Confidências
a Dimas
Clauder Arcanjo*
Lembro o meu pai
apascentando estrelas
e solidões
em tardes duradouras
e a minha mãe
na sombra do alpendre
de olhos no algeroz.
Lembro o
meu pai, Dimas, mas não tive a poética de descrevê-lo tão bem. Dele, tu acreditas,
colhi a singeleza do luar sertanejo, o abrigo do conselho amigo; enquanto minha
mãe, com suas mãos-úberes e dadivosa, ofertava o pão, o leite e o afago para
toda a família.
Lembro o meu pai
taciturno
em horas de agonia
e a minha mãe
tecendo alegorias
ao seu rebanho
de dores e aflições.
Até hoje,
Dimas Macedo, busco descobrir o segredo do engenho dos meus pais. Zequinha, de
saúde não tão boa, mas forte na palavra; e Maria, companheira a tanger-lhe as
fraquezas, a sarar-lhe as dores com lenimentos de carinho. Logo em seguida, os
dois, tomavam nossas mãos e guiavam-nos na direção da luta da educação. Enquanto
meu pai, nas agonias frequentes, escondia-nos a batalha do diário sustento.
E tu, Dimas,
a te confessares com teus pais, descritos em versos tão fortes, transmuta-los
em fraternos, e paternos, de todos nós.
Lembro o meu pai
e a minha mãe
em inventários
elaborando
o seu rosário de preocupações.
&&&
Adoro
conversar sobre literatura com quem costura versos na algibeira das pequenas digressões.
Dimas Macedo é mestre neste valioso ofício.
Rosa
Guimarães a linguagem,
a
liberdade nos sertões gerais.
Quando
cuido em louvar-te o trocadilho, tu, Dimas, me narras o vasto mundo mineiro,
agora em outro trem.
Longo
é o texto, vasto é o sonho:
Minas
é o mundo e algo mais.
Drummond,
gauche, nos faz companhia, vindo de Itabira, e tu convidas novas poéticas personagens.
E eu, de queixo caído e de olhos alados, sou ser-tão todo ouvido.
O sertão nas asas do vento é
Riobaldo.
Diadorim
é poema que se faz em mim.
Quando
menos dou conta, lá tu me aprontas contos de saga sem fim. Montados em burros
estradeiros, marchamos por dentro de sagarana. Toda magia, enfim.
Saga,
sagarana:
onde
a magia do burrinho pedrês?
A noite
se estica no mineiro proseado; e, conosco, despontam novos condenados, a
luzirem seus olhos de leitorados entre tantas minas gerais.
Manuelzão
e Miguilim:
essas
estórias plurais.
Em
tudo, Guimarães Rosa. Por tudo, Rosa Guimarães. Veredas do ser tão sem fim.
Veredas
do sertão:
Rosa
Guimarães, princípio e fim.
—
Bem-vindos, rosas, rosianos, rosários, diadorinhos, sagrados sagaranos,
pedreses burrinhos, riobaldos dos vastos mundos dos sertões: grandes veredas, nonadas,
letras do céu e do chão! — bendize-nos, mestre Rosa. Ô trem bão, sô!
&&&
A lua e as estrelas
o sol e os alabastros,
as cicatrizes de Deus
e as mulheres nuas
são formas puras de amor
que reconheço,
são como cactos
que me ferem os olhos
Quando me defronto com versos de fina cesura, os meus olhos,
Dimas, ganham o brilho do halo da lua. Entre sol, lua, estrelas e donzelas,
somos todos bestas-feras, dissimulados como se feridos por pontudo anzol. Por
mulheres, eleitas princesas, montamos casas, subimos na mesa, e ofertamos o
peito indefeso a todas as penas do Céu.
na distância,
tais os mistérios densos,
as perdas preciosas,
a dor de não viver a vida
presa na garganta.
