sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Albert Camus: 2013 - 1913



                  Dimas Macedo                               


               “Meus olhos ficaram cegos por trás daquela cortina de lágrimas e de sal. Sentia apenas os címbalos do sol na testa e, de modo difuso, a lâmina brilhante da faca sempre diante de mim. Aquela espada incandescente corroía as pestanas e penetrava meus olhos doloridos. Foi então que tudo vacilou. O mar trouxe um sopro espesso e ardente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando chover fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre o revólver. O gatilho cedeu, toquei o ventre polido da coronha e foi aí, com um barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo começou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz”.

             O texto acima, apesar de descrever um fato aparentemente vulgar, sem maiores implicações para a sociedade, mas relevante, com certeza, para a sintaxe da literatura, não deixa, quando pacientemente examinado e posto no âmbito da obra em que foi concebido, de constituir um enigma que, ao mesmo tempo, se revela para a explicação do compromisso e da revolta de toda uma geração de escritores, esmagada pelos horrores da guerra e pelo determinismo de que somente a resistência poderá subsidiar a permanência  da liberdade.

             Seu inspirador, o romancista franco-argelino Albert Camus, considerado, inclusive por seus contemporâneos, como a consciência crítica mais expressiva de sua geração, nasceu em Mondovi, Argélia, aos 07 de novembro de 1913, e faleceu em Grand-Frossard, a caminho de Paris, vítima de acidente automobilístico, aos 04 de janeiro de 1960, depois de mundialmente consagrado como um dos grandes escritores franceses.

            Considerado o verdadeiro profeta do absurdo, Camus não era propriamente um filósofo, como muitos dos seus biógrafos têm buscado insinuar, mas com certeza o escritor que até hoje melhor explicou a filosofia do existencialismo através das páginas da literatura. É a partir da recriação das questões mais controvertidas, banais ou insolúveis da realidade que ele posiciona as suas observações de pensador e crítico dos preconceitos e omissões da sociedade que burocraticamente o absorve, redistribuindo com suas personagens as ocupações que o cotidiano lhe induziu a experimentar.

           Sua produção literária encontra-se permeada por uma densa atmosfera incandescente e simbólica, em que o uso reiterado das metáforas, da mesma forma que serve de recurso à expansão de sua linguagem genuinamente literária e criativa, se presta igualmente a remarcar a sua perspicácia de escritor insubmisso até mesmo diante da sua própria condição.

            A fatalidade irrenunciável da existência, a tensão dos contrários, o surrealismo como saída para as aporias da questão social, a permanência das misérias, o embrutecimento do Sol, a felicidade como um instante absurdo perdido dentro do tempo, o deslumbramento da natureza e a morte como visão do ato tráfico que precede à liberdade, aparecem, na obra de Albert Camus, como polos alimentadores da sua emotividade e da sua concepção criativa.

            Se para Sartre (1905-1980) a consciência da existência determina a náusea (La Nausée, Paris, Gallimard, 1938), em Camus a consciência precede à revolta (L´Homme Révolté, Paris, Gallimard, 1951). Aliás, é o próprio Camus quem argumenta que é preciso “manter viva a revolta contra os limites, contra as fórmulas, porque a revolta é o próprio movimento da vida, que não pode ser negada sem que se renuncie a viver”.

            O desafio da pobreza que lhe marcou a infância, quando o pai, impotente diante da monstruosidade da Primeira Guerra, morreu em decorrência da batalha de Marne, “com o crânio aberto, cego e agonizante durante uma semana”, parece lhe haver aguçado a consciência para a percepção de que a lógica do razoável, que desencadeia os movimentos cotidianos, configura apenas a face com a qual o absurdo busca satisfazer as nossas evasões.

          Como assinalou Horácio González (1983), com bastante propriedade, a literatura, em Camus, será sempre “a arte do distanciamento que fará a crônica de cada entrega”, mas tudo isso, acrescente-se, determinado pela presença avassaladora do Sol. Aliás, como metáfora, o Sol não é apenas o mito perceptível e indecifrável que condiciona toda a existência da personagem Meursault, o anti-herói de O Estrangeiro (1942), mas a energia ofuscante que impulsionará toda a inspiração literária de Albert Camus.

           Poeta do deslumbramento e da rebeldia, já em Núpcias (1938), seu segundo livro publicado, Albert Camus, ao descrever as seduções da primavera na praia de Tipasa, deixa transparecer que, “daqui a pouco, quando me atirar no meio dos absintos, a fim de que seu perfume penetre meu corpo, terei a consciência, contra todos os preconceitos, de estar realizando uma verdade que é a do sol e que será a da minha morte”.

