segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Faca: As Narrativas de Ronaldo Brito


      Dimas Macedo


                                                                                          Ronaldo Correia de Brito

         


            Registro que sou fascinado pelo texto refinado da curta ficção, e que os contistas me seduzem de uma forma muito especial, pois sendo raros até em quantidade, é indiscutível que uma revelação entre eles é um fato a ser rememorado.

          Em matéria de contos, me parece, Katherine Mansfield é a matriz de todos os contistas modernos, sendo a sua ficção, em essência, uma anatomia da simplicidade e um elogio poético do cotidiano. Guy de Maupassant eu o considero o mais genial e o mais canônico de todos os contistas. Já Moreira Campos foi quem mais de perto tocou a minha sensibilidade, mestre que foi na arte de elaborar a estória curta, dela sabendo extrair o melhor proveito literário.

           Com Juan Rulfo, um dos meus contistas preferidos, aconteceu o exercício de uma obra mínima: um livro de contos, uma brevíssima novela de grande densidade e, a partir de então, a reunião da sua obra completa. Pronto. Estávamos diante de um dos maiores escritores americanos. O mais sintético, possivelmente, entre todos os ficcionistas e o artista mais denso e profundo de toda a civilização mexicana.

            Ronaldo Correia de Brito, que de último tem se afirmado, no Brasil, qual um grande contista, talvez ainda não aspire à glória literária, mas é impossível que não venha a ser reconhecido como um ficcionista que convence pela linguagem da sua escritura refinada, já sendo ele um dos nossos melhores teatrólogos e uma vocação que aflora na área da literatura infanto-juvenil.

          Volto-me agora para o seu novo livro de estórias, intitulado – Faca (São Paulo, Editora Cosac & Naif, 2003), reunião de contos na qual me deparo com uma atmosfera um tanto sombria e alegórica, a revelar o quanto a mulher é uma instituição mitológica, enquanto personagem que pensa e decide sobre o destino do texto que o autor vai arquitetando. 

          Em Ronaldo Brito, o vento da poesia se conjuga com o seu tecido literário, alojando-se entre as camadas do palimp­sesto. O seu texto é todo ele uma poética da inconsciência e da eru­dição, da revelação e do mistério, naquilo em que esses elementos possuem de aproximação com a verdade, com a realidade e com a imprecisão no campo do concreto.

           Nos contos de Ronaldo a tradição é uma referência e um recorte estético bastante utilizado. Quer nas entrelinhas do enredo, quer na expressão literária que modela a grandeza do discurso. A intertextualidade, por exemplo, é um recurso utilizado para resgatar a lenda e a sabedoria dos antigos, mas em alguns contos funciona também como um espelho a mostrar uma história paralela.

           Daí a grandiosidade da técnica que permeia a construção dos seus contos. E daí também a densidade emocional e ficcional que se projeta na mente do leitor. Não é o enredo, no geral muito elaborado, o que interessa à curiosidade da crítica, porém a nuvem densa da atmosfera teatral é certamente aquilo que chama a atenção a cada passo da sua narrativa.
 
            Em Otacílio Mendes, o primeiro conto do volume, a angústia é uma forma de ambiguidade existencial, na qual os efeitos da morte, apesar de planejados de forma milimétrica, simbolizam tão-somente a vulgarização da catarse, não se mostrando suficientes para resolver o conflito situado no plano da alteridade.

          O rito que envolve a tessitura do corpo e do costume, o ciclo do amor e da libido, sempre em movimento pendular, a mística popular arraigada na tradição iletrada, a repressão sensual e a insinuação maliciosa do prazer, entre outros elementos e procedimentos narrativos, aparecem com certa recorrência nos dois contos seguintes, a travessia talvez mais engenhosa de Faca.

           Inácia Leandro, a sugerir uma visão alegorizante, é quem inau­gura, a partir do próximo conto do livro, o processo de estruturação das pequenas narrativas de Ronaldo Brito. Não me lembro de outro contista, na história da literatura, que tenha concebido e retocado, de maneira tão exemplar e comovente, um perfil de mulher como o fez o autor de Livro dos Homens (2005) e Retratos Imorais (2010). 

            Eufrásia Menezes, Inácia Leandro, Cícera Candoia e Maria Caboré são protótipos mais do que acabados do gosto e do sentir da alma feminina, retalhada entre a determi­nação e a postura do ato de viver, em meio à inclemência do sertão nordestino, onde os mortos parecem se encontrar com os mortos, através de relações secas e embrutecidas.

          Mas outros contos de Ronaldo Brito merecem igualmente ser destacados. “O Governo”, “A Espera da Volante” e “Lobisomem”, por exemplo, exibem como pano de fundo uma temática já banalizada por certo regionalismo umbilical e bairrista, mas que Ronaldo universaliza com os recursos da sua escritura literária, captando do regionalismo aquilo que interessa à essência do humano.

            E qual seria, por fim, o mistério que gira em torno de “A Faca”, o conto mais denso do volume? Particularmente, não saberia explicar porque essa narrativa tanto me tocou. É claro que se trata de um conto maldito e sagrado a um só tempo, mas é indiscutível também que por trás dessa história plural e diabólica uma inexplicável poeira fere os nossos olhos e se planta na memória dos vivos.

              As catorze xilogravuras da artista Tita do Rêgo Silva, feitas especialmente para a edição, enfatizam o poder imagético dessa prosa refinada, sutil e calorosamente insinuante e engenhosa, tecida como se fosse um labirinto desses que são trabalhados pelas rendeiras do Nordeste, a partir dos elementos da terra e do galope das grandes maresias. 

              Elaborada com o domínio da forma e a figuração simbólica da metáfora, a escritura de Ronaldo Correia de Brito parece assestada em busca dos valores da honra e da vingança, cultuados na penumbra dos velhos casarões, onde o clamor do sangue e o sentimento de culpa se conjugam na construção da ordem textual, aparentemente caótica na sua dispersão intersubjetiva, porém dialética e estrutural na unidade da sua disciplina semântica e morfológica.

2 comentários:

  1. Muito bom, Dimas. Você consegue iluminar aspectos importantes de "Faca", obra prima da literatura de língua portuguesa do século XXI. Parabéns!

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  2. Seria de extrema importância se alguém que tivesse algum conto de Ronaldo Correia de Brito portasse, desde de já agradeço.

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