&&&
Em águas
de Caponga,
nas
ribeiras do sol,
o mar se
vai tornando laranja;
e se vão
plantando
estrelas
e silêncios;
Quando
anoitece, amigo Dimas, sempre fujo da beira do mar. E se à tarde eu estiver na
Caponga, onde as águas se alaranjam com o descanso do sol, recolho logo o meu
bisaco, pois bem sei que dentro de mim brotará um plantio de estrelas cadentes
e uma fieira de silêncio de dar dó.
e se vão
tecendo
memórias
e lembranças:
nos
lençóis de linho
e na
nudez de plumas
da magia
de Uka;
Um
certo dia perdi as horas e quando dei por mim a noite já havia se tecido
fogosa. Com pouco, as memórias me lembraram de coisas que já as imaginava
mortas e enterradas. Qual nada!, elas me jogaram sobre um lençol de espinhos. E
eu, frente à nudez primitiva da vida, suei entre espantos, magias, uivos e
gritos.
se vão
fazendo lenha
os nossos
corpos;
se vão
tornando pão
os nossos
lábios,
lavados
pela chama.
&&&
Fortaleza
de noite:
eis
todo um argumento
para
viver a vida
plena
de sentimento.
Lamento
de cidade devassada pelos sorrisos da noite, pelas paixões declaradas sob o
luar de um mar de asfalto, acompanhadas bem de perto pelos verdes mares. Abriga-me,
Fortaleza!
Deslizo
pelas ruas
sorvendo
antiga brisa.
No
rio do asfalto
a
noite se eterniza.
Em
tuas ondas de corpo, valentes e dadivosas, opera-se o milagre do sonho e do
coito eternos; enquanto nos leitos brancos, as mãos se ofertam às serpentes
assanhadas do amor. Em Fortaleza.
Fortaleza
tem corpo
e
atração fatal
que
sangra nossos olhos
com
lâmina de punhal.
Quando
a ti me acheguei, Fortaleza, tive que trocar meus amores ribeirinhos por deusas
abissais: esculturas de carne e osso a debutarem nas tardes de ressacas fatais.
E eu a levitar, com punhal na calça jeans, à beira-mar de Iracema.
Sou
todo fortaleza,
penumbra
e nostalgia.
Existo
enquanto sonho
sua
geografia.
Eu,
que me confessava, Dimas, matuto tristonho das ribeiras do Acaraú, hoje,
inquieto, declaro-me adotado, de coração e abastança, por Fortaleza, metrópole
que se me mostrava, na juventude, tão estranha.
Quando,
Fortaleza, eu de ti me afasto, sonho a caminhar por tuas ruas, praças e
avenidas todos os dias.
Em
noites de insônia
Fortaleza
é assim:
é
casa do espírito,
é
princípio e é fim.
&&&
Te
amo sobretudo os lábios
e
a resina viscosa dos teus seios,
pois
a vulva dos teus olhos enlaça
a
sedução invisível dos meus pelos,
onde
começo a viver e me embaraço,
porque
me mato de amor quando te vejo.
Sempre
decantamos a amada guardada no casulo mais fremente. A ela, Dimas, nos
entregamos com o corpo resinoso e frio, a sairmos de tal entrega com a alma
inteira fervente. Na sedução invisível do embaraço e dos pespontos, eis que
urdimos, na noite grávida de espanto, um tear de murmúrios e gritos infrenes.
Nos olhos, no buço, na pele e nos órgãos instigados, o amor se entrega como se
o casal estivesse diante do último tormento.
&&&
Pássaro
soturno
pousado
em minha sombra
tal
como o corvo de Poe.
Poe
me acena com seus olhos de corvo feroz, e eu fujo em direção aos verdes mares
da bravia Iracema.
Gatos
alados
que
voam no silêncio
do
quarto de Rimbaud.
Ah,
Dimas!, tu nem ensinaste tão belo trocadilho com Rimbaud. Ficarei, então, a te
esperar embaixo das lanternas cor de aurora do mestre Sânzio.
Besouro
cego
e
sem plumas
tal
como o cão raivoso de Averróis.
Instigados
pelo mundo que nos abandona, voltamo-nos para o coser da palavra em forma de
manto: a um tempo, jazigo, ressureição, sepultura e acalanto.
Há
em geral, Dimas, um cão a nos acolher e lamber quando seduzimos a lua com
palavras-ossadas de arrebóis.
