Dimas Macedo
Ronaldo Correia de Brito
Registro que sou fascinado pelo texto refinado da curta ficção, e que os contistas me seduzem de uma forma muito especial, pois sendo raros até em quantidade, é indiscutível que uma revelação entre eles é um fato a ser rememorado.
Em matéria de
contos, me parece, Katherine Mansfield é a matriz de todos os contistas
modernos, sendo a sua ficção, em essência, uma anatomia da simplicidade e um
elogio poético do cotidiano. Guy de Maupassant eu o considero o mais
genial e o mais canônico de todos os contistas. Já Moreira Campos foi quem mais de perto tocou a
minha sensibilidade, mestre que foi na arte de elaborar a estória curta, dela
sabendo extrair o melhor proveito literário.
Com Juan Rulfo,
um dos meus contistas preferidos, aconteceu o exercício de uma obra mínima: um
livro de contos, uma brevíssima novela de grande densidade e, a partir de
então, a reunião da sua obra completa. Pronto. Estávamos diante de um dos
maiores escritores americanos. O mais sintético, possivelmente, entre todos os
ficcionistas e o artista mais denso e profundo de toda a civilização mexicana.
Ronaldo Correia de Brito, que de último tem se
afirmado, no Brasil, qual um grande contista, talvez ainda não aspire à glória
literária, mas é impossível que não venha a ser reconhecido como um ficcionista
que convence pela linguagem da sua escritura refinada, já sendo ele um dos
nossos melhores teatrólogos e uma vocação que aflora na área da literatura
infanto-juvenil.
Volto-me agora para o seu novo livro de
estórias, intitulado – Faca (São
Paulo, Editora Cosac & Naif, 2003), reunião de contos na qual me deparo com uma
atmosfera um tanto sombria e alegórica, a revelar o quanto a mulher é uma
instituição mitológica, enquanto personagem que pensa e decide sobre o destino
do texto que o autor vai arquitetando.
Em Ronaldo Brito, o vento da poesia se
conjuga com o seu tecido literário, alojando-se entre as camadas do palimpsesto.
O seu texto é todo ele uma poética da inconsciência e da erudição, da
revelação e do mistério, naquilo em que esses elementos possuem de aproximação
com a verdade, com a realidade e com a imprecisão no campo do concreto.
Nos contos de Ronaldo a tradição é uma
referência e um recorte estético bastante utilizado. Quer nas entrelinhas do
enredo, quer na expressão literária que modela a grandeza do discurso. A
intertextualidade, por exemplo, é um recurso utilizado para resgatar a lenda e
a sabedoria dos antigos, mas em alguns contos funciona também como um espelho a
mostrar uma história paralela.
Daí a grandiosidade da técnica que
permeia a construção dos seus contos. E daí também a densidade emocional e
ficcional que se projeta na mente do leitor. Não é o enredo, no geral muito
elaborado, o que interessa à curiosidade da crítica, porém a nuvem densa da
atmosfera teatral é certamente aquilo que chama a atenção a cada passo da sua
narrativa.
Em Otacílio Mendes, o primeiro conto do
volume, a angústia é uma forma de ambiguidade existencial, na qual os efeitos
da morte, apesar de planejados de forma milimétrica, simbolizam tão-somente a
vulgarização da catarse, não se mostrando suficientes para resolver o conflito
situado no plano da alteridade.
O rito que
envolve a tessitura do corpo e do costume, o ciclo do amor e da libido, sempre
em movimento pendular, a mística popular arraigada na tradição iletrada, a
repressão sensual e a insinuação maliciosa do prazer, entre outros elementos e
procedimentos narrativos, aparecem com certa recorrência nos dois contos
seguintes, a travessia talvez mais engenhosa de Faca.
Inácia Leandro, a
sugerir uma visão alegorizante, é quem inaugura, a partir do próximo conto do
livro, o processo de estruturação das pequenas narrativas de Ronaldo Brito. Não
me lembro de outro contista, na história da literatura, que tenha concebido e
retocado, de maneira tão exemplar e comovente, um perfil de mulher como o fez o
autor de Livro dos Homens (2005) e Retratos Imorais (2010).
Eufrásia Menezes, Inácia
Leandro, Cícera Candoia e Maria Caboré são protótipos mais do que acabados do
gosto e do sentir da alma feminina, retalhada entre a determinação e a postura
do ato de viver, em meio à inclemência do sertão nordestino, onde os mortos parecem
se encontrar com os mortos, através de relações secas e embrutecidas.
Mas outros contos
de Ronaldo Brito merecem igualmente ser destacados. “O Governo”, “A Espera da
Volante” e “Lobisomem”, por exemplo, exibem como pano de fundo uma temática já
banalizada por certo regionalismo umbilical e bairrista, mas que Ronaldo
universaliza com os recursos da sua escritura literária, captando do
regionalismo aquilo que interessa à essência do humano.
E qual seria, por fim, o mistério que gira em
torno de “A Faca”, o conto mais denso do volume? Particularmente, não saberia
explicar porque essa narrativa tanto me tocou. É claro que se trata de um conto
maldito e sagrado a um só tempo, mas é indiscutível também que por trás dessa
história plural e diabólica uma inexplicável poeira fere os nossos olhos e se
planta na memória dos vivos.
As catorze xilogravuras da artista
Tita do Rêgo Silva, feitas especialmente para a edição, enfatizam o poder
imagético dessa prosa refinada, sutil e calorosamente insinuante e engenhosa,
tecida como se fosse um labirinto desses que são trabalhados pelas rendeiras do
Nordeste, a partir dos elementos da terra e do galope das grandes maresias.
Elaborada com o domínio da forma e a figuração
simbólica da metáfora, a escritura de Ronaldo Correia de Brito parece assestada
em busca dos valores da honra e da vingança, cultuados na penumbra dos velhos
casarões, onde o clamor do sangue e o sentimento de culpa se conjugam na
construção da ordem textual, aparentemente caótica na sua dispersão
intersubjetiva, porém dialética e estrutural na unidade da sua disciplina
semântica e morfológica.
Muito bom, Dimas. Você consegue iluminar aspectos importantes de "Faca", obra prima da literatura de língua portuguesa do século XXI. Parabéns!
ResponderExcluirSeria de extrema importância se alguém que tivesse algum conto de Ronaldo Correia de Brito portasse, desde de já agradeço.
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