Dimas Macedo
“Ainda não se fez com a devida
profundidade o estudo crítico, de corpo inteiro, da personalidade de Juvenal
Galeno (1836-1931) como poeta e
escritor. Há a seu respeito uma bibliografia bastante grande, mas de natureza
partitiva. Apreciaram algumas faces de cristal, mas a gema não foi aquilatada
em seu conjunto. É um tema a desafiar a argúcia de crítico novo, voltado para
as coisas brasileiras, e bem poderia servir de motivo a uma tese de
doutoramento u licenciatura em uma das nossas Faculdades de Filosofia, Ciências
e Letras. Fica aqui a lembrança e espero que ela não caia no vazio”.
Com estas palavras, o conhecido
historiador cearense Renato Braga (1905-1968) encerrou a introdução que, em
1969, escreveu para a 2ª edição dos Folhetins
de Silvanus (1891), de Juvenal Galeno. São palavras que, a despeito do
tempo, continuam no gozo de sua eficácia, mesmo em que pese a algumas
iniciativas mais ou menos ousadas de quase uma dezena de estudiosos que
posteriormente enveredaram pelo assunto.
Entretanto, se a empresa não foi até
hoje realizada, com eram de se esperar, isto decorre, possivelmente, da
complexidade da obra de Juvenal Galeno que, ao contrário do que comumente se
pensa, ostenta mais variada faceta. Além de poeta de inspiração social, Juvenal
Galeno foi contista e teatrólogo. A ele são atribuídos os títulos de Criador da Poesia Popular (Freitas
Nobre, 1943) e Pioneiro do Folclore no
Nordeste do Brasil (F. A. de Andrade, 1949), mas até hoje os comentadores
de sua obra não souberam ou não quiseram nela divisar uma literatura de
antecipação que, na condição de vanguarda, se contrapôs à aristocracia
fundiária e à ideologia burguesa vigentes no tempo e no espaço em que foi
produzida.
Juvenal Galeno não foi unicamente o poeta popular e
ingênuo de “Cajueiro Pequenino” e de outros poemas que todos nós conhecemos.
Vivendo em pleno apogeu do romantismo, lógico seria que ele viesse a assimilar
algumas influências da atmosfera romântica. Mas dessas influências estéticas
ele se libertaria, para, conscientemente, no plano das ideias, executar o
mapeamento literário das contradições políticas e sócioeconômicas da sociedade
na qual vivenciou o seu processo de inquietação.
Quem se der ao trabalho de velejar
por sua obra, nela não deve buscar unicamente o sentido popular do qual, em
verdade, encontra-se toda revestida. Pelo contrário. A obra de Juvenal Galeno
deve ser vista dentro do contexto social, político e econômico no qual foi
concebida, isto para que assim possamos aquilatar o quanto ela representa para
a história da literatura brasileira e, em particular, para a história da
literatura cearense.
Nesta pequena contribuição que oferecemos
à compreensão da personalidade e da obra de Juvenal Galeno, preferimos enveredar
por uma ligeira revisão biográfica do poeta, exatamente neste ano de 1986, em
que se comemora o sesquicentenário do seu nascimento, buscando com isso, em
primeiro lugar, tatear as condições nas quais o poeta elaborou as suas
manifestações, para, somente ao depois, em futura investigação, penetrar na sua
produção literária, a qual, aliás, continua a merecer trabalho de melhor
concentração, impossível de ser levado a efeito num pronunciamento transitório
como é o presente.
Neto, pelo lado materno, do
português Manoel José Teófilo e de Dona Maria Samico Teófilo e, pelo lado
paterno, de Josefa Rodrigues da Silva e de Albano das Costa dos Anjos, nasceu
Juvenal Galeno da Costa e Silva na cidade de Fortaleza, Ceará, aos 27 de
setembro de 1836. Foram seus pais os abastados agricultores José Antônio da
Costa e Dona Maria do Carmo Teófilo e Silva. Ligando-se, por laços de
parentesco, às mais expressivas elites culturais do Estado, era ele, pelo lado
paterno, primo do historiador Capistrano de Abreu (1853-1927), e, pelo lado materno, dos escritores Clóvis
Beviláqua (1859-1944) e Rodolfo Marcos Teófilo
(1853-1932).
