Assim como não podemos entender a
literatura brasileira sem a semântica nacionalista e o espírito criativo e
polêmico de José de Alencar (e sem as sutilezas linguísticas e psicanalíticas
de Machado de Assis), creio que não podemos compreender a literatura portuguesa
e a sua consolidação definitiva sem o conhecimento da Questão Coimbrã, as
Conferências do Cassino e o papel da Geração de 1870.
Sei que o passado português está
ligado aos mitos de Vieira e Camões, à aventura dos descobrimentos e à mística
do sebastianismo. É para mim fato consumado que Fernando Pessoa é o príncipe da
modernidade literária, não apenas em língua portuguesa; e que José de Sousa
Saramago é o restaurador da linguagem barroca, mais sutil e a mais emblemática
forma de comunicação que se fez do lado de cá dos Pirineus.
Mas o que penso
sobre Portugal é o máximo do que penso sobre a literatura e os acontecimentos
da Geração de 1870. A geração de Antero de Quental, Guerra Junqueiro, Eça de
Queirós e Ramalho Ortigão. Sem mais nem menos e sem a necessidade de produzir
paralelos.
O que se fez a
partir dessa geração é o que faz a diferença na história política e cultural de
Portugal. É o que faz a transição do arcaico e do conservador para os esforços
da modernidade tardia e sempre conturbada que marca a trajetória daquela
importante nação.
Ramalho Ortigão
é a personagem principal do livro de Ednilo Soárez: Ramalho Ortigão – Um Marco na Literatura Portuguesa (Fortaleza, Expressão Gráfica, 2008).
Uma marca, por certo. Ou até mesmo um bloco de mármore ou de granito imantado
de gemas e cristais. Um ponto de interseção e equilíbrio. Uma travessia pênsil,
fincada numa rocha (o passado) e que aponta para uma certeza e uma claridade:
as saudades do futuro, para aqui ser fiel à expressão de Eduardo Lourenço.
Não espere o
leitor que eu fale de Ramalho Ortigão como sujeito ou como personagem. Ou que
eu explique a extensão da sua obra. Ou faça alusão aos traços que marcaram a
sua trajetória. Ou que eu registre aqui um comentário ou faça alguma distinção
sobre a participação desse conhecido escritor na transformação da cultura
portuguesa.
Mas de Ednilo, sim, quero falar, dos traços de
percepção da sua obra, da sua visão de escritor e sociólogo, da maturidade das
suas formas literárias, da linha de prumo com que maneja o intrincado labirinto
do ensaio, do ensaio-poema ou do ensaio enquanto expressão de uma poética
ancestral e genuína.
Sólida a sua
formação educacional e humanística. Indiscutivelmente madura a sua experiência.
Íntegra, como a de poucos homens, a sua personalidade. Faltava-lhe, por certo,
o exercício soberano da pena. Faltava-lhe o ato de afastamento da linguagem
técnica que muito utilizou como político e gestor das coisas da administração e
do governo. Eram-lhe também escassas as águas do repouso e a engenharia da
escuta dos dons.
Falo dos dons da
escrita. Aqueles que ele revelou como historiador e sociólogo. Aqueles que ele
difundiu como romancista, mostrando-nos os seus conhecimentos sobre as coisas
do mar e das embarcações. Aqueles que ele agora nos ensina como ensaísta
primoroso do campo literário.
O Instituto do
Ceará se houve por bem em fazê-lo um de seus integrantes, e bem assim a
Academia Cearense de Retórica, consagrando-o no seu quadro de sócios titulares.
E muito se engrandece a Academia Fortalezense de Letras em tê-lo como
Presidente.
Ramalho Ortigão – Um Marco na Literatura Portuguesa não é uma biografia no sentido da descrição cronológica dos fatos e
acontecimentos que marcaram a vida do grande escritor português, mas constitui,
com certeza, um tributo à historiografia das ideias que determinaram a
autonomia de voo de Ramalho Ortigão.
A dimensão visual da vida de
Ramalho e a explosão da sua obra, a exegese da sua produção, as linhas de força
da cultura lusa e a formação e consolidação do realismo em Portugal: eis os
elementos e traços distintivos que fazem desse livro de Ednilo Gomes de Soárez
um momento ímpar do ensaio, no âmbito da literatura luso-brasileira.
Ednilo é um bom
reconstrutor de cenários. Nele a paixão de ordem visual se faz um componente de
monta. Existem, nesse livro, passagens e parágrafos que mais se assemelham à
projeção de uma câmara cinematográfica do que a uma tela pintada com as
energias da escrita.
A escritura, em Ednilo, mostra-se um autêntico
cruzamento de cores, insights, flashes
e pincéis. Escritura que dialoga com as artes e a imaginação do leitor ou dos
personagens que retrata, transforma ou reinventa.
Sei que a
apresentação de um livro é algo perfeitamente dispensável. Uma obra literária
vale, sobretudo, pela sua expressão, isto é, pelo conjunto das suas formas e do
seu conteúdo. Vale também pela visão de mundo do autor, pela sua erudição, pela
sua cultura e pelo conhecimento que o autor demonstra do seu objeto de
pesquisa.
Nesse livro de Ednilo
Soárez, estes elementos se comunicam entre si, em grau de circularidade
dialética e em grau máximo de harmonia e de expressão da escritura. E o leitor,
neste caso, só pode é se sentir um privilegiado. Assim como eu, que vi, de
primeiro, a superioridade cultural de Ednilo na tessitura desse livro exemplar
e, sob todos os aspectos, relevante.
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