quarta-feira, 31 de julho de 2013

Uma Sonata Para Valle-Inclan



               Dimas Macedo
 

 
                                                        Escultura de Del Valle-Inclan na
                                                   Alameda de Santiago de Compostela


         O romance latino-americano, do século vinte, é um dos marcos da moderna tradição literária. Mas a ascendência cultural hispânica que o antecede, e que o ilumina, projetando influências sobre as suas raízes e os seus modelos, é possivelmente o principal elemento que tempera as suas intenções e as suas formas.

         O realismo mágico e o traço sociológico contundente do romance latino-americano muito devem ao empenho quixotesco de Cervantes. E talvez mais ainda ao recorte bárbaro e espoliativo com que a civilização hispânica consolidou o seu domínio na América. Mas é provável que as suas linhas singulares, a expandir as cores do fantástico e do maravilhoso, e a projetar, nas páginas da história, os contornos do picaresco e do cômico, elevados à potência da ironia e do grotesco, sejam devidas a Ramón María Del Vale-Inclan (1866-1936), “o Colombo barbudo do romance hispano-americano”. 

        O seu protótipo humano estampado num “rosto espanhol e quevedesco”, a exibir um espírito original e bufão, não pode deixar de ser visto, também, como o desvelo anárquico e picaresco da chamada Geração de 1898, na Espanha, protagonista toda ela do sentimento trágico do povo espanhol, face à sua derrocada política perante o imperialismo norte-americano. A literatura dessa geração de 1898 faz-se quase toda ela em defesa do soerguimento moral da Espanha e da restauração dos seus fundamentos culturais e humanos.

        Segundo Leo Gílson Ribeiro, nas páginas essenciais de O Continente Submerso (São Paulo, Editora Best Seller, 1988), “Desse renasci­mento, depois de longa letargia, fariam parte, entre outros, Pio Baroja, o escritor social das classes que roçavam a fome proletária diária; o Unamuno, o erudito tradutor de Kierkegaard (…), difusor do sentimento trágico de la vida; e Azorín, o poético romancista de miniatura ou da desolação da decadência das aldeias espanholas”.

      E prossegue o mesmo estudioso da literatura hispano-americana afirmando que “dentro do que ficou denominada de la geración 98, Del Valle-Inclan  é uma mistura insólita de Quevedo, de Cervantes e de Brecht em sua melhor fase (...). Valle-Inclan tem de Cervantes o idealismo absurdo de Dom Quixote, de Quevedo a celebração do humano por mais sórdido e trágico que seja, naquela renovação do gênero de novela picaresca que ressuscita ao tocar as terras bárbaras da América Latina. De Brecht tem a mordacidade relampejante, a frase descritiva ou diálogo que devasta com sua ironia ácida”.

     Autor de uma obra literária vasta e recortada pelo sopro das suas linhagens estéticas e da sua linguagem sutil e comunicativa, Ramón Del Valle-Inclan é um dos poucos grandes escritores hispânicos com praticamente nenhuma tradução no Brasil.

      Considerado um exímio cinzelador de almas e um cidadão extravagante e mordaz, Valle-Inclan detinha a marca dos artistas eleitos e fôlego literário que lhe consentia tracejar obras-primas como Tirano Banderas (1926) ou mesmo novelas exemplares tais aquelas que compõem o ciclo das Memorias Amables Del Marquês de Bradomin, um dos pontos altos da literatura espanhola de todos os tempos.

       Entre essas novelas de Ramón Del Valle-Inclan, destaca-se So­nata de Primavera, (1904), que foi antecedida por Sonata de Outono (1902) e Sonata de Verão (1903) e a que se seguiu a Sonata de Inverno (1905). Trata-se, no caso, da consolidação da carreira literária de Valle-Inclan como autor da obra mestra do modernismo espanhol.