           Esta profecia, no campo específico da literatura, se concretizaria, em sua plenitude, quatro anos depois, através da publicação de sua obra máxima e da atitude obstinadamente absurda de sua mais conhecida personagem. Envolvido voluntariamente num crime de homicídio, no qual inapelavelmente não tinha como recusar a sua participação, Meursault, o inesquecível narrador de O Estrangeiro, afirma, perante um Tribunal patético, cuja encenação ele considera perfeitamente dispensável, que, com relação ao delito que lhe é imputado, tudo aconteceu unicamente por causa do Sol.

           Aliás, em todo o percurso de O Estrangeiro, o Sol aparece como irrecusável determinismo a condicionar todas as decisões de sua personagem principal. Assim acontece quando “a luminosidade da estrada e do céu” provoca o adormecimento do passageiro Meursault a caminho do sepultamento de sua mãe, e assim também acontecerá quando, por exemplo, exatamente um dia após o mesmo sepultamento, decide-se por um relacionamento amoroso aparentemente fútil, com uma antiga companheira de escritório, cujas propostas de casamento lhe parecem nada dizer, embora aceite-as com a mais sentida naturalidade.

            Ainda sob o império do Sol, durante uma semana, Meursault envolve-se com algumas ocupações cotidianas que parecem não lhe despertar o menor interesse, serve de testemunha em favor de um vizinho de comportamento duvidoso e dele aceita um convite para passar o próximo fim de semana numa praia nos arredores de Argel. Na praia, acompanhado de sua antiga companheira de escritório, mergulha nas águas salgadas, desfruta a impetuosidade dos ventos, absorve as dádivas da natureza como se estivesse diante da própria eternidade e, embora dispondo de um tempo correspondente a apenas algumas horas de uma ensolarada manhã, como narrador transmite a certeza de estar vivenciando plenamente o sentimento de felicidade.

            Mas a felicidade, para Meursault, é apenas um instante absurdo, resultante, tal como o tempo, da eclosão do Sol sobre a areia, num momento que se faz presente, mas que, ao mesmo tempo, é sinônimo de fatalidade e determinação. Então, faz-se imperativo que a libertinagem e o absurdo se convertam na necessidade de restaurar a consciência da revolta.

            Dominado por essas e outras circunstâncias, tendo inclusive a testa inflamada pelos raios do sol Meursault, mesmo consciente de que a melhor solução é recuar, pois dar um passo à frente ou permanecer como está lhe parecem coisas absolutamente indiferentes, prefere se antecipar ao prolongamento da felicidade e consumar um delito, cujo resultado, aliás, lhe parece contrário às suas pretensões.

            Pelo crime, é condenado em nome do povo francês. Mas essa expressão, para o narrador, parece bastante imprecisa, pois muito bem podia ter sido condenado em nome do povo chinês ou do povo alemão. E para que tudo venha a se concretizar da melhor maneira possível, só resta ao narrador desejar que a sua execução seja presenciada por muitos espectadores, capazes de recebê-lo proferindo palavras de ódio.

           Em O Estrangeiro, abstraindo-se o enredo, de inspiração aparentemente vulgar, com exceção, é claro, do delito que o motivou, o desenvolvimento da narrativa, em toda a sua extensão, funciona como um discurso alegórico propositadamente encaminhado para a instauração de uma problemática existencial, emergente, aliás, a partir da utilização abusiva e consequente das metáforas.

            Mas no romance, o que chama a atenção do leitor é o comportamento estranho mas ao mesmo tempo compreensível do seu narrador. Jamais escritor algum, tal como Albert Camus, manipulando apenas o comportamento de uma personagem, foi tão longe na tentativa de explicar os abismos do absurdo existencial e a significação metafórica da própria existência.

            Entretanto, a grandeza maior desse escritor argelino, Prêmio Nobel de Literatura de 1957, não reside unicamente no fato de ter sido ele criador de uma das mais controvertidas personagens da literatura francesa, propositadamente colocada à margem do sentimento e da tradição, mas na circunstância de ser ele autor, igualmente, de uma obra tomada como o despertar da consciência de uma geração.

            É através da crítica de valores que Albert Camus mergulha na decifração do absurdo existencial. É pela tentativa de compreensão do homem revoltado que ele nos ensina a instaurar a nossa própria revolta, tão necessária quanto à preservação da consciência de que resistir e viver nem sempre representa um compromisso com os descaminhos da realidade.

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