Quando certo curador das letras cearenses – curador de sonhos e de projetos irrealizados – se propôs a editar um livro de crônicas de Airton Monte, ficou acertado entre eles que eu faria a apresentação do volume. Não sei para que serve um ajuste dessa natureza nem, muito menos, o que vou escrever como introito desse conjunto de escritos.
A vida de escritor é assim: quanto
mais precisamos de um texto, mais ele foge e se esconde: além, muito Além do
Nevoeiro, pois é ali que ele se reproduz e se diverte. E assim sendo, nada
me resta a fazer senão silenciar.
Mas se o dizer a expressão menor
for a solidão assim somente do jeito que se quer, claro que a escritura que vem
do coração é o sentir maior. Sei que Aírton Monte talvez não pense assim, pois
certa feita disse para mim: “Morrer, jamais, poeta, pois só nos cabe amar. E o
que não foi será. E quando a dor vier para matar, ressurgiremos da dor e
faremos, então, plural a nossa voz”.
Pois é, caro leitor, o espírito
que provém das asas do condor, que voa no algeroz, ergueu a sua voz e sobre a
minha mão pousou a sua mão. E assim vai conduzindo as letras de marfim (da
apresentação) como escudeiro: “Além do Nevoeiro – diz ele – existe o
amanhã, e já me és, poeta, a presa mais fiel”.
Eu penso, então, que o céu um dia
há de cair. Mas me convenço, depois, que devo prosseguir – vejo uma luz surgir
na cerração: “A crônica é a canção, poeta, a dor de existir, que vem do povo.
Diga ao Aírton de novo: eu sou o corvo de Poe que ajuda a vocês dois”.
Pensei, por fim, que corvo mais
atroz: mudou a minha voz interior, guiou a minha mão, me fez sentir no coração
a chama do amor que um dia há de surgir. Que corvo mais faquir esse corvo de
Poe. Que corvo mais veloz, e que dilema: eu tenho a morte por tema e a canção
da morte é tudo o que seduz.
E bem assim, eu sei, é a alma do
leitor, que já não tem aspiração maior que derrotar o mal que se alojou na
imaginação dos donos do poder: viver ou não viver talvez seja a questão.
A globalização, a violência plural e a
insânia, a falta de sorriso, a falta de visão do paraíso e a violação de tudo
que a vida nos legou: o jogo do amor, a sedução, as rosas no pomar e as
alianças de fogo do saber, a liberdade de ir e de ficar, as opções também de
caminhar pela cidade e de sentir a claridade de um corvo sedutor.
Esse é o corvo, talvez, que Poe nos
quer mandar. Um corvo agrimensor, que saiba mais que nós partir o pão. Que
saiba mais que nós que as linhas de uma mão e uns olhos de mulher são coisas
mais que mais que tudo que há de vir.
Quanto ao Airton e a mim, não há o que somar:
a dor de lapidar o texto com a mão, a dor de caminhar nas bordas de um
tinteiro, pois Além do Nevoeiro existe a cerração: a vida e seus
malogros. Existem os bólidos de fogo do poder. E a luz, Além do Nevoeiro,
é só escuridão.
Além do Nevoeiro, livro de crônicas de Aírton Monte
(inédito). Fortaleza, 2002A divulgação deste texto é um tributo à sua memória
Tive a oportunidade de poder prestigiar a obra do grande cronista Airton Monte lendo o livro "Moça com Flor na Boca" e algumas de suas publicações em periódico local.
ResponderExcluirSua maneira - única - de ver e retratar a vida muito me cativou. As crônicas têm esse poder de resgatar o encanto muitas vezes escondido no corrido cotidiano e expor as situações de maneira mais lúcida e às vezes mais lúdica, o que parece ainda mais atraente quando o cenário dessas retratações é a terra natal do leitor, como no meu caso.
A experiência de ter convivido com Airton Monte deve ser honrosa e inestimável, e o fato de ter sido convidado para escrever o prólogo de um livro de textos de autoria dele apenas exterioriza o papel de destaque que o senhor ocupa no seio da literatura cearense.