      O Marquês de Bradomin projeta-se em Sonata de Primavera (Madrid, Alianza Cien, 1994) como um Don Juan de corte muito refinado. É ele protagonista de um enredo no qual as suas ousadias e sutilidades, buscando a mansidão da alma feminina, se fazem o eixo gravitacional da narrativa.

     Para Bradomin a bondade das mulheres é mais efêmera que a sua beleza, da mesma forma que o seu orgulho donjuanesco lhe permite pensar que o terreno da amabilidade humana é mais prodigioso do que as convenções geradas pelo respeito e a virtude.

     E por toda a narrativa, vai destilando as suas insinuações ardentes, irônicas e rocambolescas. E assim, cego de paixões e de delírios ternos, Bradomin confessa o seu amor romântico e as suas queixas e as suas grandes irrealizações amorosas.

      Com relação ao personagem Polônio, outro protagonista do enredo, se pode dizer que é a encarnação de uma aura mítica, que habita um coração feiticeiro e misterioso. Um coração, enfim, privado da sua força viril e envolvido, por vezes, numa teia de relações secretas e mirabolantes. Trata-se de uma voz que se quer fazer ouvir nos recessos mais densos e profundos da subjetividade, da morte e da beleza. 

        O mundo, por outro lado, é o espaço da perdição para a Princesa Gaetani, a personagem possivelmente mais autônoma de toda a narrativa. As coisas do mundo, mormente as suas tentações e os seus grandes dilemas diabólicos, a deixam em estado de apreensão e de virgília, principalmente quando faz opção por escolher e traçar o destino dos seus descendentes, dentre eles destacando-se Maria do Rosário, por quem o coração de Bradomin não para de pulsar e a quem ele, também, não para de prestar reverência.
        O roma
nce se passa na cidade italiana de Ligúria. O Marquês de Bradomin é um jovem cavaleiro, que foi destacado por sua santidade para ser guarda nobre do Monsenhor Estefano Gaetani, Bispo de Betúlia, pertencente à família dos príncipes Gaetani e que, por muito tempo, foi Reitor do Colégio Clementino.

       Quando o Marquês de Bradomin chega à cidade de Ligúria, aí é recebido por uma triste notícia, a de que o Monsenhor Estefano tinha sofrido um acidente trágico na casa da sua cunhada, a Princesa Gaetani, e em virtude do qual veio a falecer.

         A Princesa Gaetani, com efeito, no passado fora casada com seu irmão, o Príncipe Filipe Gaetani, que também morreu de forma trágica e totalmente imprevisível. A princesa mora no Palácio Gaetani, com as cinco filhas, e a mais velha, María do Rosário, tem vinte anos apenas, e está destinada pela mãe para entrar no convento, em obediência às leis da contemplação e do silêncio.

       O Marquês se interessa por María do Rosário e começa a observá-la em todos os seus movimentos e ações, espreitando os seus sentimentos e palavras, comportando-se como um perfeito D. Juan que tenta conquistar a sua amada de todas as maneiras. María do Rosário, contudo, resiste às suas insinuações sutis e ardilosas, colocando o destino da sua vocação como o empecilho maior da sua realização no plano do amor.

      A Princesa Gaetani, a princípio, fica feliz com a chegada do Marquês, a ponto de hospedá-lo em sua residência. No entanto, quando percebe o interesse do mesmo por María do Rosário, passa a demonstrar desprezo por sua permanência no Palácio, não conseguindo conter, por outro lado, os impulsos da sua sensibilidade afetiva e transbordante. 

       E María do Rosário, dessa forma, percebendo esse clima denso e sufocante, pede ao Marquês que embarque de volta para Roma, pois a vida dele corre perigo e ele precisa se defender contra os perigos e as armadilhas do coração, ao passo em que o Marquês percebe que María do Rosário lhe ama, pois quer lhe proteger, apesar de não aceitar o seu amor. 

       E estando a sós, entra no aposento a pequena María das Neves, a irmã mais nova de Rosário, com uma boneca nos braços e fica com eles na sala. Inexplicavelmente, algo muito misterioso acontece, um acidente trágico rouba a vida da menina, quando algo imprevisível entra pela janela e a atinge. María do Rosário enlouquece e repete a todo instante que aquilo foi coisa demoníaca.

        Por trás de todos esses dramas, é fácil perceber que a conduta subjetiva do Marquês e os seus galanteios amorosos têm um componente psicológico fundado na intuição e na bondade, o que lhe permite divisar, no “fundo dourado dos olhos da Princesa”, a chama de um fanatismo iluminado e sombrio, que talvez reflita, em sua essência tristonha, a expressão de um sentimento trágico não realizado. 

       E quanto a María do Rosário, afirma o Marquês que ela foi o único amor de sua vida. E depois de muitos anos a recordá-la e a vivê-la, na imaginação e na lembrança, os seus olhos áridos, e já quase cegos, enchem-se de lágrimas, revelando-se assim, no final do entrecho, a epopeia trágica do amor como a grande chave simbólica da Sonata de Primavera que, no caso específico de Inclan, é a estação sublime do amor e o estágio da sua alegoria festiva. E ainda assim porque o título da novela é todo ele plural e sugestivo, refletindo talvez que a primavera e a sua beleza tenham relação com o sentimento trágico do autor e com o ponto de vista estético e ontológico que ele dissemina. 

      Vemos, por fim, nessa ousada novela de Del Valle-Inclan, os ri­tuais da fé e as suas armadilhas em choque com os conflitos amorosos e passionais das personagens, cujo destino trágico se confunde com as ações e atitudes que protagonizam.



quarta-feira, 24 de julho de 2013

Dideus Sales e a Poesia Popular


                    Dimas Macedo

 
                                                                                     Dideus Sales

  
                Existe uma tradição (e uma tendência) na poesia de todos os tempos que resiste à tentação das vanguardas e da modernidade: a poesia de inspiração e ritmo popular. Não se enquadra nos rótulos de nenhuma gramática, não cabe em manuais acadêmicos e não se mede pelos parâmetros do mercado onde se vendem mercadorias e serviços.

               É espontânea como as energias do amor, a plenitude e o brilho das estrelas ou como as águas que descem fagueiras das escarpas em busca dos regaços que as levam de volta para Deus.

               Trata-se de uma poesia heroica e multifacetada, que paga tributo unicamente à vida e às grandes esperanças do homem. É revisada e atualizada sempre que entra em contato com o leitor, pois é para ele e não para as ilusões do mundo que ela se refaz e sempre se renova.

                Foi assim com a poesia épica de Homero, com os jogos florais do medievo, com os movimentos trovadorescos de todas as idades e com a poesia popular ibérica que nos deu as linhas de pesquisa e os formatos de bolso e de linguagem da literatura de cordel.

                Está mais próxima do romance e do enredo de gosto popular do que qualquer outra forma de representação veiculada pela palavra ritmada. Está mais próxima do leitor e das suas aventuras do que as projeções ou a dança das imagens que remarcam a existência da sociedade moderna.

                O sertão é o seu locus privilegiado, pois é aí que ela se elabora e se reproduz pela voz dos aedos populares. Leandro Gomes de Barros, no campo do folheto de cordel; Aderaldo Ferreira de Araújo, no setor dos cantadores de viola; Lobo Manso, na seara das profecias e da poesia de combate; e Patativa do Assaré, na linha de todos os ritos polifônicos que unificaram a voz dos deserdados e despossuídos em busca de igualdade e de justiça – são exemplos de poetas do Nordeste que mudaram o curso da literatura popular no Brasil. 

               A afirmação do extrato máximo da cultura, para a minha visão, não está nas Universidades, tampouco nas Academias, esses nichos de petulância e de quase nenhuma produção, mas naqueles que fazem a cultura prosperar, em todos os quadrantes do mundo e, especialmente, no sertão. 

               Os grandes produtores de cultura do Ceará não estão somente em Fortaleza, como pensavam, até bem pouco tempo, os pesquisadores eruditos, mas em toda a extensão da terra de Alencar. Juvenal Galeno, Patativa do Assaré, Oswald Barroso e Gilmar de Carvalho conheceram ou conhecem o Ceará e as suas tradições muito mais do que os poetas que mourejam no Ideal; ou muito mais do que os eruditos que estudam a extensão da sua ignorância nos corredores do Benfica. 

            Dideus Sales, andarilho e pastor de sonhos, que costura a ligação vilas e cidades, no interior do Ceará, é um legitimo representante da cultura cearense e da poesia popular do Nordeste. E mais do que representante, Dideus é o maior e o mais vivo dos poetas cearenses a fazer, no Ceará, a ponte da cultura entre o sertão e o litoral.

              Jornalista, poeta e guardador de tradições sem conta da alma sertaneja, Dideus não para de crescer e produzir. Editor da revista Gente de Ação, sediada em Aracati e que se espraia por todo o Ceará, Dideus atravessa o sertão da sua terra sempre a carregar nos bolsos (e na alma) a verve do povo cearense e as suas mais belas tradições.

             Na condição de poeta, já nos deu meia dúzia de livros e opúsculos que o colocam em posição de relevo. Mas Dideus não para de escrever e publicar. Prova dessa sua paixão de ordem cultural, é o seu livro: Veredas do Sol (Fortaleza, Expressão Gráfica, 2006), que dispensa prefácios ou apresentações. É sóbrio, sereno, espontâneo, equilibrado e arrojado como todos os grandes e pequenos projetos literários do autor.

              Ter sido o autor do prefácio desse livro constitui um privilégio para mim, porque nesse texto me vejo retratado também. E para além da minha condição de poeta, orgulho-me de ser amigo de Dideus, de ser hóspede do seu coração e do seu afeto e de ser leitor de suas intenções e dos seus grandes achados no plano da cultura.

              Não vou entrar no conteúdo do livro. Deixo para o leitor o prazer de desfrutar, de primeiro, as imagens e os ritos do sertão que esse volume documenta: lições de vida e de beleza, lições de vida e esperança, lições de vida e de amor desse trovador e poeta do sertão, que o Ceará e o seu povo legaram à poesia telúrica do Brasil.

sábado, 20 de julho de 2013

O Sonho de Gilberto Milfont

             Dimas Macedo
   
 
                                                                                            Gilberto Milfont

Cantor, compositor, seresteiro e poeta, nasceu João Milfont Rodrigues, conhecido por Gilberto Milfont, em Lavras da Mangabeira (CE), aos 7 de setembro de 1922. Filho do tabelião José Fonseca Rodrigues (Primo Rodrigues) e de Maria Milfont Rodrigues.

Com pouco mais de um ano, transferiu-se para Fortaleza, onde passou a infância e adolescência, com seus avós, e se iniciou na música como cantor e compositor. Em 1943, mudando-se para o Maranhão, fez temporada na Rádio Timbira de São Luís, de onde saiu para a Rádio Tabajara de Natal, em 1944.

 Fez temporada na Rádio Clube de Recife e, em 1945, na Rádio Sociedade da Bahia. Aos 2 de janeiro de 1946, já no Rio de Janeiro, iniciou  temporada na Rádio Mayrink Veiga, passando depois para a Rádio Tupi, e desta última para a Globo.

 Posteriormente, já na condição de profissional, fixou-se na Rádio Nacional, na qual permaneceu de 1948 a 1978, quando ingressou na TV Educativa do Rio, onde realizou diversas apresentações e obteve sucesso memorável.

