Dimas Macedo
“Meus olhos ficaram cegos por
trás daquela cortina de lágrimas e de sal. Sentia apenas os címbalos do sol na
testa e, de modo difuso, a lâmina brilhante da faca sempre diante de mim.
Aquela espada incandescente corroía as pestanas e penetrava meus olhos
doloridos. Foi então que tudo vacilou. O mar trouxe um sopro espesso e ardente.
Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando chover fogo.
Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre o revólver. O gatilho cedeu,
toquei o ventre polido da coronha e foi aí, com um barulho ao mesmo tempo seco
e ensurdecedor, que tudo começou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que
destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia
sido feliz”.
O texto acima, apesar de descrever
um fato aparentemente vulgar, sem maiores implicações para a sociedade, mas
relevante, com certeza, para a sintaxe da literatura, não deixa, quando
pacientemente examinado e posto no âmbito da obra em que foi concebido, de
constituir um enigma que, ao mesmo tempo, se revela para a explicação do
compromisso e da revolta de toda uma geração de escritores, esmagada pelos
horrores da guerra e pelo determinismo de que somente a resistência poderá
subsidiar a permanência da liberdade.
Seu inspirador, o romancista
franco-argelino Albert Camus, considerado, inclusive por seus contemporâneos,
como a consciência crítica mais expressiva de sua geração, nasceu em Mondovi,
Argélia, aos 07 de novembro de 1913, e faleceu em Grand-Frossard, a caminho de
Paris, vítima de acidente automobilístico, aos 04 de janeiro de 1960, depois de
mundialmente consagrado como um dos grandes escritores franceses.
Considerado o verdadeiro profeta do
absurdo, Camus não era propriamente um filósofo, como muitos dos seus biógrafos
têm buscado insinuar, mas com certeza o escritor que até hoje melhor explicou a
filosofia do existencialismo através das páginas da literatura. É a partir da
recriação das questões mais controvertidas, banais ou insolúveis da realidade
que ele posiciona as suas observações de pensador e crítico dos preconceitos e
omissões da sociedade que burocraticamente o absorve, redistribuindo com suas
personagens as ocupações que o cotidiano lhe induziu a experimentar.
Sua produção literária encontra-se
permeada por uma densa atmosfera incandescente e simbólica, em que o uso
reiterado das metáforas, da mesma forma que serve de recurso à expansão de sua
linguagem genuinamente literária e criativa, se presta igualmente a remarcar a
sua perspicácia de escritor insubmisso até mesmo diante da sua própria
condição.
A fatalidade irrenunciável da
existência, a tensão dos contrários, o surrealismo como saída para as aporias
da questão social, a permanência das misérias, o embrutecimento do Sol, a
felicidade como um instante absurdo perdido dentro do tempo, o deslumbramento
da natureza e a morte como visão do ato tráfico que precede à liberdade,
aparecem, na obra de Albert Camus, como polos alimentadores da sua emotividade
e da sua concepção criativa.
Se para Sartre (1905-1980) a consciência da existência
determina a náusea (La Nausée, Paris,
Gallimard, 1938), em Camus a consciência precede à revolta (L´Homme Révolté, Paris, Gallimard,
1951). Aliás, é o próprio Camus quem argumenta que é preciso “manter viva a
revolta contra os limites, contra as fórmulas, porque a revolta é o próprio
movimento da vida, que não pode ser negada sem que se renuncie a viver”.
O desafio da pobreza que lhe marcou
a infância, quando o pai, impotente diante da monstruosidade da Primeira
Guerra, morreu em decorrência da batalha de Marne, “com o crânio aberto, cego e
agonizante durante uma semana”, parece lhe haver aguçado a consciência para a
percepção de que a lógica do razoável, que desencadeia os movimentos
cotidianos, configura apenas a face com a qual o absurdo busca satisfazer as
nossas evasões.
Como assinalou Horácio González (1983), com bastante propriedade, a
literatura, em Camus, será sempre “a arte do distanciamento que fará a crônica
de cada entrega”, mas tudo isso, acrescente-se, determinado pela presença
avassaladora do Sol. Aliás, como metáfora, o Sol não é apenas o mito
perceptível e indecifrável que condiciona toda a existência da personagem
Meursault, o anti-herói de O Estrangeiro
(1942), mas a energia ofuscante que impulsionará toda a inspiração literária de
Albert Camus.
Poeta do deslumbramento e da
rebeldia, já em Núpcias (1938), seu
segundo livro publicado, Albert Camus, ao descrever as seduções da primavera na
praia de Tipasa, deixa transparecer que, “daqui a pouco, quando me atirar no
meio dos absintos, a fim de que seu perfume penetre meu corpo, terei a
consciência, contra todos os preconceitos, de estar realizando uma verdade que
é a do sol e que será a da minha morte”.
