Apesar de ter sido um
pensador paradoxal, Rousseau foi bastante realista quando se contrapôs ao
sistema burguês de governo, vigente na Europa durante o período em que viveu. O Contrato Social, de 1762 – o seu
ensaio político maior alcance –, influenciou a criação do Estado Democrático e
forneceu os elementos para a sua transformação em Estado Social de Direito.
Não
seria correto, dessa forma, enquadrá-lo na relação dos escritores utópicos, que
sonharam com a mudança das estruturas sociais e políticas, mas que sucumbiram
no limbo da imaginação e da ficção dos seus delírios mentais inconsequentes.
Rousseau foi talvez o único filósofo social do seu tempo que anteviu o
incêndio político da Europa, no final do século dezoito, e o único também que
descobriu o cidadão enquanto sujeito político e agente da revolução social que
se aproximava, e que o elevou à condição de arauto da democracia e da soberania
popular, da igualdade política e da vontade geral.
Não cabe aqui considerar a extensão ou a utilidade dos seus inumeráveis
escritos de Filosofia, nem a vastidão dos seus conhecimentos sobre a arte, a
educação, a economia ou a origem do fenômeno linguístico, porque tudo isso é de
domínio comum e de conhecimento generalizado.
Cabe, sim, nesta exposição, falar do Rousseau que desceu da sua
estratosfera de escritor confessional e prolixo para contemplar a realidade
institucional de duas nações europeias e escrever os seus Projetos de
Constituição. Refiro-me ao Projeto de
Constituição Para a Córsega, de 1764, e às Considerações Sobre o Governo da Polônia e Sua Reforma Projetada,
de 1772, livros que diferem de tudo o que Rousseau escreveu, e que o mostram em
sintonia com os problemas da Constituição.
Sabemos que a Teoria da Constituição é uma coisa e que a Experiência da
Constituição é algo, com certeza, muito diferente. No caso de Rousseau, me
parece claro que a sua teoria antecipou o discurso sobre a prática e o sentido
da Constituição; mas é certo, também, que ele se envolveu com a Constituição
enquanto expressão objetiva de uma comunidade soberana.
Numa passagem do seu livro O
Contrato Social, de 1762, afirma Rousseau que a Córsega surpreenderá a
Europa no campo das suas instituições políticas. Referia-se ele à Constituição
corsa de 1755, a primeira Constituição escrita a ser promulgada na Europa, e
que serviu de modelo para a Constituição Americana de 1787.
Rousseau, apesar da sua compulsão pela imaginação e o delírio, nas suas
considerações acerca dessa memorável Constituição, foi bastante objetivo no
sentido de apontar os fatores reais de poder sobre os quais deveria versar a
sua reforma, mostrando-nos o quanto a Educação e a Economia são instituições
que se devem guardar na Constituição, ao lado da organização dos Poderes e
proclamação dos Direitos Civis.
No seu
Projeto de Constituição Para a Córsega
(Porto Alegre: Globo, 1962) Rousseau anteviu a corrosão que o capitalismo e as
formas de produção da Modernidade poderiam causar à qualidade de vida.
Previdente e racional como poucos escritores de seu tempo, o Filósofo
apresentou a proposta de “estabelecer uma correta política florestal” naquela
nação, e de “regulamentar os cortes de tal modo que a produção se iguale ao
consumo”, antecipando, assim, a ideia de desenvolvimento sustentável.
A outra abordagem feita por Rousseau, acerca
de um Projeto de Constituição, encontra-se nas Considerações Sobre o Governo e sua Reforma Projetada (São Paulo:
Brasiliense, 1981). Rousseau foi bastante sintético nesse texto, nele se
fazendo mais objetivo e muito mais prático do que antes.
A preocupação com a realidade política da
Polônia e com suas oscilações institucionais e seu processo de autonomia,
mostra-se, no texto de Rousseau, como pressuposto para a atuação racional do
Poder Constituinte. No livro se acham projetadas (e também discutidas) a
dimensão material da Constituição polonesa e as formas políticas que devem ser
utilizadas, pelos poderes do Estado, tendo em vista a estabilidade da sua ordem
social e econômica.
Para uma compreensão desse importante discurso de Rousseau torna-se por
certo indispensável a leitura da edição brasileira desse livro, preparada por
Luiz Roberto Salinas Fortes, o mais sólido intérprete de Rousseau em língua
portuguesa, e também o mais sintonizado com o traço dialético e perdidamente
crítico da obra desse grande filósofo da Política.
A Educação e a Economia também aparecem nesse projeto de Rousseau como
eixos estruturais da Constituição. Mostrando os seus conhecimentos e a sua
visão estratégica acerca da realidade institucional polonesa, o autor chega,
inclusive, a aduzir que “a escolha do sistema econômico que a Polônia deve
adotar depende do objeto a que ela se propõe”.
Discorre, em seguida, Jean-Jacques Rousseau, sobre a “correção da
Constituição”, isto é, sobre a sua Reforma, abrindo inclusive, no seu livro,
todo um capítulo justamente intitulado – Meios de Manter a Constituição, no
qual nos ensina que a vida jurídica e institucional da Polônia foi feita
“sucessivamente de peças e pedaços”:
“À
medida que se via um abuso, fazia-se uma lei para remediá-lo. Dessa nasciam
outros abusos, que era preciso novamente corrigir”. E acrescenta Rousseau,
“Essa maneira de operar não fim e leva ao mais terrível de todos os abusos, que
é o de enfraquecer todas as leis à força de multiplicá-las”.
Esse pequeno livro de Rousseau, infelizmente pouco referido ou estudado
pelos seus intérpretes, pode ser tomado como uma chave de conclusão para O Contrato e como uma espécie de
testamento político do autor, pois nada mais escreveu esse filósofo no campo do
Direito Político, por certo convencido de que foi da teoria até o limite em que
a prática da política desafia a estabilidade das instituições.
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