terça-feira, 12 de março de 2013

Dois Romances de Fran Martins




         Dimas Macedo                                                       

 
                                                                                   Desenho de Fernando Lima



            1. Ponta de Rua
  
    O fato de Fran Martins ter sido um jurista notável, celebrado nacionalmente como o maior dos nossos comercialistas, não diminui os méritos literários que lhe possam ser atribuídos, especialmente os méritos de grande romancista envolvido com a criação do chamado romance cearense.

    Com efeito, ao lado de João Clímaco Bezerra e Jáder de Carvalho, Fran Martins compõe uma tríade de importantes romancistas surgidos no Ceará a partir da década de 1930. Não falo de Rachel de Queiroz, que optou por uma visibilidade mais ampla na cena cultural brasileira, nem de José Alcides Pinto, que foi um romancista de expressão estética muito refinada.

     Falo de romancistas que, sociologicamente, colocaram a problemática cearense no centro de suas preocupações, e que fizeram da literatura uma estupenda frente de combate em busca da redenção da nossa tragédia social, projetando luzes sobre o ciclo do misticismo e do cangaço, a espoliação latifundiária e as vicissitudes da economia do algodão, na região centro-sul cearense, e sobre a formação burguesa e proletária da grande Fortaleza.

    A crise existencialista pela qual passou Fran Martins, no transcurso da década de quarenta, e a inquietação que o levou a liderar o Grupo Clã e a consolidação do modernismo cearense, não o desvincularam do eixo no qual apoiou a sua escritura literária. 

   Em Fran Martins está exposto o ideário do Romance de 30 no Nordeste, principalmente o seu ideário social com forte poder de denúncia, talvez com paralelo em Amando Fontes e em aspectos isolados do José Lins do ciclo da cana-de-açúcar.

    Um dos romances de Fran Martins, intitulado Ponta de Rua e reeditado pela UFC em 1999, foi escrito entre março e outubro de 1935 e publicado no Rio pela Editora Irmãos Pongetti, do Rio e Janeiro, em 1937.

      Trata-se de sua estreia como romancista e de romancista que teria carreira literária exemplar, autor de livros como Estrela do Pastor (1942) e A Rua e O Mundo (1962), para aqui citar dois exemplos extremos, em meio a uma obra que engloba cinco livros de contos, uma novela de conteúdo lírico e social a um só tempo e seis romances substanciais e reveladores de um escritor de largo tirocínio.

    O enredo que Ponta de Rua preserva, mostrando a ascensão social do Zéclementino, na zona periférica do Alto da Balança, envolvendo o trecho que vai de Messejana ao Cocó, se presta, fundamentalmente, como motivo para uma crítica ácida às instituições que modelam o capitalismo, e que o capitalismo, consorciado com os aparelhos do Estado, vai modelando também.

    Em Ponta de Rua, a lógica do capital não é a lógica dos valores humanos da comunidade, calcados na dignidade e na comunhão de interesses que governam as suas próprias ações. Zéclementino é, indiscutivelmente, uma personagem muito bem construída, assim como Lélinha, a bailar como louca, no capítulo final do romance, é uma personagem que se quer fazer representar.

     O sentido da indignação e da revolta, a urdidura das relações sociais e individuais, a permanente busca de concretização da tragédia e a consciência da classe que Ponta de Rua revela, através de uma fala insubmissa e nervosa, que cresce com o desenrolar do enredo e da sua trama bem arquitetada, são atributos que dão a esse livro um colorido todo especial.

       Esse, possivelmente, o propósito que Fran Martins pensou para a montagem de Ponta de Rua, romance perdidamente cênico e visual, o qual encerra o projeto, traçado por Antônio Martins Filho, da reedição desse grande escritor cearense, reedição necessária, cometimento de justiça que julgo dos mais relevantes.

                       2. Mundo Perdido

              Como leitor curioso de alguns exercícios do fenômeno literário nordestino e, especialmente, cearense, principalmente no pertinente ao universo da longa ficção, aqui e ali me deparo com interrogações que fazem reviver a problemática que permeia o descompasso da chamada indústria cultural.

              As flutuações do mercado literário brasileiro, tangidas pelo bafejo da dependência e do colonialismo, têm privilegiado o produto cultural externo em detrimento das nossas mais representativas produções, legando ao nosso sistema de reprodução cultural o conhecimento de uma realidade que pouco ou nada tem em comum com as nossas tradições.