No Sítio Boa Vista, de propriedade
de sua família, localizado na serra da Aratanha, transcorreu parte de sua
meninice. Ali, segundo Manoel Albano Amora (Pacatuba
– Geografia Sentimental, 1972), “O menino Juvenal foi contemporâneo de
fatos muitos antigos, observador de costumes, auditor de estórias, integrante
de blocos infantis da manja na sua montanha verde e florida. A apanha do café,
as festas dos apanhadores, a abertura de roçados, a vida dos campônios, a
escuta de lendas transmitidas pelos caboclos nos alpendres da casa em noites
sombrias tiveram sempre os seus olhos e ouvidos como elementos receptivos. As
paisagens, as coisas, os acontecimentos e até as narrativas de cenas
imaginárias ficaram-lhe na alma e haveriam de esplender em versos”.
Para o Sítio Boa Vista, foi
conduzido ainda aos três meses de nascido, mas ali, como quer Mont’alverne
Frota (Entre o Timbira e o Pastor Serrano,
1978), já chega “com a visão dos verdes mares de Fortaleza e das Jangadas e
barcos do Aracati. Cedo, torna-se bom serrano empolgado com o amanho da terra,
com os folguedos, com a ceifa, com a vida rural, com a paisagem da montanha,
das quebradas, dos regatos e com o drama dos pescadores de que iria ser o mais
famoso cantor cearense”. E prossegue Mont’alverne Frota: “o vate da Aratanha
recolheu para a sua arte a cobiça do caricato, as eleições fraudulentas, o
arbítrio dos potentados, dando-nos o grande painel da vida social do sertão, da
praia e da serra”.
Em 1846, como ensina João Clímaco
Bezerra (1913-2006), no seu imprescindível Juvenal
Galeno (Rio, Editora Agir, 1959), encontrava-se o grande bardo cearense
matriculado numa escola primária de Pacatuba, onde realizou o aprendizado de
algumas letras. Com o pai, é possível que tenha assimilado alguns rudimentos de
latim, o suficiente, contudo, para habilitar-se no conhecimento de outras
disciplinas que mais tarde cursaria no Liceu do Ceará.
A outra parte da infância viveu-a
o poeta na cidade de Fortaleza, onde foi aluno de latim do Cônego Antônio
Nogueira Braveza (1807-1881), e
onde, aos 26 de novembro de 1849, mal ainda havendo despertado para a
adolescência, fundou o jornal Sempre Viva,
destinado à leitura do sexo feminino.
Com treze anos de idade, apenas, na
oportunidade em que fez circular o primeiro número do referido jornal, coerente
seria esperar que o empreendimento edificado por Juvenal Galeno não lograsse
maiores resultados, mesmo porque, vivendo ainda sob a tutela dos pais, no ano
seguinte estes o destinariam a acompanhar o tio Marcos José Teófilo (1821-1864) até a cidade de Aracati,
localidade onde o pai do futuro romancista Rodolfo Teófilo passaria a exercer a
Medicina, mais precisamente na direção da farmácia de propriedade do
comerciante José Teixeira de Castro.
A mudança para a cidade de
Aracati, como assegura o Barão de Studart
(1856-1938), no Dicionário Bio-bibliográfico Cearense
(1913), não chegou a lhe prejudicar os estudos, porquanto ali existia uma
Escola Pública destinada ao ensino de latim, regida pelo prof. Porfírio Sérgio
de Saboia (1826-1904), estabelecimento
no qual se matriculou o menino Juvenal Galeno, passando a ter como colegas de
turma os futuros sacerdotes Leôncio Cândido do Carmo Chaves (1834-1862), Clicério
da Costa Lobo (1839-1916) e Antônio Saboia de Sá Leitão (1842-).