Autor de mais de 500 composições musicais, com participação em mais de 40 LPs, em 1947 apareceu seu primeiro sucesso de carnaval: “Meu Prazer”, composta por Haroldo Lobo e Milton de Oliveira. No ano seguinte, assim como em 1949 e 1950, ganhou sucessivos carnavais cariocas, com as músicas “Um Falso Amor”, “Batendo Cabeça” e “Pra Seu Governo”, todas da autoria de Haroldo Lobo.

Aplaudido nos melhores palcos brasileiros, Gilberto Milfont gravou pela RGE, RCA, Chantecler e Continental, fez a série Cem Anos de Música Popular Brasileira e, no final dos anos 60, num concurso de âmbito nacional, foi escolhido o Melhor Seresteiro do Brasil.

 Entre os seus grandes sucessos, cabe destacar: “Pra Seu Governo”, “Senhora”, “Geremoabo”, “Batendo Cabeça”, “Maringá”, “As Aparências Enganam”, “Castigo” e “Timidez”. E a sua mais conhecida composição musical, “Reverso”, foi gravada por Sílvio Caldas, Orlando Silva, Dalva de Andrade, Chico Alves, Tito Madi e Trio Los Panches (no México).

 Foi membro da Comissão de Assuntos Culturais do MEC, para onde foi aprovado em 1º lugar, pertencendo à geração dos melhores nomes da MPB, como Sílvio Caldas, Orlando Silva, Dalva de Oliveira, Chico Alves, Carlos Galhardo, Altamiro Carrilho e Nélson Gonçalves.

Em 1978, foi escolhido para integrar o Projeto Pixinguinha que percorreu o Brasil de Sul a Norte, divulgando a MPB. À sua carreira de músico foram dedicados dois programas do Projeto Minerva, e conquistas de sua vida artística mereceram reportagem em diversos jornais e revistas, tendo falecido no Rio de Janeiro, aos 14 de dezembro de 2017.



sexta-feira, 19 de julho de 2013

Investigação Sobre Pedro Lyra


            Dimas Macedo


         Da transitividade do ser aos processos de reificação ou de transformação da consciência reina, de forma soberana, a maior de todas as linguagens criativas. O ato de criação ou de transfiguração da poesia é tão sutil e magnético quanto a manifestação de todos os mistérios e mitos insondáveis.

         Acho que podemos falar de uma mística da poesia, assim como podemos supor a inexistência da matéria a partir das suas formas plurais de energia. A espada e a lírica com que se arma o empreendimento do poema, tanto podem construir a geopolítica de qualquer civilização planetária quanto transformar os processos sociais e econômicos de qualquer modo de produção em andamento.

         Aquele que serve de parâmetro ao atual estágio de regressão da cultura, até o limite da barbárie e da violência plural e indiscriminada, isto é, o modelo de produção do capitalismo financeiro, na sua fase superior de concentração de riquezas e de exclusão social, está a questionar os potenciais de indignação e de revolta que os poetas carregam em sua consciência.

          As formas tradicionais de construção do poema e a alienação dos poetas malabaristas, nefelibatas e provincianos não mais respondem às exigências da linguagem que a ordem cósmica erigiu como suporte da sua contradição e da sua mutação transformadora.

           Creio que não é preciso ser marxista ou adepto dos novos princípios políticos da insubordinação ou da desobediência para constatar que o holocausto do capitalismo financeiro – deste início de século e de milênio – é tão perverso e assassino quanto as concepções totalitárias que destruíram muitas esperanças durante o século precedente.

           Sou marxista, poeta, crítico de literatura, ideólogo e militante político de esquerda. E sendo tudo isso e menos aquilo que alguns setores da imprensa e da literatura me conferem, é que aceito a tarefa de aqui discorrer acerca livro de Pedro Wladimir do Vale Lyra, intitulado Argumento (Rio, Editora Íbis Libris, 2006), isto porque vejo nele o que há muito não era observado em poetas brasileiros das novas gerações.

