quarta-feira, 31 de julho de 2013

Uma Sonata Para Valle-Inclan



               Dimas Macedo
 

 
                                                        Escultura de Del Valle-Inclan na
                                                   Alameda de Santiago de Compostela


         O romance latino-americano, do século vinte, é um dos marcos da moderna tradição literária. Mas a ascendência cultural hispânica que o antecede, e que o ilumina, projetando influências sobre as suas raízes e os seus modelos, é possivelmente o principal elemento que tempera as suas intenções e as suas formas.

         O realismo mágico e o traço sociológico contundente do romance latino-americano muito devem ao empenho quixotesco de Cervantes. E talvez mais ainda ao recorte bárbaro e espoliativo com que a civilização hispânica consolidou o seu domínio na América. Mas é provável que as suas linhas singulares, a expandir as cores do fantástico e do maravilhoso, e a projetar, nas páginas da história, os contornos do picaresco e do cômico, elevados à potência da ironia e do grotesco, sejam devidas a Ramón María Del Vale-Inclan (1866-1936), “o Colombo barbudo do romance hispano-americano”. 

        O seu protótipo humano estampado num “rosto espanhol e quevedesco”, a exibir um espírito original e bufão, não pode deixar de ser visto, também, como o desvelo anárquico e picaresco da chamada Geração de 1898, na Espanha, protagonista toda ela do sentimento trágico do povo espanhol, face à sua derrocada política perante o imperialismo norte-americano. A literatura dessa geração de 1898 faz-se quase toda ela em defesa do soerguimento moral da Espanha e da restauração dos seus fundamentos culturais e humanos.

        Segundo Leo Gílson Ribeiro, nas páginas essenciais de O Continente Submerso (São Paulo, Editora Best Seller, 1988), “Desse renasci­mento, depois de longa letargia, fariam parte, entre outros, Pio Baroja, o escritor social das classes que roçavam a fome proletária diária; o Unamuno, o erudito tradutor de Kierkegaard (…), difusor do sentimento trágico de la vida; e Azorín, o poético romancista de miniatura ou da desolação da decadência das aldeias espanholas”.

      E prossegue o mesmo estudioso da literatura hispano-americana afirmando que “dentro do que ficou denominada de la geración 98, Del Valle-Inclan  é uma mistura insólita de Quevedo, de Cervantes e de Brecht em sua melhor fase (...). Valle-Inclan tem de Cervantes o idealismo absurdo de Dom Quixote, de Quevedo a celebração do humano por mais sórdido e trágico que seja, naquela renovação do gênero de novela picaresca que ressuscita ao tocar as terras bárbaras da América Latina. De Brecht tem a mordacidade relampejante, a frase descritiva ou diálogo que devasta com sua ironia ácida”.

     Autor de uma obra literária vasta e recortada pelo sopro das suas linhagens estéticas e da sua linguagem sutil e comunicativa, Ramón Del Valle-Inclan é um dos poucos grandes escritores hispânicos com praticamente nenhuma tradução no Brasil.

      Considerado um exímio cinzelador de almas e um cidadão extravagante e mordaz, Valle-Inclan detinha a marca dos artistas eleitos e fôlego literário que lhe consentia tracejar obras-primas como Tirano Banderas (1926) ou mesmo novelas exemplares tais aquelas que compõem o ciclo das Memorias Amables Del Marquês de Bradomin, um dos pontos altos da literatura espanhola de todos os tempos.

       Entre essas novelas de Ramón Del Valle-Inclan, destaca-se So­nata de Primavera, (1904), que foi antecedida por Sonata de Outono (1902) e Sonata de Verão (1903) e a que se seguiu a Sonata de Inverno (1905). Trata-se, no caso, da consolidação da carreira literária de Valle-Inclan como autor da obra mestra do modernismo espanhol.

      O Marquês de Bradomin projeta-se em Sonata de Primavera (Madrid, Alianza Cien, 1994) como um Don Juan de corte muito refinado. É ele protagonista de um enredo no qual as suas ousadias e sutilidades, buscando a mansidão da alma feminina, se fazem o eixo gravitacional da narrativa.

     Para Bradomin a bondade das mulheres é mais efêmera que a sua beleza, da mesma forma que o seu orgulho donjuanesco lhe permite pensar que o terreno da amabilidade humana é mais prodigioso do que as convenções geradas pelo respeito e a virtude.

     E por toda a narrativa, vai destilando as suas insinuações ardentes, irônicas e rocambolescas. E assim, cego de paixões e de delírios ternos, Bradomin confessa o seu amor romântico e as suas queixas e as suas grandes irrealizações amorosas.

      Com relação ao personagem Polônio, outro protagonista do enredo, se pode dizer que é a encarnação de uma aura mítica, que habita um coração feiticeiro e misterioso. Um coração, enfim, privado da sua força viril e envolvido, por vezes, numa teia de relações secretas e mirabolantes. Trata-se de uma voz que se quer fazer ouvir nos recessos mais densos e profundos da subjetividade, da morte e da beleza. 

        O mundo, por outro lado, é o espaço da perdição para a Princesa Gaetani, a personagem possivelmente mais autônoma de toda a narrativa. As coisas do mundo, mormente as suas tentações e os seus grandes dilemas diabólicos, a deixam em estado de apreensão e de virgília, principalmente quando faz opção por escolher e traçar o destino dos seus descendentes, dentre eles destacando-se Maria do Rosário, por quem o coração de Bradomin não para de pulsar e a quem ele, também, não para de prestar reverência.
        O roma
nce se passa na cidade italiana de Ligúria. O Marquês de Bradomin é um jovem cavaleiro, que foi destacado por sua santidade para ser guarda nobre do Monsenhor Estefano Gaetani, Bispo de Betúlia, pertencente à família dos príncipes Gaetani e que, por muito tempo, foi Reitor do Colégio Clementino.

       Quando o Marquês de Bradomin chega à cidade de Ligúria, aí é recebido por uma triste notícia, a de que o Monsenhor Estefano tinha sofrido um acidente trágico na casa da sua cunhada, a Princesa Gaetani, e em virtude do qual veio a falecer.

         A Princesa Gaetani, com efeito, no passado fora casada com seu irmão, o Príncipe Filipe Gaetani, que também morreu de forma trágica e totalmente imprevisível. A princesa mora no Palácio Gaetani, com as cinco filhas, e a mais velha, María do Rosário, tem vinte anos apenas, e está destinada pela mãe para entrar no convento, em obediência às leis da contemplação e do silêncio.

       O Marquês se interessa por María do Rosário e começa a observá-la em todos os seus movimentos e ações, espreitando os seus sentimentos e palavras, comportando-se como um perfeito D. Juan que tenta conquistar a sua amada de todas as maneiras. María do Rosário, contudo, resiste às suas insinuações sutis e ardilosas, colocando o destino da sua vocação como o empecilho maior da sua realização no plano do amor.

      A Princesa Gaetani, a princípio, fica feliz com a chegada do Marquês, a ponto de hospedá-lo em sua residência. No entanto, quando percebe o interesse do mesmo por María do Rosário, passa a demonstrar desprezo por sua permanência no Palácio, não conseguindo conter, por outro lado, os impulsos da sua sensibilidade afetiva e transbordante. 

       E María do Rosário, dessa forma, percebendo esse clima denso e sufocante, pede ao Marquês que embarque de volta para Roma, pois a vida dele corre perigo e ele precisa se defender contra os perigos e as armadilhas do coração, ao passo em que o Marquês percebe que María do Rosário lhe ama, pois quer lhe proteger, apesar de não aceitar o seu amor. 

       E estando a sós, entra no aposento a pequena María das Neves, a irmã mais nova de Rosário, com uma boneca nos braços e fica com eles na sala. Inexplicavelmente, algo muito misterioso acontece, um acidente trágico rouba a vida da menina, quando algo imprevisível entra pela janela e a atinge. María do Rosário enlouquece e repete a todo instante que aquilo foi coisa demoníaca.

        Por trás de todos esses dramas, é fácil perceber que a conduta subjetiva do Marquês e os seus galanteios amorosos têm um componente psicológico fundado na intuição e na bondade, o que lhe permite divisar, no “fundo dourado dos olhos da Princesa”, a chama de um fanatismo iluminado e sombrio, que talvez reflita, em sua essência tristonha, a expressão de um sentimento trágico não realizado. 

       E quanto a María do Rosário, afirma o Marquês que ela foi o único amor de sua vida. E depois de muitos anos a recordá-la e a vivê-la, na imaginação e na lembrança, os seus olhos áridos, e já quase cegos, enchem-se de lágrimas, revelando-se assim, no final do entrecho, a epopeia trágica do amor como a grande chave simbólica da Sonata de Primavera que, no caso específico de Inclan, é a estação sublime do amor e o estágio da sua alegoria festiva. E ainda assim porque o título da novela é todo ele plural e sugestivo, refletindo talvez que a primavera e a sua beleza tenham relação com o sentimento trágico do autor e com o ponto de vista estético e ontológico que ele dissemina. 

      Vemos, por fim, nessa ousada novela de Del Valle-Inclan, os ri­tuais da fé e as suas armadilhas em choque com os conflitos amorosos e passionais das personagens, cujo destino trágico se confunde com as ações e atitudes que protagonizam.



Nenhum comentário:

Postar um comentário