sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Revisão de Juvenal Galeno


                 Dimas Macedo
 
                             
 
          “Ainda não se fez com a devida profundidade o estudo crítico, de corpo inteiro, da personalidade de Juvenal Galeno (1836-1931) como poeta e escritor. Há a seu respeito uma bibliografia bastante grande, mas de natureza partitiva. Apreciaram algumas faces de cristal, mas a gema não foi aquilatada em seu conjunto. É um tema a desafiar a argúcia de crítico novo, voltado para as coisas brasileiras, e bem poderia servir de motivo a uma tese de doutoramento u licenciatura em uma das nossas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras. Fica aqui a lembrança e espero que ela não caia no vazio”.
           Com estas palavras, o conhecido historiador cearense Renato Braga (1905-1968) encerrou a introdução que, em 1969, escreveu para a 2ª edição dos Folhetins de Silvanus (1891), de Juvenal Galeno. São palavras que, a despeito do tempo, continuam no gozo de sua eficácia, mesmo em que pese a algumas iniciativas mais ou menos ousadas de quase uma dezena de estudiosos que posteriormente enveredaram pelo assunto.
            Entretanto, se a empresa não foi até hoje realizada, com eram de se esperar, isto decorre, possivelmente, da complexidade da obra de Juvenal Galeno que, ao contrário do que comumente se pensa, ostenta mais variada faceta. Além de poeta de inspiração social, Juvenal Galeno foi contista e teatrólogo. A ele são atribuídos os títulos de Criador da Poesia Popular (Freitas Nobre, 1943) e Pioneiro do Folclore no Nordeste do Brasil (F. A. de Andrade, 1949), mas até hoje os comentadores de sua obra não souberam ou não quiseram nela divisar uma literatura de antecipação que, na condição de vanguarda, se contrapôs à aristocracia fundiária e à ideologia burguesa vigentes no tempo e no espaço em que foi produzida.
           Juvenal Galeno não foi unicamente o poeta popular e ingênuo de “Cajueiro Pequenino” e de outros poemas que todos nós conhecemos. Vivendo em pleno apogeu do romantismo, lógico seria que ele viesse a assimilar algumas influências da atmosfera romântica. Mas dessas influências estéticas ele se libertaria, para, conscientemente, no plano das ideias, executar o mapeamento literário das contradições políticas e sócioeconômicas da sociedade na qual vivenciou o seu processo de inquietação.
            Quem se der ao trabalho de velejar por sua obra, nela não deve buscar unicamente o sentido popular do qual, em verdade, encontra-se toda revestida. Pelo contrário. A obra de Juvenal Galeno deve ser vista dentro do contexto social, político e econômico no qual foi concebida, isto para que assim possamos aquilatar o quanto ela representa para a história da literatura brasileira e, em particular, para a história da literatura cearense.
           Nesta pequena contribuição que oferecemos à compreensão da personalidade e da obra de Juvenal Galeno, preferimos enveredar por uma ligeira revisão biográfica do poeta, exatamente neste ano de 1986, em que se comemora o sesquicentenário do seu nascimento, buscando com isso, em primeiro lugar, tatear as condições nas quais o poeta elaborou as suas manifestações, para, somente ao depois, em futura investigação, penetrar na sua produção literária, a qual, aliás, continua a merecer trabalho de melhor concentração, impossível de ser levado a efeito num pronunciamento transitório como é o presente.
            Neto, pelo lado materno, do português Manoel José Teófilo e de Dona Maria Samico Teófilo e, pelo lado paterno, de Josefa Rodrigues da Silva e de Albano das Costa dos Anjos, nasceu Juvenal Galeno da Costa e Silva na cidade de Fortaleza, Ceará, aos 27 de setembro de 1836. Foram seus pais os abastados agricultores José Antônio da Costa e Dona Maria do Carmo Teófilo e Silva. Ligando-se, por laços de parentesco, às mais expressivas elites culturais do Estado, era ele, pelo lado paterno, primo do historiador Capistrano de Abreu (1853-1927), e, pelo lado materno, dos escritores Clóvis Beviláqua (1859-1944) e Rodolfo Marcos Teófilo (1853-1932).
