Tela de Ana Costalima
Já afirmei, em passagem da minha obra de
jurista, que Paulo Bonavides é um poeta do ensaio e um constitucionalista do
sentimento e da paixão criadora. Quiseram os deuses que ele revestisse a
linguagem da Filosofia e da Política para ensinar aos seus leitores os grandes
segredos do Direito.
Apesar de vivermos a era
dos direitos e de agirmos como se o Direito fosse uma conquista da legalidade,
do positivismo e do normativismo – desprovido de conteúdo e legitimidade –,
sabemos que o Direito é uma relação intersubjetiva de condutas, recortada por
um conteúdo axiológico, pois o espírito do Direito (e não as suas normas) é o
que deveria importar ao ponto de vista do intérprete.
O conhecimento e a
experiência do fenômeno jurídico requerem o humanismo e a democracia, a
dignidade e a justiça como elementos de legitimação.
Vivemos a era da
globalização e do pós-positivismo, a era da Constituição como instrumento da
paz e de estabilização da ordem econômica e, bem assim, de concretização dos
Direitos Fundamentais e dos princípios constitucionais enquanto substância da
normatividade e mandamentos de otimização do sistema jurídico.
Esses mandamentos de
otimização constituem núcleos de orientação da nova hermenêutica, porque se
expressam como vetores que imantam o sistema normativo, conferindo-lhe
concreção e dinâmica, legitimidade e fundamentação jurídica e filosófica.
Depois das constituições do Estado
Liberal e do apogeu do Estado Social de Direito, chegamos, finalmente, à
pós-modernidade, e vislumbramos, de último, o Estado de dimensão comunitária e
cooperativa, sintonizado com a sadia qualidade de vida e com o estágio da
sociedade pluralista e aberta.
Paulo Bonavides, no
Brasil, é o guardião maior da Constituição e o arauto mais expressivo do Direito
Constitucional, pois a ele os segredos da Teoria do Estado e da Sociologia do
Direito são de primeiro revelados. Sabe ler a boa nova em todos os horizontes
do Direito e sabe discernir em torno dos assuntos sobre os quais explana.
A Teleologia do Estado e a Ciência Política
constituem a casa do ser onde costuma ancorar suas pesquisas, ricas, aliás, de
achados científicos e epistemológicos, pois nunca lhe faltaram a visão do
estilista e o desvelo com que sempre defendeu a Língua Portuguesa.
Artista da palavra e escritor
paradigmático, Paulo Bonavides escreve ou reescreve os seus livros numa
linguagem fluente e elegante, recheada de metáforas e alegorias e de acentos
fônicos que os aproximam do prazer do texto.
No plano da vida pessoal, o
professor Paulo Bonavides é visto qual um príncipe da elegância e do afeto; e,
no plano do Direito do Estado, um oráculo das crises constitucionais que se
avizinham; e arauto ele o é por excelência dos achados jurídicos que se
desenham no discurso acadêmico.
Paulo Bonavides sabe
impregnar os seus livros jurídicos de poesia, e de poesia no melhor sentido da
palavra, porque de escansão poética são feitos os seus experimentos e a
linguagem de todos os seus textos.
Um livro, no início da sua
trajetória, por ele intitulado O Tempo e os Homens (Fortaleza, 1952),
agora em terceira edição (Florianópolis: Boiteux, 2005), sempre me pareceu um
dos marcos da sua vocação de escritor e de esteta que sabe navegar, qual um
mestre, no reino das palavras.
Digo reino das palavras, mas aí
refiro-me, igualmente, ao reino do discurso, ainda porque discursivo e imantado
de cultura estilística, é toda a textura dos seus ensaios e escritos
filosóficos, labor que o projeta no concerto da ordem criativa.
O ponto de partida de Paulo Bonavides, nesse livro
exemplar e pioneiro, é a Sociologia da Cultura, com passeios pela crítica
literária e pelos recortes de cunho biográfico, sem perder de vista o traço
cultural que mais o distingue: a defesa da ética e da dignidade.
