Dimas Macedo
O escritor catarinense Salim Miguel
representa um momento de transformação e referência da moderna literatura do
Brasil, entrelaçada que se encontra a sua contribuição com os movimentos de vanguarda
e transição literária que se operaram em Santa Catarina em boa parte da
região Centro-Sul.
Escritor dos mais expressivos da sua
geração, ao lado de Dalton Trevisan, João Antônio, Hélio Pólvora, Moreira
Campos e outros nomes exponenciais da curta ficção brasileira, integra uma
elite das mais importantes da nossa história literária, dimensionada,
principalmente, pelo aparato de modernização que incorporou ao nosso acervo
cultural.
Na década de 1970, a personalidade de
Salim Miguel destacou-se,
basicamente, através das páginas da revista Ficção,
que fundou e ajudou a editar, contribuindo, assim, para a documentação do conto
brasileiro com o mais ousado projeto que, neste sentido, foi erigido entre nós.
Em livros como Velhice e Outros Contos (1951), Alguma
Gente (1953), Rede (1955), O Primeiro Gosto (1973), A Morte do Tenente e Outras Mortes
(1979) e A Voz Submersa (1984) flui,
com certeza, o tirocínio do escritor polivalente e maduro que Salim Miguel não conseguiu ocultar e que a crítica
soube documentar com muita precisão.c
Contudo, é acerca do ensaísta que
habita o universo literário de Salim Miguel
que neste artigo ouso discorrer. Nas suas anotações sobre livros e
autores, enfeixadas em O Castelo de
Frankenstein (Florianópolis: Universidade de Santa Catarina, 1986), aparece
a face do crítico literário posta acima de qualquer suspeição.
Enfocando aspectos da literatura do
Brasil, especialmente de Santa Catarina, e projetando a sua visão de ensaísta em
torno do romance hispano-americano, em O
Castelo de Frankenstein mostra-nos o autor a engenhosidade da sua visão de
escritor, instigando-nos, também, com as suas incursões pelo discurso de Ítalo
Svevo, Umberto Eco, Saul Below e Alexandre Lenard.
As raízes do discurso crítico de Salim
Miguel encontram-se assim
explicitadas segundo as palavras do autor: “Desde muito cedo, criança ainda, ao
mesmo tempo em que vdava início à minha ficção, imaginando-a e recontando-a
primeiro oralmente, e depois em rascunhos que circulavam de mão-em-mão, ia
intentando uma reflexão crítica sobre o ato de viver e o ato de escrever”.
Ficcionista consciente dos
mistérios que envolvem a pesquisa da linguagem e o ofício da literatura, em
permanente processo de recriação, Salim Miguel revela-se crítico literário
consciente e audaz, extraindo dos segredos da arte literária as ferramentas
necessárias ao seu processo de cosmovisão.
Humilde, no entanto, na
“explicação necessária” com a qual abre O
Castelo de Frankenstein, Salim Miguel encanta os seus leitores ao confessar
o seguinte: “Nestes escritos que ora publico existem vários onde me debrucei
mais detidamente, analisando autores e obras, procurando desvelar a intenção
última da proposta inscrita e dela extrair a minha leitura; noutros estão o que
eu chamo de manchas, sucintas anotações, pinçando algo do que mais me tocou.
Gostaria também de esclarecer que se muitos dos trabalhos foram solicitados
pelos órgãos de imprensa, para alguns a sugestão foi minha. Nem todos, claro,
são atores de minha preferência – e a respeito de alguns que mais me marcaram
nunca consegui escrever”.
E assim vai fluindo pelas páginas de
O Castelo de Frankenstein o discurso
de Salim Miguel, explicando aspectos ainda ignorados da obra de escritores como
Guido Wilmar Sassi, Ricardo Hoffnann, Autran Dourado, José Montello, Jorge
Amado, Mário Pontes, José Américo de Almeida, Marques Rabelo e Inácio de Loyola
Brandão.
Agiganta-se o autor quando se
volta para a obra de monstros sagrados da literatura latino-americana, como
Carlos Fuentes, Julio Cortázar, Ernesto Sábato, Guilhermo Cabrera Infante,
Jorge Icaza, Juan Rulfo e Gabriel García Marquez, cuja escritura literária
interpreta com argúcia e grande cosmovisão cultural.
Interessante a abordagem feita
por Salim Miguel, em torno da obra de Braga Montenegro, mestre consumado do
conto brasileiro, mas ainda pouco conhecido do público nacional, pelas
circunstâncias do destino que o aferrou aos espaços da sua província natal.
Gratificante, também, me foi
observar a precisão com que o autor penetrou no universo de Gógol, traçando um
dos seus mais densos perfis. A interpretação da obra de O. G. Rego de Carvalho igualmente muito me valeu, mostrando-nos
Salim Miguel o quanto a sua experiência de crítico o situa como um escritor
fora do comum.
In Ossos do Ofício
v Fortaleza:
Editora Oficina, 1992