            No Sítio Boa Vista, de propriedade de sua família, localizado na serra da Aratanha, transcorreu parte de sua meninice. Ali, segundo Manoel Albano Amora (Pacatuba – Geografia Sentimental, 1972), “O menino Juvenal foi contemporâneo de fatos muitos antigos, observador de costumes, auditor de estórias, integrante de blocos infantis da manja na sua montanha verde e florida. A apanha do café, as festas dos apanhadores, a abertura de roçados, a vida dos campônios, a escuta de lendas transmitidas pelos caboclos nos alpendres da casa em noites sombrias tiveram sempre os seus olhos e ouvidos como elementos receptivos. As paisagens, as coisas, os acontecimentos e até as narrativas de cenas imaginárias ficaram-lhe na alma e haveriam de esplender em versos”.
            Para o Sítio Boa Vista, foi conduzido ainda aos três meses de nascido, mas ali, como quer Mont’alverne Frota (Entre o Timbira e o Pastor Serrano, 1978), já chega “com a visão dos verdes mares de Fortaleza e das Jangadas e barcos do Aracati. Cedo, torna-se bom serrano empolgado com o amanho da terra, com os folguedos, com a ceifa, com a vida rural, com a paisagem da montanha, das quebradas, dos regatos e com o drama dos pescadores de que iria ser o mais famoso cantor cearense”. E prossegue Mont’alverne Frota: “o vate da Aratanha recolheu para a sua arte a cobiça do caricato, as eleições fraudulentas, o arbítrio dos potentados, dando-nos o grande painel da vida social do sertão, da praia e da serra”.
            Em 1846, como ensina João Clímaco Bezerra (1913-2006), no seu imprescindível Juvenal Galeno (Rio, Editora Agir, 1959), encontrava-se o grande bardo cearense matriculado numa escola primária de Pacatuba, onde realizou o aprendizado de algumas letras. Com o pai, é possível que tenha assimilado alguns rudimentos de latim, o suficiente, contudo, para habilitar-se no conhecimento de outras disciplinas que mais tarde cursaria no Liceu do Ceará.
             A outra parte da infância viveu-a o poeta na cidade de Fortaleza, onde foi aluno de latim do Cônego Antônio Nogueira Braveza (1807-1881), e onde, aos 26 de novembro de 1849, mal ainda havendo despertado para a adolescência, fundou o jornal Sempre Viva, destinado à leitura do sexo feminino.
           Com treze anos de idade, apenas, na oportunidade em que fez circular o primeiro número do referido jornal, coerente seria esperar que o empreendimento edificado por Juvenal Galeno não lograsse maiores resultados, mesmo porque, vivendo ainda sob a tutela dos pais, no ano seguinte estes o destinariam a acompanhar o tio Marcos José Teófilo (1821-1864) até a cidade de Aracati, localidade onde o pai do futuro romancista Rodolfo Teófilo passaria a exercer a Medicina, mais precisamente na direção da farmácia de propriedade do comerciante José Teixeira de Castro.
             A mudança para a cidade de Aracati, como assegura o Barão de Studart (1856-1938), no Dicionário Bio-bibliográfico Cearense (1913), não chegou a lhe prejudicar os estudos, porquanto ali existia uma Escola Pública destinada ao ensino de latim, regida pelo prof. Porfírio Sérgio de Saboia (1826-1904), estabelecimento no qual se matriculou o menino Juvenal Galeno, passando a ter como colegas de turma os futuros sacerdotes Leôncio Cândido do Carmo Chaves (1834-1862), Clicério da Costa Lobo (1839-1916) e Antônio Saboia de Sá Leitão (1842-).