A releitura dessa
coletânea de crônicas e ensaios, no momento em que ele, Paulo Bonavides, se
impõe como o maior dos nossos constitucionalistas, ajuda-nos a entender o
percurso de um pensador e de um homem que devotou toda a sua vida e toda a sua
obra ao serviço do bem, da Democracia e da transparência das virtudes
políticas.
Sabemos que a ética, o humanismo, a
dignidade e a busca da justiça são os atributos e as lições que ele, de
primeiro e em todos os momentos, ensinou aos cientistas sociais e à cidadania
do Brasil, do Brasil especialmente à cidadania do Brasil desigual, que ainda se
quer, em muitos dos seus planos, em estágio de subdesenvolvimento.
O abismo da desigualdade
racial, na década de 1940, já incomodava as aspirações do cientista político
Paulo Bonavides. O espaço social do negro, na civilização americana, é o
primeiro ponto de inquietação do jovem escritor e jornalista cearense, nas
páginas fundamentais de O Tempo e os Homens.
Digo páginas
fundamentais porque nesse livro de Paulo Bonavides está a visão do observador e
do analista da cena social e política. Figuras como Eça de Queirós e a crítica
por ele desferida contra a pasmaceira e o retrocesso da sociedade portuguesa;
Juan Bauptista Alberdi e a sua visão de constitucionalista e de jurista,
dissociada das ideologias institucionais do seu tempo; e os traços líquidos e
plurais da paisagem dos cantadores e jangadeiros do Nordeste, ao lado de perfis
de intelectuais como os de Rui Barbosa e Humberto de Campos, aí se encontram a
desafiar a curiosidade do leitor.
O que avulta de erudição e de
pujança intelectiva, nesse conjunto de escritos, impregnados de cunho
ideológico, deixam antever o pensador e o jurista em que se transformou o
mestre cearense. Muita coisa mudou, é certo, na profundidade do seu raciocínio,
mas em termos de destemor e de bravura, transformou-se Paulo Bonavides num
escritor exemplar e corajoso.
É diversificado o
conteúdo de O Tempo e os Homens, mas o que neste texto quero destacar é
a expressão do estilista Paulo Bonavides e a confirmação da sua vocação de
escritor, cuja estreia se deu em 1948, com Universidades da América,
prefaciado por Gilberto Freyre e que lhe valeu, na época, o prêmio Carlos de
Laet, da Academia Brasileira de Letras.
Os organizadores da terceira edição,
professores Filomeno Moraes e Martônio Mont’Alverne Barreto Lima, discípulos de
Paulo Bonavides, assim como o autor destas linhas, afirmam, no prefácio do
volume, o seguinte:
“A par da carreira
que desenvolveu e que o transformou em scholar respeitado, Paulo
Bonavides dedicou-se ao jornalismo profissional na juventude e, desde então,
tem escrito para jornais. Os textos que se trazem novamente a lume, embora
tendo vindo a lume há mais de cinquenta anos, ferem temas, em grande parte,
presentes no debate político-constitucional dos nossos dias, ou constituem
perfis de personalidades internacionais, nacionais e locais”.
E acrescentam os referidos
professores: “As análises de Paulo Bonavides fogem ao discurso fácil, da visão
bipolar dos nossos problemas e das suas soluções possíveis, enfrentando os
desafios de compreender o Brasil em toda sua diversidade. Esse aspecto é o que
faz do Professor Paulo Bonavides um intelectual singular e fortalecedor da
ideia de que, nos trópicos, a originalidade acadêmica não é somente possível
como representa algo dadivoso”.
Cultor sutil e
refinado do rigor da língua, da sua estilística mais aprimorada e da sua
semântica desafiadora, Paulo Bonavides é um dos juristas de maior relevo na
América Latina. Acho, inclusive, que esse cientista do Estado é o mais alto
entre os pensadores do Brasil na atualidade, e o mais erudito entre os seus
intelectuais.
Penso que o Brasil, um
dia, reconhecê-lo-á qual o seu jurista mais culto e o seu mais aparelhado
defensor da Liberdade, porque arauto da Constituição, filósofo da Política e
germanista de primeira linha, pleno de erudição e de saberes que nunca se
esgotam.
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