Como não sou um teórico da cultura nem estudioso da
filosofia da linguagem, creio que não posso falar de Marcia Tiburi enquanto
ensaísta e pensadora. Sei que se trata de uma mente poderosa, de uma
personalidade inquieta e fascinante e de uma romancista que é “uma absoluta
novidade em nossa ficção”.
Assim, nesta resenha breve sobre a
sua estreia na literatura, fico tão-somente com os valores simbólicos do seu
texto, com a estética da sua escritura inquietante, com os acertos e achados da
sua construção estilística e com a semântica madura da sua ficção assustadora.
O sopro novo da inventividade está
no seu texto como em nenhum outro momento da literatura brasileira. Ela é o que
se pode chamar de uma romancista pós-moderna, pois sabe que a ordem e os
sentidos paradigmáticos da modernidade perderam o seu lugar entre os
empreendimentos da cultura.
Desde a construção poética de
Rimbaud e Baudelaire, passando pelas ousadias formais de Joyce e de Cortázar,
pelo refinamento estético da poesia de tradição moderna, a literatura tem sido
o estuário, a fusão e a síntese de todos os signos da cultura. Recuperou,
portanto, o seu lugar na tradição e é por isto que no século vinte sempre
caminhou em compasso de vanguarda.
Corajosa, pois, a decisão de uma
filósofa – justamente uma filósofa sutil e poderosa – de assumir o seu lugar na
arte literária, quando, no geral, na história da cultura tem-se visto
justamente o contrário. De plano, todo pensador que se preza é sempre um
escritor poderoso, ainda que não seja, necessariamente, um arquiteto do campo
literário. A literatura, de forma induvidosa, é feita predominantemente com
palavras, assim como a filosofia faz-se majoritariamente com ideias.
No plano do conhecimento, talvez
com a exceção honrosa de Platão, que fundiu, maravilhosamente, a literatura com
a filosofia, é essa a tendência que se tem observado sem maiores esforços.
Às vezes as palavras não se bastam
ao campo literário, ainda que a metáfora, a fábula e a parábola se prestem a
remarcar este campo privilegiado da escrita. E, porque a palavra às vezes não se
basta a explicar o mundo, é que o símbolo é um recurso que os escritores de
talento sempre utilizam, valendo-se, no geral, da linguagem, que é um
território sempre a explorar. E é com o recurso a uma forma nova e a uma
linguagem plural e sedutora que Marcia Tiburi se dá ao trabalho de ourives
nessa sua belíssima Magnolia (Rio,
Bertrand Brasil, 2005).
O que esse seu romance compreende?
Não sei. Ainda porque saber é nomear. E nomear é desdizer os segredos do texto
literário. Existem suposições tão-somente do que seja essa ficção espantosa e
socrática. Romance? Poema? Ensaio ficcional? Aventura metalinguística? Ou uma
história que se conta por si mesma a partir de fatos e segredos que precisam
ser desvendados?
O que posso assegurar é que Magnolia é um romance uno e plural a um
só tempo. Um romance que se faz com o que existe de mais radical e profundo na
engenharia do ser. É também sinônimo de busca rigorosa, que se faz por
imposição da palavra e do delírio imaginativo.
Paulo Bentancur, que escreveu a
quarta-capa do livro, assegura-nos que “De suas páginas brota uma flor: a
palavra a serviço da melhor literatura, aquela que nos desampara e que, ao
mesmo tempo, nos dá uma nova face, a florescer em meio ao que já não podemos
identificar como floresta ou deserto”.
Apesar de podermos fazer
suposições sobre o enredo da história, “montada passo a passo, fato a fato, em
torno de segredos discretos e aparentes evidências”, tenho para mim que a falta
de enredo é um dos achados magistrais dessa novela curiosa.
Para invocar aqui uma expressão
de Cortázar, eu diria que Magnolia é
um modelo para armar. Um livro, portanto, que não segue o figurino ou o sistema
da moda, mas que dita a forma e o sentido de um novo signo: estético, artístico
e ontológico, pois o ser Magnolia é
uma aura a iluminar a visão de mundo do leitor. Um labirinto de espelhos ou um
espelho d’água a refletir a nossa dimensão afetiva.
Talvez fosse possível dizer que a
partir de uma ruptura dolorosa é que se dá a abertura das gavetas da
protagonista, que simboliza a abertura das gavetas de cada um de nós. Aliás,
como assegura Fabrício Carpinejar, num texto de muita lucidez que repousa nas
orelhas do livro, “neste romance estranho, fantástico e pessoal de Marcia
Tiburi, limpar as gavetas é o detonar de uma crise sem volta”. E é. Uma crise
que leva também o leitor à exaustão e ao reencontro maduro com sua identidade.
Nas orelhas do romance, existe uma
alusão de que o livro, a partir da conformação e do sofrimento interior das
personagens – a anônima Magnolia e o desenhista André –, faz a evocação das
tragédias gregas. Não duvido. E acrescento, ademais, que o sentido essencial de
Magnolia é a cosmovisão de todo o
sofrimento imposto pela cultura pós-moderna: o mal-estar, o dilaceramento do
sujeito, a fragmentação da esperança, o esgotamento de todas as energias
corporais que cedem lugar à coisificação do afeto e ao fetiche da mercadoria.
O romance, do ponto de vista da
psicanálise, talvez possa ser visto como um documento gestáltico. Desconhecer,
no entanto, a sua contestação frontal à normose ou à paranoia da normalidade
seria tão imaturo quanto desconhecer que este romance é uma aventura com a
linguagem, que não se satisfaz apenas com o recurso da palavra e que faz de um
signo da cultura, do nome de uma flor e da sua beleza um enigma que nunca se
decifra.
O que se pode dizer de Magnolia, no mínimo, é que se trata de
um livro instigante. Livro em que os nomes e os seres “fecundam-se mutuamente à
espera de realidades que ainda não nasceram”. Livro germinal e visceral,
portanto, no qual cada frase e cada som integram as partituras de uma sinfonia,
a repartir e a juntar espaços e destinos, alucinações e fragmentos, desejos e
sentimentos irrealizados.
Não tenho nenhuma dúvida em
afirmar que, na literatura brasileira, não existe paralelo que se possa
contrapor a este romance-desafio. No cerne profundo do seu texto, parece-me
oportuno observar o embate entre uma língua plural que se afirma e a realidade
que se furta constantemente à nomeação. Também acho justo destacar o ritmo
poético que, em Magnolia, precede e
ordena os seus diversos extratos narrativos, resultando de tudo uma
refinadíssima linguagem literária que a todos encanta e contagia.
A montagem do texto é exemplar em Magnolia, assim como exemplar é o
conhecimento filosófico que se desprende do seu enunciado. Sentenças, verdades
imortais em frases lapidadas, tempo circular, claridade, manhã, noite, tarde,
luz, escuridão. Fatos, talvez em demasia. Ou ainda a completa anulação de
Magnolia entre o peso de uma dívida, cujo pagamento sempre se adia, e a
alucinação a partir do terror noturno da insônia.
Um enigma atravessa e recorta as
páginas do romance: o voo dos insetos. Se, na história, povoam o entorno da
protagonista, no livro, eles voam diante dos olhos do leitor, enriquecem o
projeto gráfico do volume e harmonizam a belíssima e irrepreensível capa do
romance, um dos melhores objetos gráficos editados de último no Brasil.
A obra de arte literária quando se
desprende do íntimo do autor é superior ao engenho e à vontade de quem a
empreende. E é autônoma em relação ao tempo e ao espaço da sua produção. Daí
não ter importância as referências a aspectos biográficos de uma escritora de
talento quanto Marcia Tiburi.
Pede-me, no entanto, o ritual do
discurso que lhes apresente também a autora. Acho que não devo. Digo
tão-somente que Marcia Tiburi, para além das imagens, palavras e recortes
cênicos que estamos acostumados a assistir em programas de TV - como Saia Justa (da GNT) e A Bela e a Fera (da TV Futura/Unisinos)
-, é uma das principais filósofas do Brasil.
Márcia é professora de filosofia,
com doutorado e tese neste campo de pesquisa sobre a obra de Theodor Adorno. É
natural do Rio Grande do Sul. Divide-se entre São Paulo e Porto Alegre. É
artista plástica com graduação nessa área e é autora, entre outros, dos
seguintes livros: Crítica da Razão e Mímesis no Pensamento de Theodor Adorno
(1995), Uma Outra História da Razão (2003)
e Filosofia Cinza – A Melancolia (2004).
Um repasse tão-só dos títulos
referidos mostra-nos para onde a autora conduz a sua filosofia combatente: para
as águas maduras das interrogações e do sofrimento psíquico do sujeito, em
contraposição à filosofia orgânica e tradicional, de ordem espiritual, material
ou cosmológica. A filosofia, portanto, da radicalidade e dos signos culturais
cambiantes, que aponta para o legado de Nietzsche e da psicanálise e para o
niilismo institucional e acadêmico.
Magnolia é sua estreia na literatura e
abre o que a autora denominou de “trilogia íntima”. Marca, assim, o início de
uma carreira literária que já nasceu vitoriosa. Trata-se de um livro que se
impõe pela sua expressão e pelos seus valores e cuja leitura eu recomendo como
um dos momentos de melhor criação e pesquisa de vanguarda que se tem editado no
Brasil. Nele, a estética e a semântica de língua portuguesa assumem,
definitivamente, o seu lugar nos escaninhos da arte literária.
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