Ainda em Aracati, ao tempo que
frequentava as aulas do Professor Sabóia, o menino Juvenal Galeno cuidava
igualmente de ouvir as lições de outro contemporâneo de adolescência – Manoel
do Rego Medeiros (1829-1866), o qual, de futuro, viria a assentar o seu nome na
história eclesiástica de Pernambuco, como regente da Mitra Arquidiocesana de
Olinda e Recife.
Contudo, pouco tempo ali demorou,
pois já em 1853 encontrava-se matriculado no Curso de Filosofia do Liceu do
Ceará, onde foi colega de Joaquim de Oliveira Catunda (1834-1907), futuro Senador da República e autor dos Estudos de História do Ceará (1886), um
dos clássicos da historiografia cearense. Com referido escritor, fundou e fez
circular em Fortaleza o jornal Mocidade
Cearense, também de efêmera duração, em vista principalmente da
transferência de Catunda para o Rio de Janeiro ainda em meados de 1953.
E tendo realizado alguns preparatórios
no Liceu, entre eles, os clássicos exames de humanidades, retornou para o sítio
Boa Vista, ali se envolvendo, por algum tempo, com as atividades agrícolas. O
pai, que queria vê-lo seu substituto na gerência de suas propriedades, tudo faz
para torná-lo íntimo do ambiente rural, procurando nele difundir o gosto pelas
vantagens advindas da cultura cafeeira, isto “numa época em que o café assumia
expressiva importância na economia cearense”.
Mas o ambiente rural não o seduziu
com as benesses do latifúndio, antes nele despertou profundas reflexões em
torno das disparidades econômicas verificadas no seio da sociedade rural, o que
serviu para irritar ainda mais o seu discernimento. Por essa época, atendendo
aos apelos do pai, e não obtendo consentimento deste, como quer a maioria dos
seus biógrafos, seguiu para o Rio de Janeiro, não propriamente com o fim de
desfrutar os encantos da Capital do Império, mas objetivando, entre outras
coisas, adquirir maiores conhecimentos sobre a cultura do café no Vale do
Paraíba.
No Rio, como adianta João Clímaco
Bezerra, na fonte atrás mencionada (1959), o poeta desembarcou em 1855,
trazendo na bagagem carta de recomendação de Rufino José de Almeida
apresentando-o a Paula Brito (1809-1861),
proprietário da Marmota Fluminense.
Ali Juvenal Galeno travou relações com Machado de Assis (1839-1908), então exercendo as funções de tipógrafo, bem
como com Quintino Bocaiúva (1836-1912) Mello Morais (1816-1882), Teixeira de
Sousa (1812-1861) e Joaquim Manoel de Macedo (1820-1882).
E seduzido pelo convívio das
letras, passou a escrever poesias e a publicá-las na Marmota Fluminense, reunindo-as posteriormente no livro: Prelúdios Poéticos (Rio, Tipografia
Americana, 1856). Esse livro, apesar de publicado no Rio e de pouco haver
expressado as nossas tradições, é considerado por alguns historiadores como o
marco inicial da literatura cearense, opinião que não é esposada por Sânzio de
Azevedo (1938), em seus Aspectos da Literatura Cearense (1982),
que prefere considerá-lo como o momento inaugural do romantismo no Ceará, o que
nos parece perfeitamente correto.
Trata-se de uma autêntica raridade
bibliográfica, que parece não ter sido compulsada pela quase totalidade dos
estudiosos da obra literária de Juvenal Galeno, com exceção apenas do já citado
Sânzio de Azevedo, que lhe dedicou um dos capitulo do livro acima referido, e
de José Aurélio Câmara (1921-1974), que a seu respeito se reporta com a
segurança de o haver compulsado.
As poesias enfeixadas nos Prelúdios Poéticos, segundo José Aurélio
Câmara, “não permitem prever ainda a lira inconformada do grande poeta social
em que se transmutaria Juvenal Galeno, e só palidamente, através de três ou
quatro composições poéticas, deixaram entrever no autor o seguro e incomparável
paisagista folclórico da vida cearense”, tratando-se, como esclarece Sânzio de
Azevedo (1982), de um livro “encharcado de lirismo, trescalando a influência
dos românticos brasileiros e franceses da época”, onde “o subjetivismo, a
tristeza, as comparações, a adjetivação, a linguagem, enfim, tudo aí remete
para a Escola de Lamartine (1790-1869)
e de Musset (1810-1857), sem a
menor sombra de dúvida”.