              Ainda em Aracati, ao tempo que frequentava as aulas do Professor Sabóia, o menino Juvenal Galeno cuidava igualmente de ouvir as lições de outro contemporâneo de adolescência – Manoel do Rego Medeiros (1829-1866), o qual, de futuro, viria a assentar o seu nome na história eclesiástica de Pernambuco, como regente da Mitra Arquidiocesana de Olinda e Recife.
           Contudo, pouco tempo ali demorou, pois já em 1853 encontrava-se matriculado no Curso de Filosofia do Liceu do Ceará, onde foi colega de Joaquim de Oliveira Catunda (1834-1907), futuro Senador da República e autor dos Estudos de História do Ceará (1886), um dos clássicos da historiografia cearense. Com referido escritor, fundou e fez circular em Fortaleza o jornal Mocidade Cearense, também de efêmera duração, em vista principalmente da transferência de Catunda para o Rio de Janeiro ainda em meados de 1953.
            E tendo realizado alguns preparatórios no Liceu, entre eles, os clássicos exames de humanidades, retornou para o sítio Boa Vista, ali se envolvendo, por algum tempo, com as atividades agrícolas. O pai, que queria vê-lo seu substituto na gerência de suas propriedades, tudo faz para torná-lo íntimo do ambiente rural, procurando nele difundir o gosto pelas vantagens advindas da cultura cafeeira, isto “numa época em que o café assumia expressiva importância na economia cearense”.
            Mas o ambiente rural não o seduziu com as benesses do latifúndio, antes nele despertou profundas reflexões em torno das disparidades econômicas verificadas no seio da sociedade rural, o que serviu para irritar ainda mais o seu discernimento. Por essa época, atendendo aos apelos do pai, e não obtendo consentimento deste, como quer a maioria dos seus biógrafos, seguiu para o Rio de Janeiro, não propriamente com o fim de desfrutar os encantos da Capital do Império, mas objetivando, entre outras coisas, adquirir maiores conhecimentos sobre a cultura do café no Vale do Paraíba.
            No Rio, como adianta João Clímaco Bezerra, na fonte atrás mencionada (1959), o poeta desembarcou em 1855, trazendo na bagagem carta de recomendação de Rufino José de Almeida apresentando-o a Paula Brito (1809-1861), proprietário da Marmota Fluminense. Ali Juvenal Galeno travou relações com Machado de Assis (1839-1908), então exercendo as funções de tipógrafo, bem como com Quintino Bocaiúva (1836-1912) Mello Morais (1816-1882), Teixeira de Sousa (1812-1861) e Joaquim Manoel de Macedo (1820-1882).  
             E seduzido pelo convívio das letras, passou a escrever poesias e a publicá-las na Marmota Fluminense, reunindo-as posteriormente no livro: Prelúdios Poéticos (Rio, Tipografia Americana, 1856). Esse livro, apesar de publicado no Rio e de pouco haver expressado as nossas tradições, é considerado por alguns historiadores como o marco inicial da literatura cearense, opinião que não é esposada por Sânzio de Azevedo (1938), em seus Aspectos da Literatura Cearense (1982), que prefere considerá-lo como o momento inaugural do romantismo no Ceará, o que nos parece perfeitamente correto.
            Trata-se de uma autêntica raridade bibliográfica, que parece não ter sido compulsada pela quase totalidade dos estudiosos da obra literária de Juvenal Galeno, com exceção apenas do já citado Sânzio de Azevedo, que lhe dedicou um dos capitulo do livro acima referido, e de José Aurélio Câmara (1921-1974), que a seu respeito se reporta com a segurança de o haver compulsado.
            As poesias enfeixadas nos Prelúdios Poéticos, segundo José Aurélio Câmara, “não permitem prever ainda a lira inconformada do grande poeta social em que se transmutaria Juvenal Galeno, e só palidamente, através de três ou quatro composições poéticas, deixaram entrever no autor o seguro e incomparável paisagista folclórico da vida cearense”, tratando-se, como esclarece Sânzio de Azevedo (1982), de um livro “encharcado de lirismo, trescalando a influência dos românticos brasileiros e franceses da época”, onde “o subjetivismo, a tristeza, as comparações, a adjetivação, a linguagem, enfim, tudo aí remete para a Escola de Lamartine (1790-1869) e de Musset (1810-1857), sem a menor sombra de dúvida”.
