pensador da Política.
O que os estudiosos da Ciência Política, às
vezes, não conseguem satisfatoriamente esclarecer é que o conceito de
democracia compreende, na verdade, o ajuste de dois valores humanos
fundamentais, pois não é com o apelo à soberania popular, tão brilhantemente
defendida por Rousseau, ou com o
recurso ao sufrágio universal direto e secreto, que se há de desfraldar a
bandeira das instituições democráticas.
E não
seria igualmente com o restabelecimento do primado da norma e com a efetivação
do mais decidido respeito dos governantes aos direitos e às liberdades dos
governados que iremos proclamar a existência da democracia. E ainda não será a
constatação ou a viabilização de um duradouro processo de legitimidade o
elemento polarizador que determinará a sua sobrevivência.
O desempenho desses programas
políticos ou a prática dessas aspirações, que qualquer Estado venha a adotar
como testemunho de ação governamental, no caso nada mais representa do que a
revelação de apenas uma face da democracia, exatamente aquela que valoriza a
liberdade, mas que não aceita refletir ou sopesar os valores da igualdade.
Esta primeira face da democracia,
como se mostra evidente, reflete o modelo democrático ocidental, conquista da
Revolução Francesa e herança do Estado Liberal de Direito. Esse modelo
democrático tem por salvaguarda a Constituição e por postulado fundamental a
liberdade e a não intervenção. O Estado que o adota se caracteriza por ser
favorável ao florescimento do capitalismo e, por conseguinte, contrário a
qualquer proposta que vise à igualdade econômica dos cidadãos.
Já a outra face da democracia seria
aquela que possui os seus fundamentos na pregação marxista, a qual, em síntese,
parece rejeitar as propostas da democracia do tipo ocidental, a ela se
contrapondo de forma dialética. Esse modelo de democracia, de feição
predominante econômica, configura os pressupostos do socialismo real, o qual,
além de outras características que lhe são atribuídas, pauta a sua conduta pela
rejeição da liberdade política e da participação.
Se, na democracia do tipo ocidental,
o valor tomado em consideração é a liberdade, na democracia do tipo socialista
esse valor seria a igualdade, não a igualdade política pregada pelas constituições
do Ocidente, mas a igualdade econômica, caracterizada pela supressão dos
desníveis de classe e pela concentração das fontes de produção nas mãos de um
reduzido grupo de manipuladores da burocracia e do aparelho ideológico estatal.
Nesse contexto de contradições e de
ambiguidades, torna-se imperativo pesquisar (e também concretizar) o ponto de
equilíbrio entre a retórica da democracia-conceito e a práxis de inspiração
revolucionária que permeia o exercício do socialismo, com vistas, inclusive, à
superação do autoritarismo como questão central da crise política do Brasil.
E o debate, assim considerado, tem,
obrigatoriamente, que ser polarizado sustentando-se, de um lado, em
argumentações que possam revalorizar os postulados do eurocomunismo e, do
outro, na defesa das regras do jogo que disciplina e informa o discurso da
democracia social.
Talvez assim, de forma efetiva,
seja possível falar na concretização de um socialismo democrático de inspiração
social, modelo certamente equidistante das posições radicais modeladoras do
socialismo econômico e da democracia política como faces distintas, portanto,
de uma mesma realidade estatal, no caso o Estado-providência cujo enigma a
sociedade moderna ainda não conseguiu decifrar.
Se para a concepção marxista o
Estado racionalizado e absoluto de Hegel, expressa, em sua mais cristalina
verdade, uma ditadura de classe e um princípio ideológico burguês, não podemos
nos esquecer de que o Estado concebido e levantado pela estratégia
revolucionária e a práxis política do
leninismo não deixa de privilegiar uma hegemonia de classe, na qual a ditadura
política é uma falácia ideológica acerca da qual não cabe discussão.
A conquista e a destruição do
aparelho do Estado burguês, entretanto, para a lógica mais consistente e
sistemática da formulação marxista, não deixa, contudo, de representar a
eliminação de uma ideologia política mantenedora da ditadura econômica de
alguns, em detrimento da participação equitativa de quase todos no processo de
apropriação dos bens sociais.
Esse conjunto de premissas práticas
e teóricas, para o pensador marxista brasileiro Carlos Nelson Coutinho, não
pode deixar de ser levado em consideração, principalmente quando se busca uma
saída para a nossa crise institucional. Pelo menos é isto o que o autor nos
sugere nas páginas do seu livro: A
Democracia Como Valor Universal (São Paulo, Livraria Editora Ciências
Humanas, 1980).
Nesse seu inventário teórico, o autor
tece interessantes reflexões a respeito de algumas questões de princípio, sobre
o vínculo entre socialismo econômico e pluralismo político, buscando, com isso,
uma renovação da nossa mentalidade política e da nossa crise institucional,
extraindo do seu raciocínio teórico a seguinte ilação: a consolidação do
socialismo vitorioso tem como premissa a realização da democracia como valor
universal.
Os argumentos de Carlos Nelson
Coutinho, entre outras contribuições, têm o mérito de situar as ideias de
Gramsci muito próximas de nós. Por outro lado, examinando os efeitos da “via
prussiana” sobre a intelectualidade brasileira, o autor oferece-nos
interessantes painéis, em torno das atuais condições da luta pela
democratização da cultura política no Brasil, revelando-nos algumas implicações
estruturais sobre a tese da nossa “burguesia de Estado”, mostrando-nos até que
ponto é possível a sobrevivência e a prática da atividade política num Estado
que se propõe legatário de um capitalismo monopolista e avassalador.
Nesse sentido, pois, é que importa
pensar a socialização da política como ponto de partida para a socialização do
poder, através da intensificação e da circularidade dialética do processo de
participação. Com relação ao assunto, aliás, seria conveniente refletir a
seguinte proposição de Lênin, extraída do seu livro O Estado e a Revolução (São Paulo, Editora Hucitec, 1986): “se
todos os homens participarem efetivamente na gestão do Estado, o capitalismo
não mais poderá se manter. E o desenvolvimento do capitalismo cria os
pressupostos necessários para que todos possam efetivamente participar da
gestão do Estado”.
A realização do humanismo
socialista, portanto, pressupõe o mecanismo da participação, através da
valorização da vontade política dos governados como elemento decisivo no
processo de constituição do aparelho do poder. Essa me parece ser a conclusão
de Carlos Nelson Coutinho, quando leciona o seguinte: “a pluralidade de
sujeitos políticos, a autonomia dos movimentos de massa e dos organismos da
sociedade civil em relação ao Estado, a liberdade de organização, a legitimação
da hegemonia através da obtenção permanente do consenso majoritário: todas
essas conquistas democráticas, tanto as que nasceram com a sociedade burguesa
quanto as que resultam das lutas populares no inferior do capitalismo,
continuam a ter pleno valor numa sociedade socialista”.
Defendendo os valores de uma sociedade aberta ao socialismo e à
democracia, impossível me parece negar a importância dessa reflexão de Carlos
Nelson Coutinho para a
concretização, entre nós, da democracia política com democracia econômica,
expressão, aliás, do objetivo a que almejamos, e cuja consolidação, agora mais
do que nunca, a sociedade brasileira aspira e requer.