               É exatamente por conta dessa circunstância que hoje muito pouco se lê e muito pouco se sabe a respeito do universo catalogado pela nossa prosa de ficção. O estudo do espaço regional cearense e do drama secularmente retardado do seu processo de politização resulta sempre inacabado quando não se procura, no conjunto, aferir a análise psicológica filtrada pela pena dos nossos ficcionistas.

               A segunda edição do romance Mundo Perdido, de Fran Martins, hoje reconhecido nacionalmente como um dos nossos mais eminentes juristas, mas, infelizmente, deslembrando como romancista, é bem a prova, fartamente documentada, de um período trágico e grandioso da nossa combalida história regional, refletido no drama que fomentou o misticismo e a servidão involuntária das nossas populações rurais.

              Em Mundo Perdido, Fran Martins conta a história trágica e contundente de um homem atormentado pelo seu destino e pelas sucessivas desventuras da sua condição; um prisioneiro apodrecido no seu isolamento carcerário a refletir acerca dos seus conflitos psicológicos e emocionais, tentando restaurar, através do fio condutor da interrogação, um passado de sacrifícios ingentes e os traços essenciais que lhe permitem refazer a urdidura de sua narrativa.

            Centrada a trama do romance na cidade de Juazeiro do Norte, num período conturbado da nossa história política regional, da sua tessitura discursiva fluem os cenários e as tensões que deram dinamismo ao processo de desenvolvimento sociocultural do Cariri.

                 Com efeito, as cenas e painéis que movimentam as páginas do romance, apesar de transfigurados pelo talento do seu narrador, refletem acontecimentos reais vivenciados pela evolução histórica do sul do Ceará: a luta pela emancipação política de Juazeiro, a face do misticismo religioso dos romeiros do Padre Cícero Romão, a referência ao famigerado Pacto dos Coronéis, a derrubada de Franco Rabelo pelas forças reacionárias do interior e o conflito sócio-político que fomentou o chamado ciclo das deposições no Cariri são acontecimentos que fazem do romance de Fran Martins um projeto literário de muitos compromissos com o mundo concreto do real.

                  Antônio Reinaldo, personagem central do romance, configura um protótipo mais do que acabado do nordestino sofrido e esquecido nos espaços ermos do interior, lançado nos braços da incompreensão e da miséria por força do latifúndio devorante e opressor, do latifúndio que legou ao homem do campo as marcas do cangaço e da prostituição, fenômenos culturais com os quais Fran Martins igualmente ocupou ao tecer as páginas de Dois de Ouros, obra-prima da novelística cearense e referência maior do ciclo do cangaço no Ceará.

                  No romance de Fran Martins, o que verdadeiramente chama a atenção é a incontestável capacidade do autor em reconstituir os cenários e surpreender o leitor pela revelação de novas descobertas. Nas mãos de Fran Martins o drama de Antônio Reinaldo aparece assumindo convincentes e inesperadas dimensões, isto sem que o autor possa desprezar a ambiência política e, principalmente, sociológica, que sedimentam a atmosfera da fabulação.

                O Mundo Perdido e reconstruído pela escritura de Fran Martins constitui universo que dificilmente se pode descurar. Configura um documento literário que, apesar de deslembrado pela compressão da indústria cultural, revela a face combatente de um grande escritor, isto sem contar que o romance, em sua urdidura, exibe uma respeitável força criativa e um argumento estilístico e discursivo gradativamente capaz de convencer.

4 comentários:

  1. Dimas, Comentários valiosos de obras de autor proeminente das nossas letras cearenses.

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  2. Dimas, você afirma ser um leitor curioso do fenômeno literário nordestino, mas nos apresenta um texto de um analista competente e consciente dos meandros da Teoria Literária, capaz de fazer uma leitura percuciente e bem fundamentada. Você mostrou ser um leitor contumaz e grande conhecedor da literatura cearense, ao analisar a urdidura dos romances, preocupou-se em analisar personagens, tempo, espaço e o contexto sócioeconômico e político, ou seja, a diegese: o mundo ficional que serve de referente aos dois romances de Fran Martins. Muito bom!
    Lourdinha Leite Barbosa

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  3. Emerson Monteiro, Linda Lemos e Loudinha Leite Barbosa, grato pelos comentários de vocês e pelo apoio. Forte abraço.

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  4. Lindas palavras sobre um grande homem! É essencial que os mestres do presente guardem a memória dos mestres do passado.

    Cordialmente,

    Bernardo Macêdo Martins

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