          Vendo seu nome na capa de um livro e já desfrutando do convívio dos principais intelectuais brasileiros, Juvenal Galeno regressou ao Ceará em 1857, passando a sua existência a transcorrer entre a serra de Aratanha e a cidade de Fortaleza. Ainda por esse tempo, ingressou como alferes na Guarda Nacional e passou a se encher de amores, e de fervores densos, por Maria da Justa, “senhora de peregrina beleza física e moral, invejavelmente educada e rica de pecúnia”, a qual, posteriormente, com o nome de Dona Sancha, seria por ele satirizada num dos seus folhetins publicados no jornal A Constituição.
            Maria da Justa, segundo o registro de Renato Braga, “foi a grande paixão da mocidade do poeta. Era sua prima. Amou-a perdidamente. Porém Maria da Justa se casou com o aristocrata Luís Seixas Corrêa, o Dom Paio”, que o poeta tão habilmente satirizou nos seus Folhetins de Silvanus, cuja primeira edição, em livro, é de 1891. E ainda para Renato Braga, “não foi sem motivo que Juvenal Galeno contraiu matrimônio aos 40 anos, no dourado entardecer que preludia a velhice. Casou-se quando se apagaram as chamas do incêndio que consumiu os bosques florentes de seu coração de moço e fez brotar da coivara, sobre as cinzas daquele, outro amor que lhe engrinaldaria a vida de jasmins e bem-me-queres”.
            Ainda por essa época, talvez por influência paterna, ingressou nas fileiras do Partido Liberal, em cujo jornal passou a colaborar. Em 1858, foi eleito suplente de deputado provincial e, em 1859, tomou posse na Assembleia Provincial Cearense, oportunidade em que passou a fazer oposição ao então Presidente da Província, João Silveira de Sousa. No Poder Legislativo cearense, entre outras realizações, apresentou e defendeu projeto de criação de uma Escola Prática de Agricultura, que inclusive despertou a curiosidade da imprensa, mas que terminou não sendo levado em consideração.
           Desiludido, abandonou a militância política, passando a combater os seus desmandos e as suas irregularidades. Entretanto, não se desligou do Partido Liberal, ao qual continuou servindo, pelo menos até 04 de julho de 1863, data em que seu nome aparece na imprensa de Fortaleza como integrante do diretório de referido partido, na então vila de Maranguape.
           De 1857 a 1862, segundo José Aurélio Câmara, em “Novas Poesias de Juvenal Galeno” (revista Aspectos, nº 02, 1968), o autor de Prelúdios Poéticos continua a escrever e a publicar poesias ainda impregnadas de certa tonalidade romântica, assegurando-nos ainda, citado historiador, que somente a partir de 1863 as suas poesias publicadas na imprensa passariam a assumir forte coloração política.
            Em maio de 1859, dá-se o encontro de Juvenal Galeno com Gonçalves Dias (1823-1864), o qual, segundo a maioria dos estudiosos, seria responsável pela reformulação da sua maneira de poetar, uma vez que, a partir de então, a conselho do autor de Os Timbiras (1878), Juvenal Galeno teria passado a imprimir à sua poesia uma feição decididamente popular, contrapondo-se à estética do romantismo, na época ainda em pleno florescimento.
           O encontro entre Juvenal Galeno e Gonçalves Dias, ocorrido a princípio na serra de Aratanha e prolongado na cidade de Fortaleza, é referido por alguns estudiosos da obra de Juvenal Galeno como sendo o marco inicial da literatura cearense, o que nos parece até certo ponto um exagero despropositado. Conta-se que Juvenal Galeno teria mostrado ao grande poeta maranhense algumas das suas composições e este o havia aconselhado a prosseguir no cultivo da poesia popular.
            Mas Gonçalves Dias, diga-se a bem da verdade, não chegou propriamente a provocar em Juvenal Galeno o gosto pelo cultivo da poesia popular, isto porque o poeta cearense, desde as suas primeiras poesias, já vinha inclinando-se a pesquisar as lendas e canções do seu povo. Contudo, se influência realmente houve, de Gonçalves Dias sobre Juvenal Galeno, esta talvez tenha se materializado no fato de haver Juvenal Galeno, após o seu encontro com Gonçalves Dias, ter escrito e publicado um poema de feição indianista, além de um punhado de poesias esparsas em que deixou patenteados os estigmas dessa influência.
            E até Dolor Barreira (1898-1967), que em conferência histórica sobre a vida e a obra do poeta (Fortaleza, Anais da Casa de Juvenal Galeno, 1958) tentou estabelecer relação de dependência da poética de Juvenal Galeno à criação literária de Gonçalves Dias, terminou por ser contestado pelo ensaísta Ribeiro Simas, que, em artigo publicado na revista Aspectos (Fortaleza, 1977), chegou também a desfazer outros equívocos nos quais vem incorrendo muitos estudiosos do assunto.
            Assim, em face da argumentação de Ribeiro Simas, corroborada por Sânzio de Azevedo e José Aurélio Câmara, correto seria afirmar que Gonçalves Dias, em verdade, não concorreu para uma mudança na maneira de poetar de Juvenal Galeno. No mínimo, é possível que tenha concorrido com uma ou outra sugestão. Pensar o assunto de maneira diversa seria aceitar a despersonalização desse extraordinário poeta cearense que, ao contrário de outros escritores do seu tempo, soube muito bem pesquisar, nas contradições do seu ambiente nativo, o material tão necessário à confecção de sua escritura literária.
             Não podemos, portanto, obscurecer que a convivência com Gonçalves Dias foi proveitosa para Juvenal Galeno. Proveitosa principalmente por haver difundido no gosto do poeta cearense a confirmação das suas aptidões para trabalhar temas populares e nativistas vigentes na ambiência telúrica de sua Província.
             Gonçalves Dias, que desembarcou em Fortaleza, em 1859, integrando a Comissão Científica de Exploração, daqui rumou com destino a Pacatuba, aonde deve ter chegado aos 11 de maio do referido ano. Ali, estabelece conversações com Juvenal Galeno, a quem convida a participar de um banquete em Fortaleza, juntamente com seus companheiros de estudo. Juvenal Galeno atendeu ao convite do amigo e, mas deixou de comparecer a uma revista do batalhão da reserva do exército a que pertencia. Isto irritou o Comendador João Antônio Machado (1824-1882), então comandante superior da Guarda Nacional da Comarca de Fortaleza, que de imediato determinou o recolhimento do subalterno à prisão.
           Posto em liberdade, de logo tratou de documentar o episódio, investindo, com audácia, contra o seu superior hierárquico, cujo título de oficial da reserva ridiculizou no poema A Machadada, publicado em Fortaleza, pela Tipografia Americana, de Teotônio Esteves de Almeida, em 1860, e em cujo prefácio escreveu o seguinte: “rogo ao leitor que, ao ler esta obra, escrita com o inocente fim de imortalizar-me, não talhe carapuças, e nem as encapele em alguém: não, isto seria malfeito, e talvez um pecado tão grande, que nem o Santo Padre perdoaria”. E a ironia prossegue, tanto no prefácio, quanto no poema, no qual revela as suas idéias liberais e anarquistas, vez que conduz ao plano do ridículo a instituição militar a que pertencia.