Vendo seu nome na capa de um livro e
já desfrutando do convívio dos principais intelectuais brasileiros, Juvenal
Galeno regressou ao Ceará em 1857, passando a sua existência a transcorrer
entre a serra de Aratanha e a cidade de Fortaleza. Ainda por esse tempo,
ingressou como alferes na Guarda Nacional e passou a se encher de amores, e de
fervores densos, por Maria da Justa, “senhora de peregrina beleza física e
moral, invejavelmente educada e rica de pecúnia”, a qual, posteriormente, com o
nome de Dona Sancha, seria por ele satirizada num dos seus folhetins publicados
no jornal A Constituição.
Maria da Justa, segundo o registro de Renato Braga,
“foi a grande paixão da mocidade do poeta. Era sua prima. Amou-a perdidamente.
Porém Maria da Justa se casou com o aristocrata Luís Seixas Corrêa, o Dom
Paio”, que o poeta tão habilmente satirizou nos seus Folhetins de Silvanus, cuja primeira edição, em livro, é de 1891. E
ainda para Renato Braga, “não foi sem motivo que Juvenal Galeno contraiu
matrimônio aos 40 anos, no dourado entardecer que preludia a velhice. Casou-se
quando se apagaram as chamas do incêndio que consumiu os bosques florentes de
seu coração de moço e fez brotar da coivara, sobre as cinzas daquele, outro
amor que lhe engrinaldaria a vida de jasmins e bem-me-queres”.
Ainda por essa época, talvez por
influência paterna, ingressou nas fileiras do Partido Liberal, em cujo jornal
passou a colaborar. Em 1858, foi eleito suplente de deputado provincial e, em
1859, tomou posse na Assembleia Provincial Cearense, oportunidade em que passou
a fazer oposição ao então Presidente da Província, João Silveira de Sousa. No Poder
Legislativo cearense, entre outras realizações, apresentou e defendeu projeto
de criação de uma Escola Prática de Agricultura, que inclusive despertou a
curiosidade da imprensa, mas que terminou não sendo levado em consideração.
Desiludido, abandonou a militância
política, passando a combater os seus desmandos e as suas irregularidades.
Entretanto, não se desligou do Partido Liberal, ao qual continuou servindo,
pelo menos até 04 de julho de 1863, data em que seu nome aparece na imprensa de
Fortaleza como integrante do diretório de referido partido, na então vila de
Maranguape.
De 1857 a 1862, segundo José Aurélio
Câmara, em “Novas Poesias de
Juvenal Galeno” (revista Aspectos, nº
02, 1968), o autor de Prelúdios Poéticos continua a escrever e a publicar
poesias ainda impregnadas de certa tonalidade romântica, assegurando-nos ainda,
citado historiador, que somente a partir de 1863 as suas poesias publicadas na
imprensa passariam a assumir forte coloração política.
Em maio de 1859, dá-se o encontro
de Juvenal Galeno com Gonçalves Dias
(1823-1864), o qual, segundo a maioria dos estudiosos, seria responsável
pela reformulação da sua maneira de poetar, uma vez que, a partir de então, a
conselho do autor de Os Timbiras
(1878), Juvenal Galeno teria passado a imprimir à sua poesia uma feição
decididamente popular, contrapondo-se à estética do romantismo, na época ainda
em pleno florescimento.
O encontro entre Juvenal Galeno e
Gonçalves Dias, ocorrido a princípio na serra de Aratanha e prolongado na cidade
de Fortaleza, é referido por alguns estudiosos da obra de Juvenal Galeno como
sendo o marco inicial da literatura cearense, o que nos parece até certo ponto
um exagero despropositado. Conta-se que Juvenal Galeno teria mostrado ao grande
poeta maranhense algumas das suas composições e este o havia aconselhado a
prosseguir no cultivo da poesia popular.
