Adriano
Espínola
Capa de Geraldo Jesuino
É
uma grande honra para mim tecer algumas palavras de louvor e admiração a duas
figuras de minha particular estima e amizade: José Alcides Pinto e Dimas
Macedo. Por isso, considero esta uma noite especial. Especial na verdade para
todos nós que aqui nos reunimos em torno de um homem de gênio e de um ensaísta
e poeta de primeira ordem, que a ele dedica um livro-álbum, de bela feitura
gráfico-literária, enfeixando pesquisa biográfica, análise crítica, poesia e
ilustrações, como a simbolizar, através da beleza plástica e conteudística do
volume, a excelência da criação artística do autor de Cantos de Lúcifer.
Afirmei
que esta noite é especial também por uma outra razão que não somente literária.
É que o homenageado fará oitent’anos, em 2003, e o livro de Dimas Macedo surge,
assim, como a primeira das muitas manifestações, que se aproximam, de carinho e
reconhecimento voltados para o amigo, o mestre e irmão em literatura, o poeta
maior, José Alcides Pinto.
Esta
noite representa, pois, uma dupla comemoração: a do artista, com cerca de 50
obras, nos mais diversos gêneros – poesia, romance, conto, ensaio, crítica,
teatro – e a do homem, que chega, glorioso, aos oitent’anos de vida. Quando
digo comemorar, quero ater-me ao étimo da palavra, que significa memorar com,
isto é, lembrar conjuntamente, tornar a memória coletiva. Esta por certo a
aspiração máxima de toda grande obra artística, de acordo com Borges, quando
participa da memória da raça, fazendo-se patrimônio comum, com seu universo de
símbolos, significados, gestos, notas ou traços que forjam a identidade e a
capacidade de criar de um povo. Como assim ocorreu e ocorre com a obra de
Camões, em Portugal, com Walt Whitman, nos Estados Unidos, com José de Alencar,
Castro Alves e Jorge Amado, no Brasil, só para citar alguns exemplos. Toda obra
literária, quando devidamente compartilhada, mercê de suas qualidades estéticas
e de um plus indefinível, torna-se
objeto permanente de co-memoração: passa a pertencer à memória coletiva. Como é
o caso, entre nós, da obra de José Alcides Pinto.
Dito
isto, louvemos a iniciativa de Dimas Macedo, materializada neste trabalho, A Face do Enigma (2002), que exigiu o
concurso de outros tantos talentosos amigos, para que chegasse a resultado tão
fino. Em primeiro lugar, gostaria de destacar aqui o projeto gráfico, a capa e
a formatação eletrônica realizados por este extraordinário artista gráfico,
desenhista e professor, Geraldo Jesuíno da Costa, a quem o Ceará tanto deve,
nestes últimos 25 anos, ao elevar, nas oficinas da Imprensa Universitária da
UFC, o nível da produção gráfica de numerosas obras literárias nossas, todas
marcadas pelo bom-gosto, elegância e criatividade. Como podemos de pronto
atestar em A Face do Enigma. Um livro
que realmente dá prazer aos olhos, ao tato e ao olfato. Sim, porque um livro
graficamente bem feito é cheiroso, é sedutor no seu formato, é elegante e suave
ao toque, em tudo lembrando uma bela mulher. Com uma vantagem adicional:
podemos levar os dois para a cama...
Também
o livro contou com a participação especial do gravurista Audifax Rios e,
sobretudo, dos xilógrafos Abelardo Brandão, Augusto Amaral, Eduardo Eloy,
Francisco de Almeida, Hélio Rola, Hilton Queiroz, Nauer Spíndola, Nilvan Auad,
Roberto Galvão, Sebastião de Paula, Sérgio Lima e Silvano Tomaz, os quais, com
suas criações na madeira ferida por golpes expressionistas, ilustram com alta
categoria as décimas heptassilábicas de Dimas Macedo, em louvor de Alcides
Pinto. E aí está, quero crer, o sentido maior da participação desses artistas
no projeto, ao retomarem a tradição popular nordestina/cearense de juntar os
versos de cordel às capas com desenhos talhados na madeira. Se é verdade que
predominam na xilogravura de cordel os temas religiosos e míticos – herança
medieval – numa tentativa inconsciente de conciliar o sagrado e o profano,
configurando um tempo mítico e visionário, marcado pela dualidade vida e morte,
sonho e realidade, começo e fim, segundo Bakhtine, os traços contrastivos de
preto e branco da xilogravura ilustram à perfeição esse mundo e esse modo
antitético de ver as coisas. Ora, no livro de Dimas Macedo, os xilógrafos
convidados se encontram não só ilustrando, como manda a tradição, os versos cordelistas de Macedo, mas também,
por tabela, o mundo mítico e visionário, sagrado e profano de José Alcides
Pinto.
Igualmente
digna de nota a iconografia selecionada pelo autor desta obra, representando o
ambiente rural, a família e amigos do poeta nascido em São Francisco do
Estreito, município de Santana de Acaraú. Há, nesta seção, uma espécie de
fotobiografia do poeta maldito. Não só: contempla, ainda, o resgate fotográfico
de personagens que achávamos pertencentes apenas ao seu universo ficcional.
