A civilização do Nordeste faz-se
toda ela tendo a cana-de-açúcar qual a sua base de sustentação. Assim, justo
seria aceitar que um de seus derivados viesse a integrar o cardápio dos
moradores da região. A cachaça, ao lado do açúcar e da velha rapadura,
industrializada nos engenhos de boi do Cariri, constitui, talvez, o mais
popular dos produtos agrícolas fabricados no interior do Nordeste.
A sua produção em escala comercial,
para atender às exigências do mercado interno e dos consumidores
internacionais, não desnaturou a sua importância tradicional, em que pese à
substituição das fábricas de melaço e dos antigos engenhos de boi pelos
equipamentos com que o parque industrial moderno tem procurado atender às suas
necessidades de lucro e expansão.
Se a civilização do boi, que puxava
os toscos engenhos de cana do Nordeste, já foi minuciosamente estudada; se a
cultura do açúcar e, especialmente, da rapadura já foram igualmente objeto de
pesquisa e observação - lógico seria que a sociologia da cachaça viesse a
merecer a atenção de historiadores.
É justamente um dos aspectos da
sociologia da cachaça, no caso a sua apologia feita por repentistas, cantadores
e poetas de bancada aquilo que o jornalista e poeta Barros Alves se propõe a
estudar no seu livro – Cachaça, Cordel e
Cantador (Fortaleza, Editora Natacha, 1991).
Trata-se, no caso, de um cuidadoso
inventário daquilo que a verve do poeta popular melhor produziu sobre o
assunto, em tiradas que beiram às raias do picaresco e do coloquial, do lírico
e das aliciantes pitadas de humor.
Nesse livro de Barros Alves, como
assegura F. S. Nascimento, revela-se a circunstância de que "os fingimentos
amorosos tiveram a pinga como aplacadora de iras ou como debeladora de
insônias", sendo daí proveniente "a fortuna temática desse lenitivo
emocional".
E linhas adiante, acrescenta o
mesmo escritor: "Tudo o que foi possível reunir sobre o folclore da
aguardente, esse arguto cordelista procurou enfeixar neste volume, enriquecendo
cada texto com uma análise fundamentada em sólida bibliografia".
No texto de abertura do livro,
recorrendo a uma séria metodologia de pesquisa, Barros Alves busca justificar
o conteúdo da matéria, interessando-lhe tanto as origens da poesia do povo,
quanto as raízes do hábito alimentar em cujo contexto a cachaça se insere.
Para ele, "o cancioneiro
popular está recheado de cachaça, mas é na literatura de cordel onde a
presença dela é mais constante". Pensa o autor que "pouquíssimos
outros temas rivalizam com a cachaça na Literatura de Cordel", lembrando-nos
a figura do Padre Cícero Romão, sobre quem os poetas de cordel ainda tecem
loas; o mar, que os bardos sertanejos cantam enlevados, muitos deles só de ouvir
dizer, pois nasceram e se criaram no sertão; e os ensinamentos da história
sagrada.
No capítulo primeiro, a abordagem
aparece centrada na procedência da cachaça, que teria vindo de Portugal, onde
era consumida, segundo Câmara Cascudo, nas "quintas fidalgas do
Minho", pelo que se depreende que a origem da cachaça não é tão plebeia
quanto se pensa.
Popularizada no Brasil, a cachaça
tornou-se a aguardente do País, nacionalizando-se com os movimentos políticos
em prol da independência, principalmente quando os patriotas passaram a
consumi-la em maior quantidade, em contraposição aos vinhos estrangeiros,
especialmente os portugueses.
Nos capítulos intitulados: “Amada de
Todos", "Cachaça e Poesia", "O Clero e a Tropa" e
"Os Bichos e a Cachaça", Barros Alves demonstra completo domínio do
assunto, recheando sua pesquisa com produções de poetas como Cego Aderaldo,
Leandro Gomes de Barros, Romano do Teixeira, Chica Barrosa, Zefinha do Chabocão
e José de Matos, este último, o mais genial cachaceiro que a poesia popular
produziu.
Inúmeros outros aspectos da pesquisa
mereceriam ser destacados. Entretanto, fiquemos por aqui. A Importância do
tema confirma a importância do livro. Escritor com nome firmado, Barros Alves é
intelectual que fala por si.
Autor do ensaio – A Literatura de Cordel Como Instrumento de
Conscientização, Prêmio Leonardo Mota, de Folclore (Fortaleza, Secretaria
de Cultura, 1983), e de diversos folhetos de cordel, sua verve ainda se
derrama pela feitura de poemas de apelo não popular e de trabalhos tais – O Desabusado Mundo da Cultura Popular
(Fortaleza, Edições do Autor, 1984) e Tancredo
Neves na Literatura de Cordel (Fortaleza, Edição do Autor, 1985).
Trata-se de pesquisador de vasta
formação humanística, forrado pelas leituras do clássico e do popular, cujos
conhecimentos atestam a sua posição de cordelista maior e de intelectual que se
eleva na cultura do Ceará, na atualidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário