Rodrigo
Marques
Escritor Rodrigo Marques
Dos livros de poemas de Dimas Macedo,
restarão, para uma posteridade ainda longe, apenas as palavras dos seus
títulos: Caos; Liturgia; Úmida; A distância; Lavoura; Vozes; Sintaxe; Silêncio;
Desejo; Codicírio e outras que a leitora acompanhará neste capítulo ou em
alguma parte perdida deste pequeno ensaio sobre o poeta de Lavras da
Mangabeira.
Dimas, um aprendiz de ermitão, é daqueles
escritores que não abdicam do espaço em branco do papel, manchando-o apenas
quando algo válido surge. Nesta espécie de meditação, os títulos também são
versos e o que vem depois deles são sombras do que está inscrito na capa. A
tradição latino-americana produziu belos títulos. Neruda, Ferreira Gullar,
Victoria Ocampo, Hilda Hilst, Octávio Paz: Arte
de pájaros, Memorial de Isla Negra,
Dentro da Noite Veloz, Tu não te moves de ti, A dupla chama; nem tudo é de poesia, mas
os títulos são. Há uma tentação de minha parte em listar mais e mais a
confirmar que no fundo todo escrito sobre literatura não passa de uma lista do
que se deseja ler ou do que se gostaria de ter escrito.
É preciso conter-me, se não um a um, pelo
menos aos títulos de Dimas Macedo de que mais gosto ou daqueles que invejo com
um ódio benigno. Não vou seguir a cronologia de publicação, e é mera
coincidência aqui tratarmos do primeiro, A
distância de todas as coisas, publicado em 1987.
O título lembra igualmente o primeiro livro de
Vinícius de Moraes: O caminho para a
distância (1933). Ambos apresentam a “distância” em uma dúbia significação,
tanto no seu campo semântico natural, relacionado ao espaço, aos mapas, aos
destinos e às viagens; como numa significação temporal, de algo perdido no
tempo, que ficou para trás, como a infância ou um amor findo. Que a distância é
matéria da literatura não se discute, ela está lá nos romances de Joseph Conrad
ou no Grande Sertão de Guimarães
Rosa, também habita poemas e novelas imemoriais, como o conto do Mandarim, que
ganhou forma em português com Eça de Queiroz, e que foi tão bem comentado por
Carlos Guinzburg no seu imperdível Olhos
de Madeira – nove reflexões sobre a distância.
As distâncias de Vinícius e de Dimas é também
uma cartografia literária destes dois poetas, que em seus percursos partiram da
palavra solene para o encontro do cotidiano. Vinícius, da linguagem oracular do
seu primeiro livro, que depois adequadamente compilou com o título Sentimento do Sublime, chegou, como se
sabe, ao mais prosaico cotidiano. Suas últimas parcerias musicais nada lembram
o poeta que dizia:
Eu compreendi que a morte já estava no teu corpo
E que
era preciso fugir para não perder o único instante
Em
que foste realmente a ausência de sofrimento
Em
que realmente foste a serenidade.
Dimas foi ao encontro do cotidiano não pelo
compasso do samba, embora haja em seus versos um latente desejo de música. Sua
poesia abandonou o sentimento do sublime através das viagens mundo afora, ao
resenhar, em seus últimos livros, cidades e situações corriqueiras, como o menu de um restaurante, um quarto de
hotel, uma rua... sem falar na
estratégia de reviver a dicção popular dos seus avós, como o poeta Lobo Manso e
os cantadores anônimos do sertão, pela reinvenção da quadra. O destino é o mesmo
de Vinícius, resguardadas as paixões de cada um e a dimensão delas. De A distância de todas as coisas até Codicírio (2018), sua poesia se
distanciou do tom mais caricato da geração de 45 e se aproximou dos temas e de
uma dicção mais informal, sem aquele ar pretensioso de alguém que guarda a verdade
do mundo. Aliás, o parceiro de Garota de
Ipanema parece ser mesmo o arquétipo de poeta no Brasil, afinal, todos
ainda queremos ser Vinícius, e como ninguém consegue ser Marcus Vinícius de
Moraes, Dimas, neste início, tateava o que veria a ser Dimas Macedo, o poeta.
Sem se perder do círculo do primeiro título, o
seu complemento, “de todas as coisas”, é sintagma que qualifica filosoficamente
a distância espacial e temporal. A distância de todas as coisas, pronunciada
assim, afirma o caos e o isolamento das partes do mundo, é uma metáfora da
nossa solidão e da incapacidade de dizê-la por completo. É o mistério sem
mistério, pois no fundo só há o silêncio, e quando o rompemos fabricamos
enigmas e não soluções para a Esfinge que, incomodamente, permanece muda.
Qual a
distância de todas as coisas se não o desespero e a consciência de que nos
distanciamos de uma Unidade ou mesmo que esta Unidade nunca existiu? Se todas
as coisas se distanciar, o que sobrará, o pó, o barro esfacelado? Tal o quadro O Grito, de Edvard Munch, o título da
estreia do poeta Dimas é desolador. A imagem, na sua veste de versículo
bíblico, é ela mesma uma charada, e nos confunde e nos põe a pensar, a inquirir
se o tempo, a distância ou as coisas nos deixaram para trás ou se fomos nós mesmos
que abandonamos o chão. E como nos paradoxos pessoanos, a construção desse
verso é toda substantivada, sem a presença de verbos ou adjetivos, linguagem
primeira que sintetiza um pensamento concreto sem perder o movimento.
A verdade é que Dimas anuncia uma poesia
metafísica ou alinhada a esta tradição filosófica, e com ela, ele corre o risco
de ser místico ou ensimesmado na própria variação do seu eu. Se seus livros de
direito se apoiam no materialismo, sua poesia é idealista, mas daquele
idealismo de George Berkeley ou David Hume, questionadora dos limites da
própria metafísica e da importância da linguagem para a constituição da
realidade. Neste passo, o título Liturgia
do Caos, publicado em 1997, sugere uma cerimônia em louvor ao Caos,
destrutivo e criador.
A leitora que por ventura tomar este livro,
lerá uma espécie de missal ou hinário, e pela brevidade do volume entenderá
tratar-se apenas de um fragmento dos rituais do Caos. É uma coletânea de poemas
e pronto, e o que se vê ali são poemas breves e distantes de um culto pagão. A
sugestão é de que a poesia ela mesma tenha uma potência de Caos, pois ao mesmo
tempo que é uma linguagem que desagrega a sintaxe, a coerência e a coesão de
uma Ordem racional, cria à maneira do Deus, segundo os desejos de sua
consciência e o modo como opera as relações de causa e efeito. Caos e criação
de forma cíclica e contínua. Mas o que cria Dimas com seus poemas? Por se
tratar eminentemente de uma lírica, Dimas cria uma persona, um personagem, um
ser feito de palavras, mais do que feito de palavras, é feito de gestos, de
acentos, de uma entonação, de uma voz. Aí, acredito, reside o sentido mais
precioso da palavra liturgia neste contexto.
Uma liturgia não é só feita de palavras, senão
de gesto e música. O aspecto teatral da liturgia, sua mise en scene, compõe a formação daquela persona. É uma persona
eminentemente dramática, o sentimento é o de um poeta do final do século XIX,
cuja tradição em língua portuguesa se assenta em Cesário Verde, Camilo
Pessanha, Fernando Pessoa e Augusto dos Anjos. A liturgia do Caos também é uma
liturgia de um Eu que Dimas Macedo arrisca compor ao longo dos seus livros. A
dificuldade não está propriamente nas palavras, mas em adensar uma voz própria.
A liturgia também se faz na repetição, na disciplina, em termos poéticos, na
técnica, no leit motiv, na
consciência estética, no diálogo com os mais antigos.
E nesse falar em Línguas, Codicírio, é dessas palavras que surgem no auge do transe, na
embriaguez dionisíaca. E em sua novidade de neologismo, deixa em aberto
possíveis significados. O mais evidente destes significados transparece a ideia
de um alfarrábio ou de uma coleção apócrifa de algum poeta coletivo, um códice
que fora perfumado ou manchado por um Círio seco, memória de alguma leitora que
o folheou. O livro é uma exsicata de um círio, túmulo de uma memória de
leitura. E mais do que um livro imaginário são as histórias da leitura deste
códice improvável que o título projeta, como se a leitora que esquecera a flor na
página fosse feita de areia e não o livro, para aqui recriar a imagem de
Borges, e por metonímia as leituras que se fizeram desse Códice. Afinal, em que
lugar da cidade de Fortaleza ou do mundo se ler Dimas Macedo? E quem mais, além
de tu, leitora, e de Geraldo Jesuíno, está lendo A Poesia do Salgado? O plano da escrita e talvez de toda a escrita
literária seja mesmo o da falta, uma lacuna que, em outra chave, podemos ler
como silêncio, é o preço do texto poético e o motor último do Desejo.
Sintaxe
do Desejo e Vozes do Silêncio são os últimos que
acabo de glosar, porque os vejo como sinônimos, apesar de meu impulso seja
remoer outras tantas páginas sobre Estrela
de Pedra, uma estrela que perdeu o brilho, mas não o calor.... Enfim, a
sintaxe do silêncio é o desejo e só a poesia poderia chegar a este paradoxo de
forma clara como um enigma.
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