          Pedro Lyra é um poeta de inquietações criadoras e de recursos formais polifônicos, de contágios e de amores bem concretizados, de desejos poéticos de viés metafísico e de confrontos com a divindade; de decisões e desafios incrustados em todas as potências da alma. Não tem medo de se expor como poeta, de construir suas teses (na maioria das vezes contestadas), de apostar no jogo do amor e do afeto em meio à coisificação dos vários objetos da cultura.

           Não faz dos seus livros o lugar onde deposita as suas queixas de infelicidade, como muitos poetas da sua geração, pois sabe que a felicidade do escritor é a sua luta encarniçada e cotidiana com a palavra e com as suas formas supremas de representação. Sabe, por outro lado, que a melancolia e as dores de cabeça dos poetas nascem da sua indecisão de assumirem a radicalidade da sua condição existencial.

           A sociabilidade da arte, nos tempos atuais, exige, de todos os arquitetos da palavra, um compromisso com a verdade e com a vida, mas não exige que a arte se submeta às camisas-de-força do mercado. Os dilemas ideológicos dos dias de hoje não se devem vincular aos padrões monetários do mercado, aos estilos de vida dos novos concentradores de riquezas, nem à linguagem das filosofias que apostam na aceleração das tecnologias que desumanizam o trabalho e agridem a dignidade das pessoas.

           Os dilemas dos novos escritores devem ser substituídos por suas ações consequentes. O humanismo e a superação das misérias sociais, agora mais do que nunca, são situações que devem desafiar a imaginação do escritor, pois neste ponto latejam a condição humana e todas as ânsias de concretização dos desejos e das formas reprimidas de realizações no plano do amor, da fraternidade e da justiça.

          Não pretendo falar de Pedro Lyra enquanto crítico literário, ensaísta e pensador da cultura. O doutor e o pós-doutor em literatura, o professor universitário e o teórico da ideologia literária cedem lugar aqui à maior de todas as possessões que os deuses, o destino e a inquietação conferiram à sua personalidade polêmica e fascinante.

            Sou leitor de Pedro Lyra desde as suas primeiras teses acadêmicas. Acompanho a sua decisão de remar contra as velhas formas de construção da linguagem poética. Sou, ademais, fã do ideólogo e do filósofo da literatura que ele representa para todos nós.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Roteiro de Ramalho Ortigão

      Dimas Macedo

              

  Assim como não podemos entender a literatura brasileira sem a semântica nacionalista e o espírito criativo e polêmico de José de Alencar (e sem as sutilezas linguísticas e psicanalíticas de Machado de Assis), creio que não podemos compreender a literatura portuguesa e a sua consolidação definitiva sem o conhecimento da Questão Coimbrã, as Conferências do Cassino e o papel da Geração de 1870. 

 Sei que o passado português está ligado aos mitos de Vieira e Camões, à aventura dos descobrimentos e à mística do sebastianismo. É para mim fato consumado que Fernando Pessoa é o príncipe da modernidade literária, não apenas em língua portuguesa; e que José de Sousa Saramago é o restaurador da linguagem barroca, mais sutil e a mais emblemática forma de comunicação que se fez do lado de cá dos Pirineus. 

Mas o que penso sobre Portugal é o máximo do que penso sobre a literatura e os acontecimentos da Geração de 1870. A geração de Antero de Quental, Guerra Junqueiro, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. Sem mais nem menos e sem a necessidade de produzir paralelos.

O que se fez a partir dessa geração é o que faz a diferença na história política e cultural de Portugal. É o que faz a transição do arcaico e do conservador para os esforços da modernidade tardia e sempre conturbada que marca a trajetória daquela importante nação.