Curiosamente, as figuras de João Firmo Cajazeiras e do padre Francisco Araken
da Frota, por exemplo, que ali aparecem, deixam de representar pessoas
empíricas e passam a compor, com muito mais verossimilhança, a paisagem física
e imaginária dos personagens Grilô Firmo e do padre Tibúrcio, tal o poder de
impregnação criadora do autor de O Dragão.
Quanto
à parte propriamente textual e literária, destacam-se, no livro, o roteiro
biográfico, a apreciação crítica da obra, as décimas encomiásticas e a
bibliografia do inventor de A Ilha dos Patrupachas.
O
levantamento da vida de José Alcides Pinto aqui se revela minucioso, preciso e
com um toque novelesco na narrativa, de tal sorte que não sabemos, a certos
instantes, se Dimas está compondo a biografia de um personagem fictício e
lúcido, que se chama por vezes José Alcides Pinto, ou se realiza a
biografia de um homem real e louco, como
João Pinto de Maria. Pinto por Pinto, os dois se confundem, a ponto de um não
saber qual dos dois escreveu Os Verdes
Abutres da Colina. “Eu não escrevi este livro.”, diz um, enfático; e o
outro: “Mas quem o escreveria senão eu?”...
De
qualquer modo, a narrativa de Dimas Macedo se mostra, a nosso ver, como o
melhor esforço biográfico realizado até hoje sobre o homem – ou o personagem ?
– José Alcides Pinto, se é que ele existe de fato, se é que existe de se pegar,
como diria Drummond a respeito de um outro notável bruxo, Guimarães Rosa...
Em
relação à abordagem crítica, Macedo atinge momentos de grande penetração
interpretativa, não obstante o aspecto polifônico e multifário da obra
alcidiana. Por exemplo, entende Dimas classificar com propriedade em dois
sentidos diferentes a principal produção ficcional do nosso querido José: a 1a)
voltada para o realismo mágico regionalista, abrangendo a Trilogia da Maldição (os
romances: O Dragão, Os Verdes Abutres da
Colina e João Pinto de Maria –
Biografia de Um Louco) e a 2a) dirigida para a introspecção
psicológica, onde se situa a Trilogia
Tempo dos Mortos ( os romances: Estação
da Morte, O Sonho e O Enigma).
Quanto
à poesia do autor, Dimas classifica-a com acerto em “pelo menos 4 principais
matrizes temáticas”: 1a.) a lírico-amorosa (20 Sonetos de Amor romântico, Águas Premonitórias); 2a.)
a pornô-fescenina (Os amantes e Relicário pornô); 3a.) a
épico-social (Os Catadores de Siri, O
Acaraú – Biografia do Rio) e 4a) a existencial-diabólica (Cantos de Lúcifer), não esquecendo de
aludir a uma possível 5a vertente: a experimental-vanguardista, a
exemplo dos livros Ordem e Desordem, Águas Novas e Concreto: Estrutura Visual-Gráfica.
No
tocante às décimas, DM expõe seu talento poético para louvar - dentro da melhor tradição popular
cordelista, acima aludida – o artista e a obra. Destacaria, por seu poder de
síntese descritiva, a seguinte décima:
Erótico e contemplativo
Exótico parece um monge
Seus versos ressoam ao longe
Seu canto é quase profético
Seu jeito quase esquelético
Lhe dá a dimensão de sábio
É um romancista hábil
Porém seu fazer artístico
Revela um poeta místico
Só no murmurar dos lábios.
Por fim, o atento autor de Leitura e conjuntura elenca, na exaustiva bibliografia, toda a
produção literária de JAP, mencionando até o poema Canto da Liberdade (1945), raramente lembrado.
Meus
amigos, gostaria de recordar aqui algumas palavras, certamente insuficientes,
que alinhei nas orelhas do livro Trilogia
da Maldição, publicada pela editora Topbooks, em 1999, com as quais busquei
delinear o perfil literário e humano deste agreste filho de Orfeu, ora
homenageado: “José Alcides Pinto, na excepcionalidade de seu gênio literário, é
filho da grande mãe lunar com as águas escuras do Acaraú; centauro de luz e
sombra, cujo dorso de cristal impuro investe furioso contra o sol e as estrelas
fumegantes. Como Rimbaud, mandou para o inferno as palmas acadêmicas dos
mártires, os raios da arte bem feitinha e bem acabada, para retornar à
adolescência e à sabedoria primeira e eterna. Ou para seu próprio nascimento.
Pois, como ele diz, no seu poema Fúria:
‘Nasci premonitório e vegetal como uma ilha. E, sob a minha espinha, há todo um
alfabeto desconhecido enterrado (como um tesouro no fundo do mar)’. Cabe a
todos nós, leitores, decifrar esse alfabeto desconhecido, dramático e belo da
arte e da figura de José Alcides Pinto”.
Posso
lhes assegurar que, para tentar decifrar o tesouro literário submerso de José
Alcides, não há, - sem desmerecer outros importantes trabalhos anteriores, como
os de José Lemos Monteiro, Nelly Novaes Coelho, Floriano Martins e de Paulo de
Tarso Pardal – não há, repito, outro roteiro tão belo e seguro quanto este que
nos oferece agora o poeta e crítico Dimas Macedo, ao contemplar A Face do Enigma e generosamente
compartilhá-la conosco.
DN
Cultura, Fortaleza, 22.12.2002.