Dimas Macedo
Escultura de Del Valle-Inclan na
Alameda de Santiago de Compostela
O romance latino-americano, do século
vinte, é um dos marcos da moderna tradição literária. Mas a ascendência
cultural hispânica que o antecede, e que o ilumina, projetando influências
sobre as suas raízes e os seus modelos, é possivelmente o principal elemento
que tempera as suas intenções e as suas formas.
O realismo mágico e o traço
sociológico contundente do romance latino-americano muito devem ao empenho
quixotesco de Cervantes. E talvez mais ainda ao recorte bárbaro e espoliativo
com que a civilização hispânica consolidou o seu domínio na América. Mas é
provável que as suas linhas singulares, a expandir as cores do fantástico e do
maravilhoso, e a projetar, nas páginas da história, os contornos do picaresco e
do cômico, elevados à potência da ironia e do grotesco, sejam devidas a Ramón
María Del Vale-Inclan (1866-1936), “o Colombo barbudo do romance
hispano-americano”.
O seu protótipo humano estampado num
“rosto espanhol e quevedesco”, a exibir um espírito original e bufão, não pode
deixar de ser visto, também, como o desvelo anárquico e picaresco da chamada
Geração de 1898, na Espanha, protagonista toda ela do sentimento trágico do
povo espanhol, face à sua derrocada política perante o imperialismo
norte-americano. A literatura dessa geração de 1898 faz-se quase toda ela em
defesa do soerguimento moral da Espanha e da restauração dos seus fundamentos
culturais e humanos.
Segundo
Leo Gílson Ribeiro, nas páginas essenciais de O Continente Submerso (São Paulo, Editora Best Seller, 1988),
“Desse renascimento, depois de longa letargia, fariam parte, entre outros, Pio
Baroja, o escritor social das classes que roçavam a fome proletária diária; o
Unamuno, o erudito tradutor de Kierkegaard (…), difusor do sentimento trágico
de la vida; e Azorín, o poético romancista de miniatura ou da desolação da
decadência das aldeias espanholas”.
E prossegue o mesmo estudioso da
literatura hispano-americana afirmando que “dentro do que ficou denominada de
la geración 98, Del Valle-Inclan é uma
mistura insólita de Quevedo, de Cervantes e de Brecht em sua melhor fase (...).
Valle-Inclan tem de Cervantes o idealismo absurdo de Dom Quixote, de Quevedo
a celebração do humano por mais sórdido e trágico que seja, naquela renovação
do gênero de novela picaresca que ressuscita ao tocar as terras bárbaras da
América Latina. De Brecht tem a mordacidade relampejante, a frase descritiva ou
diálogo que devasta com sua ironia ácida”.
Autor de uma obra literária vasta e
recortada pelo sopro das suas linhagens estéticas e da sua linguagem sutil e
comunicativa, Ramón Del Valle-Inclan é um dos poucos grandes escritores
hispânicos com praticamente nenhuma tradução no Brasil.
Considerado um exímio cinzelador de almas
e um cidadão extravagante e mordaz, Valle-Inclan detinha a marca dos artistas
eleitos e fôlego literário que lhe consentia tracejar obras-primas como Tirano Banderas (1926) ou mesmo novelas
exemplares tais aquelas que compõem o ciclo das Memorias Amables Del Marquês de Bradomin, um dos pontos altos da
literatura espanhola de todos os tempos.
Entre essas novelas de Ramón Del Valle-Inclan,
destaca-se Sonata de Primavera,
(1904), que foi antecedida por Sonata de
Outono (1902) e Sonata de Verão
(1903) e a que se seguiu a Sonata de
Inverno (1905). Trata-se, no caso, da consolidação da carreira literária de
Valle-Inclan como autor da obra mestra do modernismo espanhol.
O Marquês de Bradomin projeta-se em Sonata de Primavera (Madrid, Alianza
Cien, 1994) como um Don Juan de corte muito refinado. É ele protagonista de um
enredo no qual as suas ousadias e sutilidades, buscando a mansidão da alma
feminina, se fazem o eixo gravitacional da narrativa.
Para Bradomin a bondade das mulheres é
mais efêmera que a sua beleza, da mesma forma que o seu orgulho donjuanesco lhe
permite pensar que o terreno da amabilidade humana é mais prodigioso do que as
convenções geradas pelo respeito e a virtude.
E por toda a narrativa, vai destilando as
suas insinuações ardentes, irônicas e rocambolescas. E assim, cego de paixões e
de delírios ternos, Bradomin confessa o seu amor romântico e as suas queixas e
as suas grandes irrealizações amorosas.