Ramalho Ortigão é a personagem principal do livro de Ednilo Soárez: Ramalho Ortigão – Um Marco na Literatura Portuguesa (Fortaleza, Expressão Gráfica, 2008). Uma marca, por certo. Ou até mesmo um bloco de mármore ou de granito imantado de gemas e cristais. Um ponto de interseção e equilíbrio. Uma travessia pênsil, fincada numa rocha (o passado) e que aponta para uma certeza e uma claridade: as saudades do futuro, para aqui ser fiel à expressão de Eduardo Lourenço. 

Não espere o leitor que eu fale de Ramalho Ortigão como sujeito ou como personagem. Ou que eu explique a extensão da sua obra. Ou faça alusão aos traços que marcaram a sua trajetória. Ou que eu registre aqui um comentário ou faça alguma distinção sobre a participação desse conhecido escritor na transformação da cultura portuguesa. 

 Mas de Ednilo, sim, quero falar, dos traços de percepção da sua obra, da sua visão de escritor e sociólogo, da maturidade das suas formas literárias, da linha de prumo com que maneja o intrincado labirinto do ensaio, do ensaio-poema ou do ensaio enquanto expressão de uma poética ancestral e genuína. 

Sólida a sua formação educacional e humanística. Indiscutivelmente madura a sua experiência. Íntegra, como a de poucos homens, a sua personalidade. Faltava-lhe, por certo, o exercício soberano da pena. Faltava-lhe o ato de afastamento da linguagem técnica que muito utilizou como político e gestor das coisas da administração e do governo. Eram-lhe também escassas as águas do repouso e a engenharia da escuta dos dons. 

Falo dos dons da escrita. Aqueles que ele revelou como historiador e sociólogo. Aqueles que ele difundiu como romancista, mostrando-nos os seus conhecimentos sobre as coisas do mar e das embarcações. Aqueles que ele agora nos ensina como ensaísta primoroso do campo literário. 

O Instituto do Ceará se houve por bem em fazê-lo um de seus integrantes, e bem assim a Academia Cearense de Retórica, consagrando-o no seu quadro de sócios titulares. E muito se engrandece a Academia Fortalezense de Letras em tê-lo como Presidente. 

Ramalho Ortigão – Um Marco na Literatura Portuguesa não é uma biografia no sentido da descrição cronológica dos fatos e acontecimentos que marcaram a vida do grande escritor português, mas constitui, com certeza, um tributo à historiografia das ideias que determinaram a autonomia de voo de Ramalho Ortigão.

             A dimensão visual da vida de Ramalho e a explosão da sua obra, a exegese da sua produção, as linhas de força da cultura lusa e a formação e consolidação do realismo em Portugal: eis os elementos e traços distintivos que fazem desse livro de Ednilo Gomes de Soárez um momento ímpar do ensaio, no âmbito da literatura luso-brasileira. 

Ednilo é um bom reconstrutor de cenários. Nele a paixão de ordem visual se faz um componente de monta. Existem, nesse livro, passagens e parágrafos que mais se assemelham à projeção de uma câmara cinematográfica do que a uma tela pintada com as energias da escrita.

 A escritura, em Ednilo, mostra-se um autêntico cruzamento de cores, insights, flashes e pincéis. Escritura que dialoga com as artes e a imaginação do leitor ou dos personagens que retrata, transforma ou reinventa. 

Sei que a apresentação de um livro é algo perfeitamente dispensável. Uma obra literária vale, sobretudo, pela sua expressão, isto é, pelo conjunto das suas formas e do seu conteúdo. Vale também pela visão de mundo do autor, pela sua erudição, pela sua cultura e pelo conhecimento que o autor demonstra do seu objeto de pesquisa. 

             Nesse livro de Ednilo Soárez, estes elementos se comunicam entre si, em grau de circularidade dialética e em grau máximo de harmonia e de expressão da escritura. E o leitor, neste caso, só pode é se sentir um privilegiado. Assim como eu, que vi, de primeiro, a superioridade cultural de Ednilo na tessitura desse livro exemplar e, sob todos os aspectos, relevante.