            A Machadada revela, pela primeira vez, o sentido crítico e contestador da sua produção literária, isto porque Juvenal Galeno, antes de ser encarado como poeta popular, deve ser considerado autor de uma obra de decisiva inspiração social, em cuja confecção soube muito bem utilizar a palavra como instrumento de denúncia. É como poeta social, pois, que ele deve ser reabilitado e posto em lugar de destaque nos quadros da poesia brasileira. É preciso que não mais se proclame ser ele unicamente um poeta popular, pois se assim continuarmos a entender o fenômeno Juvenal Galeno, estaremos concorrendo para obscurecer aquela que é a face mais expressiva de sua produção.
            Nos anos de 1860, 1861 e 1862, segundo João Clímaco Bezerra (Rio, Editora Agir, 1959), Juvenal Galeno “colabora assiduamente” nos jornais fortalezenses Pedro II e A Constituição. Este último periódico, entretanto, convém assinalar, com respaldo no Barão de Studart (Para a História do Jornalismo Cearense, 1924), somente seria fundado em 1863, pela facção dissidente do Partido Conservador, e nele Juvenal Galeno só viria a colaborar muitos anos depois, assinando os seus terríveis Folhetins de Silvanus, em sua primeira versão. De tudo, entretanto, é correto afirmar que por essa época o poeta colaborou em O Cearense, órgão do Partido Liberal, onde aparece assinando poesias, entre 1857 e 1865, bem como na Revista Popular, do Rio de Janeiro, onde publicou alguns de seus poemas, entre 1859 e 1861.
             Nesse último ano, Juvenal Galeno parece em público como teatrólogo, uma vez que é levada à cena, em Fortaleza, a comédia – Quem Com Ferro Fere Com Ferro Será Ferido, a qual, a despeito do tempo, ainda permanece inédita, constituindo-se hoje em texto de acesso difícil, tanto que os comentadores da obra de Galeno a ele têm se reportado apenas de oitiva. Entretanto, se o próprio autor não a publicou, é possível que talvez a considerasse produção de menor qualidade. Não resta dúvida, contudo, de que se trata de uma faceta nova na criação literária do poeta, a qual, não chegou posteriormente a lhe despertar maiores atenções.
             A partir de 1861, com a publicação do poema – Porangaba –, Galeno torna-se poeta indianista, acentuando-se dessa forma, indiscutivelmente, a influência de Gonçalves Dias sobre a sua obra literária. Trata-se de um poema perfeitamente enquadrado na estética do romantismo, onde a figura do índio ocupa posição de relevo. Aliás, essa influência indianista sobre a criação poética de Juvenal Galeno se reflete igualmente em outras poesias de autoria do bardo cearense, ainda hoje esparsas na imprensa de Fortaleza. E foi assim, sob “inequívoca influência gonçalviana”, que Juvenal Galeno concebeu o poema Porangaba, “descrição em versos de uma lenda que disse ter ouvido de um velho caboclo que escutara dos seus pais, e este a seus maiores”. É um poema no qual aflora “o murmúrio dos rios e o mistério das florestas, o canto dos pássaros e o rugir do jaguar, o coro dos guerreiros selvagens e o pranto da índia amorosa, o chapinhar das igaras e o troar dos borés, as artes dos curupiras e as sentenças de Tupã”.
           Com a publicação de Lendas e Canções Populares, em 1865, Juvenal Galeno reformula completamente o conteúdo e a estética de sua produção, atingindo assim a sua maturidade plena de escritor, transmutando-se também no poeta social e multidimensional que hoje todos conhecemos.
          Mas esse êxito, diga-se a bem verdade, ele o alcançou pela decisiva postura com que se houve na defesa do povo, na concepção de uma literatura carregada de forte atmosfera ideológica, na qual os anseios dos dominados são decantados em poemas que representam verdadeiras legendas. Com efeito, já na nota de introdução que escreveu para as suas Lendas e Canções Populares, Juvenal Galeno exprimia o seguinte:
         “Reproduzindo, ampliando e publicando as lendas e canções do povo brasileiro, tive por fim representá-lo tal qual ele é na sua vida íntima e política, ao mesmo tempo e guiando-o por entre as facções que retalham o Império, pugnando pela liberdade e reabilitação moral da Pátria, encarada por diversos lados, em tudo servindo-me de suas cantigas, de sua linguagem, imagens e algumas vezes de seus próprios versos”.