Mas Gonçalves Dias, diga-se a bem
da verdade, não chegou propriamente a provocar em Juvenal Galeno o gosto pelo
cultivo da poesia popular, isto porque o poeta cearense, desde as suas
primeiras poesias, já vinha inclinando-se a pesquisar as lendas e canções do
seu povo. Contudo, se influência realmente houve, de Gonçalves Dias sobre
Juvenal Galeno, esta talvez tenha se materializado no fato de haver Juvenal
Galeno, após o seu encontro com Gonçalves Dias, ter escrito e publicado um poema
de feição indianista, além de um punhado de poesias esparsas em que deixou
patenteados os estigmas dessa influência.
E até Dolor Barreira (1898-1967), que em conferência
histórica sobre a vida e a obra do poeta (Fortaleza, Anais da Casa de Juvenal Galeno, 1958) tentou estabelecer relação
de dependência da poética de Juvenal Galeno à criação literária de Gonçalves
Dias, terminou por ser contestado pelo ensaísta Ribeiro Simas, que, em artigo
publicado na revista Aspectos
(Fortaleza, 1977), chegou também a desfazer outros equívocos nos quais vem
incorrendo muitos estudiosos do assunto.
Assim, em face da argumentação de
Ribeiro Simas, corroborada por Sânzio de Azevedo e José Aurélio Câmara, correto
seria afirmar que Gonçalves Dias, em verdade, não concorreu para uma mudança na
maneira de poetar de Juvenal Galeno. No mínimo, é possível que tenha concorrido
com uma ou outra sugestão. Pensar o assunto de maneira diversa seria aceitar a
despersonalização desse extraordinário poeta cearense que, ao contrário de
outros escritores do seu tempo, soube muito bem pesquisar, nas contradições do
seu ambiente nativo, o material tão necessário à confecção de sua escritura
literária.
Não podemos, portanto, obscurecer que
a convivência com Gonçalves Dias foi proveitosa para Juvenal Galeno. Proveitosa
principalmente por haver difundido no gosto do poeta cearense a confirmação das
suas aptidões para trabalhar temas populares e nativistas vigentes na ambiência
telúrica de sua Província.
Gonçalves Dias, que desembarcou em Fortaleza, em 1859,
integrando a Comissão Científica de Exploração, daqui rumou com destino a
Pacatuba, aonde deve ter chegado aos 11 de maio do referido ano. Ali,
estabelece conversações com Juvenal Galeno, a quem convida a participar de um
banquete em Fortaleza, juntamente com seus companheiros de estudo. Juvenal
Galeno atendeu ao convite do amigo e, mas deixou de comparecer a uma revista do
batalhão da reserva do exército a que pertencia. Isto irritou o Comendador João
Antônio Machado (1824-1882), então
comandante superior da Guarda Nacional da Comarca de Fortaleza, que de imediato
determinou o recolhimento do subalterno à prisão.
Posto em liberdade, de logo tratou
de documentar o episódio, investindo, com audácia, contra o seu superior
hierárquico, cujo título de oficial da reserva ridiculizou no poema A Machadada, publicado em Fortaleza,
pela Tipografia Americana, de Teotônio Esteves de Almeida, em 1860, e em cujo
prefácio escreveu o seguinte: “rogo ao leitor que, ao ler esta obra, escrita
com o inocente fim de imortalizar-me, não talhe carapuças, e nem as encapele em
alguém: não, isto seria malfeito, e talvez um pecado tão grande, que nem o
Santo Padre perdoaria”. E a ironia prossegue, tanto no prefácio, quanto no
poema, no qual revela as suas idéias liberais e anarquistas, vez que conduz ao
plano do ridículo a instituição militar a que pertencia.