Vampiro
surdo
de
garras afiadas
deitado
em meus lençóis.
&&&
Minha
querida, o esterno,
é
mais do que eterno
o
osso do teu peito.
Fico
sem jeito
olhando
o teu vestido
tão
revestido de rosas
e
o corpo tão ardente.
A
musa se revela na sessão mais saudável e operosa. Sem notar que seu hálito de
monarca, suas vestes de deusa helênica, seu perene riso em esterno arfante
atiçam o corpo que segue tão puros ensinamentos.
Tão
transparente o teu beijo,
assim
como a salina dos olhos
e
a franja dos cabelos.
Haverás
de te entregares às rosas que flutuam em torno da manhã, pois sabes bem que o
desejado corpo haverá de murchar com o anúncio do fim do tempo.
Teu
tornozelo,
uma
bela saliência,
e
a tua leniência
me
eriçando os pelos.
Daímôn!... Filho
de Larvas, há um vulcão dentro das miradas dos ribeirinhos do Salgado?
&&&
Deus mudou de residência
quando eu o procurei no meu corpo.
Eu o quis novamente no cérebro
e ele já se havia plantado na alma.
Ele tinha sossegado o meu busto.
Ele fazia escrituras nos dedos
e acariciava os meus olhos
que viviam completamente tontos de
enganos.
Dimas,
há muitos que ainda insistem em descrever nosso Deus com a tinta da razão,
assim como acolhê-lO no fundo do cérebro. O Pai só quer o colo da alma; e só
nos deixará quietos e sossegados quando nos deixarmos zelar pelas carícias de
Seu mistério.
As
minhas miragens morriam
quando
ele chegou muito perto e me disse:
a
luz é a que fica gravada na memória,
e
o sol é o que nasce brilhando a cada dia,
pois
a tua honra e a tua lâmina,
pois
a tua glória e o teu escudo
são
essas rugas de paz
e
essas dálias brancas
e
essas tardes mágicas
e
essas plantas nobres
que
se deixam cair na correnteza.
Numa
tarde quieta e mansa, Tua voz rompeu por entre a correnteza dos meus pés, as
horas se plantaram no chão sem viço, e a tarde, antes tão sem festa,
anunciou-se florida e veloz.
E
Deus já se havia chegado
por
entre os fios do sonho
e
se havia anunciado leve
como
as espumas e os cristais de rocha,
mas
ainda não se havia desnudo,
porque
as marcas ficam na alma,
porque
o vórtice e as vértebras
às
vezes me levam para a morte.
Pleno
da saudade do nosso “convívio inteligente”, respeito as horas de quaresma que
Cristo nos impõe. Recolhemo-nos, amigo, ao calvário das tardes, à luz cambiante
das reminiscências recentes. Eu, reles pedinte, oro a Deus e à Virgem que nos
cubram com a proteção do divino manto.
Mas
a luz de Deus chegou
para
ficar dançando no silêncio
e
o silêncio
para
ficar gravado nas palavras
e
as palavras para serem
faladas
para o próximo,
porque
no próximo o instante,
porque
no próximo o quadrante
e
as sarças de fogo da espera.
No
instante em que tu te julgares pronto e refeito, dançaremos novamente o tango
da amizade, tocaremos um blues sem
ressentimento. A partir de então, gravaremos, em palavras poéticas, o samba da
espera, ritmo de dorido lamento por tão difíceis momentos.
O
amor não se compraz no pranto.
A
alma é como a música do bosque.
Porque
maduro e belo é o encanto
dos
que se vão serenos pela vida.
Sigamos juntos, Dimas Macedo, somos
duplo e uno. A amizade e a literatura nos irmanaram, egrégios siameses. Agora,
ontem e, Deus haverá de querer, para todo o porvir.
Somos
o duplo talvez
de
algum castelo
misterioso
daquilo
que há em nós.
Obs.:
os trechos em itálico foram extraídos dos livros Sintaxe do desejo, Liturgia
do caos e O rumor e a concha, de Dimas
Macedo.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor,
membro da Academia Norte-rio-
grandense
de Letras.
24/04/2020