            “Se consegui, não sei; mas para consegui-lo procurei primeiro que tudo conhecer o povo e com ele identificar-me. Acompanhei-o passo a passo no seu viver, e então, nos campos e povoados, no sertão, na praia e na montanha, ouvi e decorei seus cantos, suas queixas, suas lendas e profecias; aprendi seus costumes e superstições; falei-lhe em nome da Pátria e guardei dentro em mim os sentimentos de sua alma; com ele sorri e chorei, e depois escrevi o que o povo sentia, o que cantava, o que me dizia, o que me inspirava”.
            E assim, depois de narrar a sua peregrinação pela miséria dos desamparados, pela ambiência domiciliar dos reduzidos à ruína pela avidez do latifúndio opressor e devorante, Juvenal Galeno prossegue com este aliciante auto de denúncia:
            “Chorei a sorte do povo, que nas ruas, no cárcere, e por toda a parte sofria a escravidão. E vendo então que ele ignorava seus direitos, lhes expliquei; vendo-o no sono fatal da indiferença, despertei-o com maldições ao despotismo e hinos à liberdade, - e estimulei-o comemorando os feitos dos mártires da Independência e de seus grandes defensores, - preparando-o assim para a reivindicação de seus foros, para a grande luta que um dia libertará o Brasil do jugo da prepotência, e arrancará o povo das trevas da ignorância, e dos grilhões do arbítrio”.
            Este protesto de Juvenal Galeno, como se pode perceber claramente, hoje ainda continua plenamente atual, prova de que, aliás, ou as estruturas sociais brasileiras não mudaram durante o percurso de um século, ou o poeta, abraçando a chamada poesia social, fez a decidida opção que nem as correntes literárias do seu tempo, nem as que vieram posteriormente tiverem a coragem de reconhecer.
            Com a publicação de Lendas e Canções Populares, acrescente-se, Juvenal Galeno, consolida definitivamente a sua posição de escritor, inscrevendo assim o seu nome como um dos momentos mais altos da história literária do Ceará. Trata-se, em verdade, de um livro todo ele aberto à exposição das misérias do povo e da sua humana condição, sendo no mais um inventário costurado por um sopro de excepcional grandeza literal e conteudística.
            Entretanto, não para por aí o registro de sua fecunda produção: nomeado Inspetor Literário da Comarca de Fortaleza, ainda no ano de 1865, sete anos depois Juvenal Galeno daria a público o seu livro Canções da Escola (1871), obra que na época alcançaria a maior repercussão, sendo adotada, por deliberação do Conselho de Instrução Pública, como matéria de uso obrigatório nos estabelecimentos de ensino primário do Ceará.
           No mais, acrescente-se que, em 1871, Juvenal Galeno daria a público o livro de contos, intitulado Cenas Populares, com o qual revelaria a sua vocação de retratista genuíno e costumaz. Trata-se de uma seleção de oito trabalhos de curta ficção, reveladores, segundo Florival Seraine (In: Cenas Populares, 3ª edição, 1969), “de um estilo que se caracteriza especialmente pela descrição de aspectos sugestivos da natureza e da cultura rurais”.
           A esse livro, seguiu-se o inventário Lira Cearense, editado em Fortaleza, pela Tipografia do Comércio, em 1872. Nas páginas da Lira Cearense vibram, segundo Franklin Távora (1842-1888), “as mesmas cordas simpáticas, às quais deve Juvenal Galeno a popularidade de que goza entre as classes rústicas do Ceará” (In: Lendas e Cançoes Populares, Fortaleza:1892). Para tanto, acrescenta o mesmo romancista, o autor de Canções da Escola procurou adaptar as suas poesias “ao ritmo e toada das canções com que se deleitam os vaqueiros no campo, o agricultor trabalhando no seu roçado, o pescador cortando as ondas em sua jangada veloz”.