A Machadada revela, pela primeira vez, o sentido crítico e
contestador da sua produção literária, isto
porque Juvenal Galeno, antes de ser encarado como poeta popular, deve ser
considerado autor de uma obra de decisiva inspiração social, em cuja confecção
soube muito bem utilizar a palavra como instrumento de denúncia. É como poeta
social, pois, que ele deve ser reabilitado e posto em lugar de destaque nos
quadros da poesia brasileira. É preciso que não mais se proclame ser ele
unicamente um poeta popular, pois se assim continuarmos a entender o fenômeno
Juvenal Galeno, estaremos concorrendo para obscurecer aquela que é a face mais
expressiva de sua produção.
Nos anos de 1860, 1861 e 1862,
segundo João Clímaco Bezerra (Rio, Editora Agir, 1959), Juvenal Galeno
“colabora assiduamente” nos jornais fortalezenses Pedro II e A Constituição.
Este último periódico, entretanto, convém assinalar, com respaldo no Barão de
Studart (Para a História do Jornalismo
Cearense, 1924), somente seria fundado em 1863, pela facção dissidente do
Partido Conservador, e nele Juvenal Galeno só viria a colaborar muitos anos
depois, assinando os seus terríveis Folhetins
de Silvanus, em sua primeira versão. De tudo, entretanto, é correto afirmar
que por essa época o poeta colaborou em O
Cearense, órgão do Partido Liberal, onde aparece assinando poesias, entre
1857 e 1865, bem como na Revista Popular,
do Rio de Janeiro, onde publicou alguns de seus poemas, entre 1859 e 1861.
Nesse último ano, Juvenal Galeno
parece em público como teatrólogo, uma vez que é levada à cena, em Fortaleza, a
comédia – Quem Com Ferro Fere Com Ferro
Será Ferido, a qual, a despeito do tempo, ainda permanece inédita,
constituindo-se hoje em texto de acesso difícil, tanto que os comentadores da
obra de Galeno a ele têm se reportado apenas de oitiva. Entretanto, se o
próprio autor não a publicou, é possível que talvez a considerasse produção de
menor qualidade. Não resta dúvida, contudo, de que se trata de uma faceta nova
na criação literária do poeta, a qual, não chegou posteriormente a lhe
despertar maiores atenções.
A partir de 1861, com a publicação
do poema – Porangaba –, Galeno
torna-se poeta indianista, acentuando-se dessa forma, indiscutivelmente, a
influência de Gonçalves Dias sobre a sua obra literária. Trata-se de um poema
perfeitamente enquadrado na estética do romantismo, onde a figura do índio
ocupa posição de relevo. Aliás, essa influência indianista sobre a criação
poética de Juvenal Galeno se reflete igualmente em outras poesias de autoria do
bardo cearense, ainda hoje esparsas na imprensa de Fortaleza. E foi assim, sob
“inequívoca influência gonçalviana”, que Juvenal Galeno concebeu o poema Porangaba, “descrição em versos de uma
lenda que disse ter ouvido de um velho caboclo que escutara dos seus pais, e
este a seus maiores”. É um poema no qual aflora “o murmúrio dos rios e o
mistério das florestas, o canto dos pássaros e o rugir do jaguar, o coro dos
guerreiros selvagens e o pranto da índia amorosa, o chapinhar das igaras e o
troar dos borés, as artes dos curupiras e as sentenças de Tupã”.
Com a publicação de Lendas e Canções Populares, em 1865,
Juvenal Galeno reformula completamente o conteúdo e a estética de sua produção,
atingindo assim a sua maturidade plena de escritor, transmutando-se também no
poeta social e multidimensional que hoje todos conhecemos.
Mas esse êxito, diga-se a bem
verdade, ele o alcançou pela decisiva postura com que se houve na defesa do
povo, na concepção de uma literatura carregada de forte atmosfera ideológica,
na qual os anseios dos dominados são decantados em poemas que representam
verdadeiras legendas. Com efeito, já na nota de introdução que escreveu para as
suas Lendas e Canções Populares,
Juvenal Galeno exprimia o seguinte:
“Reproduzindo, ampliando e publicando
as lendas e canções do povo brasileiro, tive por fim representá-lo tal qual ele
é na sua vida íntima e política, ao mesmo tempo e guiando-o por entre as facções
que retalham o Império, pugnando pela liberdade e reabilitação moral da Pátria,
encarada por diversos lados, em tudo servindo-me de suas cantigas, de sua
linguagem, imagens e algumas vezes de seus próprios versos”.
