Dimas Macedo
Meu primeiro contato com o
nome de O. G. Rego de Carvalho aconteceu
a partir da leitura da série A Nova
Literatura, de Assis Brasil. Senti, após a assimilação das palavras do autor de Deus, o Sol, Shakespeare, que me
encontrava diante de um ficcionista cuja produção eu podia deixar de conhecer.
E tão grande foi a sedução
que me proporcionou o conteúdo do seu primeiro romance – Ulisses Entre o Amor e a Morte (1953) que, a partir de então, cuidei que se tornava
imperativo conhecer o conjunto da sua produção, uma obra reconhecidamente
pequena em termos estritamente numéricos, porém imensa pela qualidade literária
que o seu discurso contém.
A leitura de Ulisses Entre o Amor e a Morte, tal como
aconteceu com Cecília Meireles, “deixou-me uma sensação de poesia misteriosa e
comovente”. E mais: da mesma forma que Lygia Fagundes Teles, eu diria que nesse
romance O. G. Rego de Carvalho, “numa linguagem simples e harmoniosa, tão
natural e, entretanto, premeditada, revelando o artesão consciente e lúcido,
numa forma, enfim, desataviada e elegante, conta-nos uma história que se
desenrola e escorre com a espontaneidade de uma água corrente”.
Assim, embevecido pela magia e
o encanto de Ulisses Entre o Amor e a
Morte, é que diligenciei no sentido da compreensão do universo metafórico
que povoa as páginas envolventes do seu torrencial – Rio Subterrâneo (1967), uma das narrativas mais vivenciais e maduras de
toda a literatura nacional.
Para Carlos Drummond de
Andrade, Rio Subterrâneo “é desses
livros que a gente não esquece”, uma vez que se trata de novela “trabalhada com
aguda consciência artística”, de cuja tessitura foi possível extrair “forte
sensação de obra acabada no que o homem tem de mais dolorido e profundo”.
Elaborada a partir de uma bem
articulada e proveitosa urdidura, Rio
Subterrâneo configura um romance possivelmente sem precedentes entre nós,
pelo que exibe em suas páginas de linguagem poética e tensão emocional no que
tange ao conflito dos seus personagens, realisticamente colhidos no outono da
sua crise existencial e afetiva e trabalhados a partir de um discurso permeado
de grande beleza e envolvência.
E passados alguns anos desse
período de encantamento inicial, tive a satisfação de assistir mais uma vez
confirmadas as minhas impressões sobre a ficção de Rego de Carvalho, a partir
da leitura dessa narrativa alucinada e empolgante, densa de traições passionais
e sentimentos complexos e ambíguos, que é o romance – Somos Todos Inocentes (Rio, Civilização Brasileira, 1971).
Em verdade, nesse terceiro e
decisivo momento da trajetória literária de Rego de Carvalho, o que propõe o
autor, de forma incisiva, é uma investigação, em profundidade, “sobre problemas
humanos que decorrem da necessidade que todos têm de se considerarem inocentes,
atirando sobre os outros as culpas pelos seus erros e frustrações”.
E nesse sentido, situa-se o
pronunciamento de Salim Miguel: “Saga da decadência, como se o mundo não fosse
um permanente fluir e tudo permanecesse estagnado, O. G. Rego de Carvalho,
misterioso e sutil, poético e torturador, conforme bem observa Francisco Miguel
de Moura, é por igual o menino Ulisses descobrindo o amor e a morte, a vida e o
sexo, em Ulisses Entre o Amor e a Morte;
o jovem confuso e indeciso na sua dubiedade diante do comportamento das duas
Dulces, de Pedrinha e de Amparo em Somos
Todos Inocentes; e o homem que amadurece no sofrimento em Rio Subterrâneo ”.
A geografia sentimental e estética
desse inquieto novelista piauiense é composta pela umidade envolvente e sombria
e pelo drama paisagístico e humano do espaço urbano de Oeiras, pelo ambiente
mórbido e solitário dos seus casarões coloniais, pela decadência dos valores
aos quais as famílias se apegam com medo de mergulhar nos subterrâneos da sua
identidade recortada pelo sopro de sucessivos abalos emocionais.
E quando isso não acontece, a
trama se desloca para as cidades de Timom ou Teresina, nas quais,
desesperadamente angustiados, Lucínio e Ulisses, os seus mais conhecidos
personagens, convivem com os seus fantasmas e a dura realidade da existência
que os rodeia, mapeando o romancista uma tormentosa geografia interior, forjada
pela ânsia da loucura, pelo apelo da morte e pelo dilema da incompreensão e do
amor.
“A atmosfera de Oeiras, já
assinalou o autor em certa ocasião, não só a história, mas também, a
sentimental, a ambiência de mistério e poesia que envolve a cidade, suas
tradições centenárias, suas igrejas barrocas, os morros que a cercam, tudo isso
criou em mim uma condição favorável à criação literária”.
Trabalhando um estilo harmonioso e suave,
decididamente aliciante e poético, O. G. Rego de Carvalho parece testemunhar que a carpintaria
com a qual prepara os seus argumentos literários é a premissa básica e
indispensável para a durabilidade da sua luminosa produção.
E
somente a partir desse estágio de maturação do seu artesanato, é que ele aceita
repartir com os seus leitores a fragilidade humana dos seus personagens e a
densidade introspectiva da sua condição de escritor e de romancista que se
projeta nas atitudes e ambiguidades dos seus fantasmas e arquétipos e que se
extrapola no desenho dos conflitos que o torturam de forma obsessiva e
infernal.
Por tudo isso, é que não me furto à tentação
de compreender, juntamente com o seu editor, que a literatura, para Orlando
Geraldo Rego de Carvalho, “nunca representou mero entretimento, mas algo de
fundamentalmente entranhado no seu espírito, uma necessidade interior imperiosa
e absorvente”. Uma atividade literária, enfim, marcada pela força da
dramaticidade e pelas tintas da luta pela expressão.
(in Ossos do Ofício:
Fortaleza, Editora Oficina, 1992).
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