          Em 19 de maio de 1876, Juvenal Galeno seria nomeado Juiz Municipal e de Órfãos da Câmara de Pacatuba, município onde passaria a residir, mais precisamente após o seu casamento com Maria do Carmo Cabral. Entretanto, mesmo domiciliado em Pacatuba, jamais deixou de participar ativamente da vida literária de Fortaleza, cidade aonde viria a fixar residência definitiva, a partir de 1887. Por esse período, esclareça-se, Juvenal Galeno emprestaria a tradição do seu nome para a criação do chamado Clube Literário, sendo, aos 04 de março de 1887, um dos responsáveis pela fundação do Instituto do Ceará.
          E fixando residência em Fortaleza, principalmente a partir de 1887, Juvenal Galeno passaria a participar mais intensamente do epicentro da vida cultural do Ceará. Fazendo-se, na sua Província, um dos arautos da campanha abolicionista, cuidou igualmente de alargar, através da imprensa, a sua inconfundível expressão de escritor insubmisso e popular.
         Designado Diretor da Biblioteca Pública de Fortaleza, em 1889, nesse cargo permaneceria até 1908, quando foi aposentado por força da cegueira que o surpreendeu, deixando-o pelo resto da vida a meditar os segredos da sabedoria popular que, desde a juventude, aprendeu a pesquisar. Desse profundo recolhimento de Juvenal Galeno, resultariam os livros Medicina Caseira e Cantigas Populares, que somente seriam editados em 1969, mais de três décadas após o falecimento do poeta, ocorrido em Fortaleza, aos 07 de março de 1931.
           Em 1891, Juvenal Galeno daria a público o seu terrível livro de sátiras sociais e políticas, intitulado Folhetins de Silvanus, cujo conteúdo o situaria em posição de confronto perante a mais refinada sociedade de Fortaleza. Em 1894, dando prosseguimento a seu processo de agitação cultural, veria o seu nome entre os fundadores do Centro Literário, agremiação da qual se desligaria para, aos 27 de setembro de 1896, receber o diploma de Padeiro-Mor da Padaria Espiritual, instituição que na última década do século dezenove alcançou a maior repercussão, principalmente pelo achincalhamento dos valores burgueses que registrou em seus estatutos.
           Por essa época, o nome de Juvenal Galeno já se achava inscrito nas páginas da literatura cearense, sendo incorporado também ao patrimônio mais vivo da tradição folclórica do Brasil. Experimentando, ainda em vida, a consagração que nenhum outro escritor cearense conheceu, duas décadas após a sua morte Juvenal Galeno seria proclamado Patrono dos Operários do Ceará, prova de que, aliás, no meio do povo o seu discurso encontrou a melhor dimensão, projetando-o definitivamente como um poeta de fala revolucionária e singular.
             Em verdade, Juvenal Galeno fez da sua tarefa de poeta do povo o apostolado maior de sua devoção. Mesmo relegado à incompreensão do ambiente provinciano, soube ele extrair das contradições sociais de sua Província nativa o pano de fundo imprescindivelmente necessário à tessitura do seu projeto literário, sendo todo ele recortado por um sopro de criatividade e indignação.
           Depois de Juvenal Galeno, é correto afirmar, nenhum outro momento da poesia cearense foi assim tão comprometido com as desgraças e os infortúnios das maiorias espoliadas pela estratificação das posturas burguesas. Nenhum outro escritor cearense, de forma tão persistente e resoluta, foi mais longe do que Juvenal Galeno na tentativa de restaurar as verdadeiras bases sociais da nossa tão decantada literatura, nem, por outro lado, conseguiu ultrapassar o conteúdo revolucionário da sua projeção de escritor, mesmo porque, conforme advertência de Renato BragaJuvenal Galeno é único na literatura cearense”. E como único é possível que não venha a ser repetido.

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