“Se consegui, não sei; mas para
consegui-lo procurei primeiro que tudo conhecer o povo e com ele
identificar-me. Acompanhei-o passo a passo no seu viver, e então, nos campos e
povoados, no sertão, na praia e na montanha, ouvi e decorei seus cantos, suas queixas,
suas lendas e profecias; aprendi seus costumes e superstições; falei-lhe em
nome da Pátria e guardei dentro em mim os sentimentos de sua alma; com ele sorri
e chorei, e depois escrevi o que o povo sentia, o que cantava, o que me dizia,
o que me inspirava”.
E assim, depois de narrar a sua
peregrinação pela miséria dos desamparados, pela ambiência domiciliar dos
reduzidos à ruína pela avidez do latifúndio opressor e devorante, Juvenal
Galeno prossegue com este aliciante auto de denúncia:
“Chorei a sorte do povo, que nas
ruas, no cárcere, e por toda a parte sofria a escravidão. E vendo então que ele
ignorava seus direitos, lhes expliquei; vendo-o no sono fatal da indiferença,
despertei-o com maldições ao despotismo e hinos à liberdade, - e estimulei-o
comemorando os feitos dos mártires da Independência e de seus grandes
defensores, - preparando-o assim para a reivindicação de seus foros, para a
grande luta que um dia libertará o Brasil do jugo da prepotência, e arrancará o
povo das trevas da ignorância, e dos grilhões do arbítrio”.
Este protesto de Juvenal Galeno,
como se pode perceber claramente, hoje ainda continua plenamente atual, prova
de que, aliás, ou as estruturas sociais brasileiras não mudaram durante o
percurso de um século, ou o poeta, abraçando a chamada poesia social, fez a
decidida opção que nem as correntes literárias do seu tempo, nem as que vieram
posteriormente tiverem a coragem de reconhecer.
Com a publicação de Lendas e Canções Populares,
acrescente-se, Juvenal Galeno, consolida definitivamente a sua posição de
escritor, inscrevendo assim o seu nome como um dos momentos mais altos da
história literária do Ceará. Trata-se, em verdade, de um livro todo ele aberto
à exposição das misérias do povo e da sua humana condição, sendo no mais um
inventário costurado por um sopro de excepcional grandeza literal e
conteudística.
Entretanto, não para por aí o
registro de sua fecunda produção: nomeado Inspetor Literário da Comarca de
Fortaleza, ainda no ano de 1865, sete anos depois Juvenal Galeno daria a
público o seu livro Canções da Escola
(1871), obra que na época alcançaria a maior repercussão, sendo adotada, por
deliberação do Conselho de Instrução Pública, como matéria de uso obrigatório
nos estabelecimentos de ensino primário do Ceará.
No mais, acrescente-se que, em 1871,
Juvenal Galeno daria a público o livro de contos, intitulado Cenas Populares, com o qual revelaria a
sua vocação de retratista genuíno e costumaz. Trata-se de uma seleção de oito
trabalhos de curta ficção, reveladores, segundo Florival Seraine (In:
Cenas Populares, 3ª edição, 1969), “de um estilo que se caracteriza
especialmente pela descrição de aspectos sugestivos da natureza e da cultura
rurais”.
A esse livro, seguiu-se o inventário
Lira Cearense, editado em Fortaleza,
pela Tipografia do Comércio, em 1872. Nas páginas da Lira Cearense vibram, segundo Franklin Távora (1842-1888), “as mesmas cordas
simpáticas, às quais deve Juvenal Galeno a popularidade de que goza entre as
classes rústicas do Ceará” (In: Lendas e Cançoes Populares, Fortaleza:1892).
Para tanto, acrescenta o mesmo romancista, o autor de Canções da Escola procurou adaptar as suas poesias “ao ritmo e
toada das canções com que se deleitam os vaqueiros no campo, o agricultor
trabalhando no seu roçado, o pescador cortando as ondas em sua jangada veloz”.
