrepunha ao poder religioso. Mas Soren, infelizmente, veio a falecer em outubro de 1855.

           As inquietações e angústias que o acompanharam, estão expressas em seus textos, incluindo a relação dolorosa que manteve com o Cristianismo – herança de um pai extremamente religioso, que cultuava os rígidos princípios do Protestantismo, que na Dinamarca de meados do século dezenove, foi transformado em fundamentalismo religioso controlado pelo Estado.

           A posição de Kierkegaard leva alguns estudiosos a levantar dúvidas a respeito do caráter filosófico de seu pensamento. Para esses, tratar-se-ia muito mais de um pensador religioso do que de um filósofo.

           Nele não encontramos as motivações tradicionais que serviram de objeto para a Filosofia. Isso fica claro quando ele reage às filosofias de sua época – em especial à de Hegel. Não se trata de questionar as incorreções ou as inconsistências do sistema hegeliano. Trata-se muito mais de rebelar-se contra a própria ideia de sistema e aquilo que essa ideia representa.

           Para esse pensador, o homem que se reconhece finito enquanto parte da realização de uma totalidade infinita, se compraz na finitude, porque a vê como uma etapa de algo cujo sentido é infinito.

            Mas o homem que se coloca frente ao seu destino e à sua finitude, desnudado do aparato lógico, não se vê diante de um sistema de ideias mas diante de fatos, mais precisamente de um fato fundamental que nenhuma lógica pode explicar: a Fé. Ela não é o sucedâneo daquilo que não podemos compreender racionalmente; tampouco é um estádio provisório do que existe enquanto não se completam e fortalecem as luzes da razão.

           Não há, portanto, outro caminho para a Verdade a não ser o da interioridade e do aprofundamento da nossa dimensão subjetiva. Isso porque a individualidade autêntica supõe a vivência profunda da culpa: sem esse sentimento, jamais nos situaremos, de forma verdadeira, diante da redenção e, consequentemente, da mediação de Cristo.

          A subjetividade de Kierkegaard não é tributária da atmosfera romântica que envolvia sua época. Seu profundo significado a-histórico tem mais a ver com uma concepção de existência que torna todos os homens contemporâneos de Cristo, do que com as características do Romantismo então em voga no continente europeu.

         A redenção, ainda quando observada como fato histórico, possui uma dimensão que a transforma numa referência intemporal para se vivenciar a Fé. O cristão é aquele que se sente continuamente na presença de Deus pela mediação do Cristo, e a religião só tem sentido se for vivida como comunhão com o sofrimento da cruz.

          Por tudo isso é que esse filósofo critica o Cristianismo da sua época, principalmente o Protestantismo dinamarquês, imiscuído, segundo ele, de conceituação filosófica que esconde a brutalidade do fato religioso, minimiza a distância entre Deus e o homem e sufoca o sentimento de angústia que acompanha a Fé.

          Essa angústia, no entender de Kierkegaard, estaria ilustrada no episódio do sacrifício de Abraão. Esse relato bíblico indica a solidão e o abandono do indivíduo voltado unicamente para a vivência da fé. O que Deus pede a Abraão – que ele sacrifique o único filho para demonstrar sua fé – é absurdo e desumano segundo a ética dos homens.

          Abraão não está na situação do herói trágico que deve escolher entre valores subjetivos (individuais e familiares) e valores objetivos (a cidade, a comunidade), como no caso da tragédia grega. Nada está em jogo, a não ser ele mesmo e a sua fé. Deus não está testando a sabedoria de Abraão, da mesma forma como os deuses testavam a sabedoria de Édipo.

            Por tudo o que decorre da sua afirmação, a Fé não pode ser elucidada pelos conceitos. Eles não dariam conta das tensões e contradições que marcam a vida individual. Existir é existir diante de Deus, e a impossibilidade de compreensão da infinitude divina, faz com que a consciência vacile como se estivesse diante de um abismo.

            A Fé reúne a reflexão e o êxtase, a procura infindável e a visão instantânea da Verdade. O paradoxo de ser o pecado, ao mesmo tempo, a condição de salvação, é algo bastante sintomático, já que foi por causa do pecado original que Cristo veio ao mundo.

          Qualquer filosofia que não leve em conta essas tensões, que afinal são derivadas de estar o finito e o infinito em presença um do outro, não constituirá fundamento adequado da vida e da ação.

          A Filosofia deve ser imanente à vida. A especulação desgarrada da realidade concreta não orientará a ação, muito simplesmente porque as decisões humanas não se ordenam por conceitos, mas por alternativas e saltos.

                                                                                                                               Revista da Academia Cearense de Letras, 

                                                                                                                                                             nº 76. Fortaleza, 2015

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