“Daqui, dessa trincheira – é assim que gosto de chamar
o meu local de trabalho, com suas
camadas e camadas
de livros e papéis, formando um
recife à minha volta – daqui,
como Hades, planejo tudo sozinha.
Sou o vórtice que leva
os personagens ao seu destino. Sou responsável
por cada gesto
e cada fala. Quando minha tropa de fodidos abre a boca,
o grito é meu. Eu decido. Eu
digo ataquem.
Destruam, e eles destroem.”
O livro – Escrevendo
no Escuro (Rio: Ed. Rocco, 2011), de Patrícia Melo, é um soco no
estômago. Sim, daqueles que nos deixam desnorteados e prontos para o nocaute no
golpe seguinte. Primeiro livro de contos da dramaturga e roteirista paulista,
trata-se de ótimo cartão de visitas para quem ainda não conhece a autora de Acqua Toffana e O Matador – seus dois primeiros livros –, lançados ainda pela
Companhia das Letras, e que certamente serão o golpe do nocaute de seus novos
leitores.
Conhecida como a mais fiel seguidora de Rubem Fonseca, Patrícia Melo é
portadora de uma trajetória brilhante e ainda não foi totalmente descoberta
pelo grande público, certamente por não abrir mão de uma linguagem direta,
politicamente incorreta, sem concessões ou preocupações que hoje empobrecem a
literatura, o cinema, e as artes mais populares. Sua obra não poderia “passar”
na TV aberta, sem cortes. Com cortes, soaria menor, incompreendida.
Sua escrita é simples,
absurdamente simples. Igualmente profunda - o que não é contradição. Patrícia
demonstra, com absoluta precisão, que o simples é genial e o alegórico é quase
sempre cafona. Suas personagens rapidamente entram na cabeça do leitor e lá se
alojam, como se velhos conhecidos fossem: vizinhos, parentes ou amigos de longa
data.
Bastam algumas linhas, um ou dois
parágrafos e pronto, sabemos tudo sobre o artista canceroso, sobre a garota de
programa, sobre a depiladora chantagista, o policial mulherengo, o legista necrófilo,
as duas irmãs carolas no fim da vida e, entre outros, sobre Cecília – a
personagem que permeia o livro em takes, por entre os contos do volume, lembrando-nos
a toda hora da perturbação mental que aflige todos. Cecília é uma suicida, “um
estorvo, um fardo, uma pedra no seu caminho”, como se define no “diálogo” que
empreende com a autora fictícia – não a real – do livro.
No conto “Encontro à Meia-Noite”, o
genial diálogo entre o policial legista necrófilo e a suicida maquiada é
travado com a naturalidade de um colóquio entre dois enamorados que acabaram de
transar pela primeira vez, na sala, enquanto os pais da moça assistem tv no
quarto do lado: “Ninguém vai saber de nada, afirmo. – Sei que posso confiar em
você. – Sempre, eu digo. – Depois, voltamos para a mesa de metal, dou-lhe um
beijo na testa e fecho seus olhos. Tiro suas medidas e coloco o suporte embaixo
de suas costas, fazendo com o que seus braços e pescoço caiam para trás. – Isso
facilita a abertura do tórax.”
Seria terrivelmente simplório
definir Cecília ou qualquer outra personagem do livro como alter-egos da escritora. Sequer do conto que dá título ao livro
pode se inferir qualquer referência à escritora que já roteirizou para o cinema
o livro – Bufo & Spallanzani, de Rubem Fonseca, e O Xangô de Baker Street, de Jô Soares. Os
fodidos da vida que passeiam pelo livro de Patrícia Melo são personagens reais,
que choram, bebem, fazem sexo, morrem de medo de morrer, têm depressão, sofrem
de solidão, acordam putos e frustrados com suas vidas pequenas.
São fotografias e não meras
representações de cada um de nós. Esses arquétipos estão em cada um dos contos
como para nos lembrar da pobreza que é uma vida levada sem propósitos, sem
reconstruções verdadeiras. Todos sofrem por existir e anseiam, mais do que
tudo, nascer e começar tudo de novo. E todos enfrentam a dura realidade dos
sonhos desfeitos, da grana apertada, das traições e, sobretudo, do frio e
inevitável encontro com a morte.
Os gritos dos fodidos da vida e toda
e escória humana que trafegam no último livro de Patrícia Melo – Escrevendo no Escuro –, não são gritos
deles próprios, não são gritos da autora – nem a real nem a fictícia –, são
gritos também dos que leem.
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