Em 19 de maio de 1876, Juvenal Galeno
seria nomeado Juiz Municipal e de Órfãos da Câmara de Pacatuba, município onde
passaria a residir, mais precisamente após o seu casamento com Maria do Carmo
Cabral. Entretanto, mesmo domiciliado em Pacatuba, jamais deixou de participar
ativamente da vida literária de Fortaleza, cidade aonde viria a fixar
residência definitiva, a partir de 1887. Por esse período, esclareça-se,
Juvenal Galeno emprestaria a tradição do seu nome para a criação do chamado
Clube Literário, sendo, aos 04 de março de 1887, um dos responsáveis pela
fundação do Instituto do Ceará.
E fixando residência em Fortaleza,
principalmente a partir de 1887, Juvenal Galeno passaria a participar mais
intensamente do epicentro da vida cultural do Ceará. Fazendo-se, na sua
Província, um dos arautos da campanha abolicionista, cuidou igualmente de
alargar, através da imprensa, a sua inconfundível expressão de escritor
insubmisso e popular.
Designado Diretor da Biblioteca
Pública de Fortaleza, em 1889, nesse cargo permaneceria até 1908, quando foi
aposentado por força da cegueira que o surpreendeu, deixando-o pelo resto da
vida a meditar os segredos da sabedoria popular que, desde a juventude, aprendeu
a pesquisar. Desse profundo recolhimento de Juvenal Galeno, resultariam os livros
Medicina Caseira e Cantigas Populares, que somente seriam
editados em 1969, mais de três décadas após o falecimento do poeta, ocorrido em
Fortaleza, aos 07 de março de 1931.
Em 1891, Juvenal Galeno daria a
público o seu terrível livro de sátiras sociais e políticas, intitulado Folhetins de Silvanus, cujo conteúdo o
situaria em posição de confronto perante a mais refinada sociedade de
Fortaleza. Em 1894, dando prosseguimento a seu processo de agitação cultural,
veria o seu nome entre os fundadores do Centro Literário, agremiação da qual se
desligaria para, aos 27 de setembro de 1896, receber o diploma de Padeiro-Mor
da Padaria Espiritual, instituição que na última década do século dezenove
alcançou a maior repercussão, principalmente pelo achincalhamento dos valores burgueses
que registrou em seus estatutos.
Por essa época, o nome de Juvenal
Galeno já se achava inscrito nas páginas da literatura cearense, sendo
incorporado também ao patrimônio mais vivo da tradição folclórica do Brasil.
Experimentando, ainda em vida, a consagração que nenhum outro escritor cearense
conheceu, duas décadas após a sua morte Juvenal Galeno seria proclamado Patrono
dos Operários do Ceará, prova de que, aliás, no meio do povo o seu discurso
encontrou a melhor dimensão, projetando-o definitivamente como um poeta de fala
revolucionária e singular.
Em verdade, Juvenal Galeno fez da
sua tarefa de poeta do povo o apostolado maior de sua devoção. Mesmo relegado à
incompreensão do ambiente provinciano, soube ele extrair das contradições
sociais de sua Província nativa o pano de fundo imprescindivelmente necessário
à tessitura do seu projeto literário, sendo todo ele recortado por um sopro de
criatividade e indignação.
Depois de Juvenal Galeno, é correto
afirmar, nenhum outro momento da poesia cearense foi assim tão comprometido com
as desgraças e os infortúnios das maiorias espoliadas pela estratificação das
posturas burguesas. Nenhum outro escritor cearense, de forma tão persistente e
resoluta, foi mais longe do que Juvenal Galeno na tentativa de restaurar as
verdadeiras bases sociais da nossa tão decantada literatura, nem, por outro
lado, conseguiu ultrapassar o conteúdo revolucionário da sua projeção de
escritor, mesmo porque, conforme advertência de Renato Braga “Juvenal Galeno é único na literatura
cearense”. E como único é possível que não venha a ser repetido.
Excelente matéria! Parabéns!
ResponderExcluirLucineide Souto, grato
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