Com relação ao personagem Polônio, outro
protagonista do enredo, se pode dizer que é a encarnação de uma aura mítica,
que habita um coração feiticeiro e misterioso. Um coração, enfim, privado da
sua força viril e envolvido, por vezes, numa teia de relações secretas e
mirabolantes. Trata-se de uma voz que se quer fazer ouvir nos recessos mais
densos e profundos da subjetividade, da morte e da beleza.
O mundo, por outro lado, é o espaço da
perdição para a Princesa Gaetani, a personagem possivelmente mais autônoma de
toda a narrativa. As coisas do mundo, mormente as suas tentações e os seus
grandes dilemas diabólicos, a deixam em estado de apreensão e de virgília,
principalmente quando faz opção por escolher e traçar o destino dos seus
descendentes, dentre eles destacando-se Maria do Rosário, por quem o coração de
Bradomin não para de pulsar e a quem ele, também, não para de prestar
reverência.
O
roma
nce se passa na cidade italiana de Ligúria. O Marquês de Bradomin é um
jovem cavaleiro, que foi destacado por sua santidade para ser guarda nobre do
Monsenhor Estefano Gaetani, Bispo de Betúlia, pertencente à família dos
príncipes Gaetani e que, por muito tempo, foi Reitor do Colégio Clementino.
Quando o Marquês de Bradomin chega à
cidade de Ligúria, aí é recebido por uma triste notícia, a de que o Monsenhor
Estefano tinha sofrido um acidente trágico na casa da sua cunhada, a Princesa
Gaetani, e em virtude do qual veio a falecer.
A Princesa Gaetani, com efeito, no
passado fora casada com seu irmão, o Príncipe Filipe Gaetani, que também morreu
de forma trágica e totalmente imprevisível. A princesa mora no Palácio Gaetani,
com as cinco filhas, e a mais velha, María do Rosário, tem vinte anos apenas, e
está destinada pela mãe para entrar no convento, em obediência às leis da
contemplação e do silêncio.
O Marquês se interessa por María do
Rosário e começa a observá-la em todos os seus movimentos e ações, espreitando
os seus sentimentos e palavras, comportando-se como um perfeito D. Juan que
tenta conquistar a sua amada de todas as maneiras. María do Rosário, contudo,
resiste às suas insinuações sutis e ardilosas, colocando o destino da sua
vocação como o empecilho maior da sua realização no plano do amor.
A Princesa Gaetani, a princípio, fica
feliz com a chegada do Marquês, a ponto de hospedá-lo em sua residência. No
entanto, quando percebe o interesse do mesmo por María do Rosário, passa a
demonstrar desprezo por sua permanência no Palácio, não conseguindo conter, por
outro lado, os impulsos da sua sensibilidade afetiva e transbordante.
E
María do Rosário, dessa forma, percebendo esse clima denso e sufocante, pede ao
Marquês que embarque de volta para Roma, pois a vida dele corre perigo e ele
precisa se defender contra os perigos e as armadilhas do coração, ao passo em
que o Marquês percebe que María do Rosário lhe ama, pois quer lhe proteger,
apesar de não aceitar o seu amor.
E estando a sós, entra no aposento a
pequena María das Neves, a irmã mais nova de Rosário, com uma boneca nos braços
e fica com eles na sala. Inexplicavelmente, algo muito misterioso acontece, um
acidente trágico rouba a vida da menina, quando algo imprevisível entra pela
janela e a atinge. María do Rosário enlouquece e repete a todo instante que
aquilo foi coisa demoníaca.
Por trás de todos esses dramas, é fácil
perceber que a conduta subjetiva do Marquês e os seus galanteios amorosos têm
um componente psicológico fundado na intuição e na bondade, o que lhe permite
divisar, no “fundo dourado dos olhos da Princesa”, a chama de um fanatismo
iluminado e sombrio, que talvez reflita, em sua essência tristonha, a expressão
de um sentimento trágico não realizado.
E quanto a María do Rosário, afirma o
Marquês que ela foi o único amor de sua vida. E depois de muitos anos a
recordá-la e a vivê-la, na imaginação e na lembrança, os seus olhos áridos, e
já quase cegos, enchem-se de lágrimas, revelando-se assim, no final do
entrecho, a epopeia trágica do amor como a grande chave simbólica da Sonata de Primavera que, no caso
específico de Inclan, é a estação sublime do amor e o estágio da sua alegoria
festiva. E ainda assim porque o título da novela é todo ele plural e sugestivo,
refletindo talvez que a primavera e a sua beleza tenham relação com o
sentimento trágico do autor e com o ponto de vista estético e ontológico que
ele dissemina.
Vemos, por fim, nessa ousada novela de
Del Valle-Inclan, os rituais da fé e as suas armadilhas em choque com os
conflitos amorosos e passionais das personagens, cujo destino trágico se
confunde com as ações e atitudes que protagonizam.