Zé Rainha por Audifax Rios
O menino José Ferreira da
Silva, nascido no sítio Tatu, em Lavras da Mangabeira (CE), aos 6 de junho de
1933, talvez nunca tenha pensado que um dia participaria de um cortejo, que
desfila em memória de nossos ancestrais. Menos ainda que ele seria a Rainha de
uma procissão carnavalesca, como aconteceu, em março de 2011, em pleno coração
de Fortaleza.
Filho de Júlio José da Silva e de
Josefa Arruda da Silva, José perdeu o sobrenome paterno porque foi registrado
por uma tia “que não gostava muito dessa história de Silva”. O casal tinha
cinco filhos e o pai era agricultor e trabalhava nas terras do coronel Amâncio,
no sítio Tatu, mas a família residia na cidade de Lavras.
José Ferreira da Silva descende de
uma dinastia de negros criados por Dona Fideralina Augusto, para regalo da sua
condição. Hoje cultuado como figura de destaque do carnaval cearense, afirma,
ele próprio, que jamais estudou: “quando me entendi na vida, já foi para
trabalhar”.
A família veio para a Capital cearense
fugindo de uma seca, quando ele tinha entre dez e onze anos, aproximadamente. A
viagem foi de trem e todos fixaram residência em Otávio Bonfim, próximo à
Estação Ferroviária.
O pai trabalhou como vigia até a
morte, perto dos setenta anos; a mãe, “lavava roupa e cozinhava nas casas dos
ricos, quando havia banquete”. Fazia chapéus de palha, ofício que aprendeu
quando era jovem, em Lavras da Mangabeira, tendo falecido em Fortaleza, em
1993.
José Ferreira Arruda, com o nome civil já
modificado, não teve muita escolha. Deu duro para sobreviver na cidade grande:
“trabalhei como jardineiro, copeiro, babá, cozinheiro; tudo eu fiz na vida. Não
tinha como ser diferente”, dizia resignado.
Desde a juventude, porém, José
Ferreira Arruda achava os maracatus muito bonitos. Na década de 1930, mais
precisamente a partir de 1936, Raimundo Feitosa deu a sua cartada, com a
criação do maracatu Az de Ouro, que
José Ferreira Arruda tanto admirou.
Em 1963, José Ferreira Arruda
entrou para o maracatu Rei de Paus,
onde permaneceu durante vinte anos. Em 1964, o radialista José Lisboa promoveu
uma eleição no programa Fim-de-Semana na
Taba, da Rádio Iracema, para escolher a nova Rainha desse importante bloco
cearense, e José Ferreira Arruda foi o escolhido, mudando, então, o nome para
Zé Rainha.
A dimensão carnavalesca à qual Zé
Rainha pertenceu enfatiza a corte: príncipes e princesas, o Rei e a Rainha. O
rosto tingido de preto não talvez o fizesse lembrar que era descendente de uma
velha senzala cearense e que a Madrinha Fidera, isto é, Dona Fideralina
Augusto, estava na origem de tudo.
Percebendo que o maracatu de
Pernambuco não se pintava, e se vestia de forma menos pomposa, Zé Rainha
decidiu inovar, introduzindo o luxo no cortejo cearense, sobressaindo-se, na
história do carnaval, exatamente por essa inovação.
Zé Rainha, apesar da pobreza na qual sempre
viveu, não reclamava a falta de apoio oficial para a sua condição de brincante
e de Rei. Em 1962, aderiu ao cordão
Garotas do Sputinik e desfilou na escola de samba Império Ideal, num enredo em que participava um maracatu, sendo
ele, como não poderia deixar de ser, a Rainha.
Católico, devoto de Nossa Senhora
da Conceição e de São José, de quem tinha “um vulto”, Zé Rainha era categórico
ao negar a relação dos maracatus com a umbanda. Enfático, até demais, como se
fosse depreciativa essa forma de aproximação: “o povo não tem essa besteira,
não tem essa ligação”.
Falava de dois pais-de-santo que
muito admirava: Luiz de Xangô e Padrinho Zé Alberto, que eram ligados aos
maracatus e participavam das folias mominas de outrora; e costumava invocar o
famoso de Zé Tatá, uma espécie de Madame Satã, em versão cearense, e que sempre
saía de Princesa, nos velhos carnavais
de Fortaleza.
Nos seus últimos anos de vida, Zé
Rainha passou graves necessidades, morando numa espécie de cortiço, no Bairro
Jacarecanga. Condição de vida muito difícil para quem nunca contou com uma
aposentadoria: “por causa do protocolo” sendo prometido para ele “para janeiro
do ano que vem”.
E enquanto o tempo aí passando, Zé Rainha
continuou bailando, como se estivesse no ritmo de uma velha cantiga popular.
Fazia biscates, contava com a ajuda dos amigos e do pessoal do maracatu Az de Ouro; mas não fazia alarde da
miséria. Era altivo o bastante para não passar por vítima.
Como carnavalesco e ícone da
cultura popular cearense, Zé Rainha nunca parou. Sempre se preparava para o
próximo carnaval, a despeito das crises, mergulhando, de corpo e de espírito,
na maravilhosa aventura de viver a sua condição.
Somente nos idos de 2011, Zé Rainha percebeu
que tinha ao posto de Rei do Carnaval; e que Lavras da Mangabeira não tinha
produzido ninguém que a ele se pudesse igualar, pelo menos no plano da cultura.
Foi o afrodescendente que melhor representou o seu município de origem em todo
o Ceará, tendo falecido em Fortaleza, aos 28 de maio de 2011.
Boqueirão de Lavras da Mangabeira (CE),
município onde Zé Rainha nasceu.
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