Esta profecia, no campo específico
da literatura, se concretizaria, em sua plenitude, quatro anos depois, através
da publicação de sua obra máxima e da atitude obstinadamente absurda de sua
mais conhecida personagem. Envolvido voluntariamente num crime de homicídio, no
qual inapelavelmente não tinha como recusar a sua participação, Meursault, o
inesquecível narrador de O Estrangeiro,
afirma, perante um Tribunal patético, cuja encenação ele considera
perfeitamente dispensável, que, com relação ao delito que lhe é imputado, tudo
aconteceu unicamente por causa do Sol.
Aliás, em todo o percurso de O Estrangeiro, o Sol aparece como
irrecusável determinismo a condicionar todas as decisões de sua personagem
principal. Assim acontece quando “a luminosidade da estrada e do céu” provoca o
adormecimento do passageiro Meursault a caminho do sepultamento de sua mãe, e
assim também acontecerá quando, por exemplo, exatamente um dia após o mesmo
sepultamento, decide-se por um relacionamento amoroso aparentemente fútil, com
uma antiga companheira de escritório, cujas propostas de casamento lhe parecem
nada dizer, embora aceite-as com a mais sentida naturalidade.
Ainda sob o império do Sol, durante
uma semana, Meursault envolve-se com algumas ocupações cotidianas que parecem
não lhe despertar o menor interesse, serve de testemunha em favor de um vizinho
de comportamento duvidoso e dele aceita um convite para passar o próximo fim de
semana numa praia nos arredores de Argel. Na praia, acompanhado de sua antiga
companheira de escritório, mergulha nas águas salgadas, desfruta a
impetuosidade dos ventos, absorve as dádivas da natureza como se estivesse
diante da própria eternidade e, embora dispondo de um tempo correspondente a
apenas algumas horas de uma ensolarada manhã, como narrador transmite a certeza
de estar vivenciando plenamente o sentimento de felicidade.
Mas a felicidade, para Meursault, é
apenas um instante absurdo, resultante, tal como o tempo, da eclosão do Sol
sobre a areia, num momento que se faz presente, mas que, ao mesmo tempo, é
sinônimo de fatalidade e determinação. Então, faz-se imperativo que a
libertinagem e o absurdo se convertam na necessidade de restaurar a consciência
da revolta.
Dominado por essas e outras
circunstâncias, tendo inclusive a testa inflamada pelos raios do sol Meursault,
mesmo consciente de que a melhor solução é recuar, pois dar um passo à frente
ou permanecer como está lhe parecem coisas absolutamente indiferentes, prefere
se antecipar ao prolongamento da felicidade e consumar um delito, cujo
resultado, aliás, lhe parece contrário às suas pretensões.
Pelo crime, é condenado em nome do
povo francês. Mas essa expressão, para o narrador, parece bastante imprecisa,
pois muito bem podia ter sido condenado em nome do povo chinês ou do povo
alemão. E para que tudo venha a se concretizar da melhor maneira possível, só
resta ao narrador desejar que a sua execução seja presenciada por muitos
espectadores, capazes de recebê-lo proferindo palavras de ódio.
Em O Estrangeiro, abstraindo-se o enredo, de inspiração aparentemente
vulgar, com exceção, é claro, do delito que o motivou, o desenvolvimento da
narrativa, em toda a sua extensão, funciona como um discurso alegórico
propositadamente encaminhado para a instauração de uma problemática
existencial, emergente, aliás, a partir da utilização abusiva e consequente das
metáforas.
Mas no romance, o que chama a
atenção do leitor é o comportamento estranho mas ao mesmo tempo compreensível
do seu narrador. Jamais escritor algum, tal como Albert Camus, manipulando
apenas o comportamento de uma personagem, foi tão longe na tentativa de
explicar os abismos do absurdo existencial e a significação metafórica da
própria existência.
Entretanto, a grandeza maior desse
escritor argelino, Prêmio Nobel de Literatura de 1957, não reside unicamente no
fato de ter sido ele criador de uma das mais controvertidas personagens da
literatura francesa, propositadamente colocada à margem do sentimento e da
tradição, mas na circunstância de ser ele autor, igualmente, de uma obra tomada
como o despertar da consciência de uma geração.
É através da crítica de valores que
Albert Camus mergulha na decifração do absurdo existencial. É pela tentativa de
compreensão do homem revoltado que ele nos ensina a instaurar a nossa própria
revolta, tão necessária quanto à preservação da consciência de que resistir e
viver nem sempre representa um compromisso com os descaminhos da realidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário