Letra Lúdica: Dimas e Daniel
Hildeberto Barbosa Filho
Dimas
Macedo e Daniel Mazza, dois cearenses e dois livros à mesa. O de Dimas, uma
coletânea composta de artigos, crônicas, entrevistas, perfis, prefácios,
testemunhos, discursos e pequenos ensaios, intitulado Trinta navios (Mossoró
– RN: Sarau das Letras, 2021); o de Daniel, um livro de poemas, ou melhor, e
mais precisamente, um poema, com o título de Sacrificium (Itabuna – BA:
Mondrongo, 2021).
Dimas
Macedo também é poeta, autor de uma obra já consolidada e com diversos títulos,
dos quais destaco, entre outros, A distância de todas as coisas (1994), Estrela
de pedra (2005), Vozes do silêncio (2003), Sintaxe do desejo (2006)
e O rumor e a concha (2009). Aqui, no entanto, comparece, exercitando a
prosa, diria entre jornalística e literária, para atender ao compromisso
crítico e exegético que também o envolve no seu convívio diuturno com as
letras: do seu estado, do Nordeste e do país.
Aos
textos de caráter mais objetivo, voltados para a leitura e análise de autores e
obras, de grupos, movimentos e instituições, juntam-se peças de natureza mais
íntima, a exemplo de “A terra onde nasci” e “Solidão na infância”,
descortinando aspectos subjetivos, traços psicológicos, incidências geográficas,
atitudes intelectivas, recortes da sensibilidade que formam o substrato
espiritual e ético de um autor, ao mesmo tempo em que auxiliam o leitor na
compreensão de sua personalidade literária e nas disposições temáticas e
formais de sua obra poética e ensaística.
As
entrevistas, enquanto aquele “diálogo possível”, na feliz expressão de Cremilda
Medina, traz o Dimas Macedo quase que de corpo inteiro, noticiando os meandros
multifários de suas leituras, os percursos intrínsecos de seus processos
expressivos, sua concepção estética, política, existencial e, sobretudo, a
posição do homem, do homem que se nutre da seiva luminosa da palavra, diante
das coisas, dos seres e da vida.
Se
pinçarmos os artigos que concernem à configuração de seus pares, temos, em certo
sentido, e enviesadamente, um portal de acesso a nomes e obras relevantes que
integram o acervo da literatura feita no Ceará, na sua rica e incontestável
tradição histórica e cultural. Jáder de Carvalho, Clauder Arcanjo, Padre Antônio
Tomas, Nilto Maciel, Joca do Arrojado, Sânzio de Azevedo e Cristina Couto são
alguns dos nomes que constam desse livre mapeamento crítico, a alargar o olhar
do leitor pela extensiva e diversificada produção literária deste país.
Seja
falando dos outros, seja falando de si, mais uma vez o escritor, poeta e
jurista Dimas Macedo se revela senhor de sua composição verbal, indispensável
como documento de suas preocupações intelectuais, mas também como exemplo
vívido de uma escrita fluente em seu estilo individual, marcada pela presença
do leitor culto, ilustrado, perceptivo, e pelos sinais concretos da linguagem
elegante e bem cuidada.
Daniel
Mazza, por sua vez, de uma geração mais nova, tem, em Sacrifium, o seu
quarto livro de poemas. Antes vieram a lume Fim de tarde (2004), A
cruz e a forca (2007) e A sinfonia do tempo: primeiro livro de filosofia
(2014), compondo, assim, o seu patrimônio poético singular.
Em
que pese a distribuição dos poemas em conjuntos autônomos (“O túmulo vazio”, “O
calvário”, “O deserto” e “Sacrficium”), vejo os textos como um poema só,
cerrado e coeso na sua expressão formal e temática de índole sobretudo
reflexiva, no que Daniel se põe em perfeita sintonia com os critérios
escolhidos por sua poética individual, exercitada desde os livros anteriores.
Sacrificium
associa
o impulso lírico a uma intrínseca e intensa dramaticidade, enredada a partir de
uma releitura, cuidada e criativa, dos episódios bíblicos, aqui e ali,
cotejados com elementos próprios do paganismo laico, de que resulta, quase
sempre, sugestiva tensão estética a reger o movimento das ideias e das emoções
que constituem o tecido substantivo da matéria poética.
As
epígrafes de Nicolai Berdiaeff e Tomás de Aquino podem, desde já, sinalizar
para o conteúdo religioso do assunto e do drama que se desenrola neste poema.
Mas não se iluda o leitor: a religiosidade, aqui, de fundo eminentemente
cristão, não se estreita nos limites de um púlpito doutrinário nem na cadência
fechada de uma liturgia dogmática. A pungente e iluminada meditação que se elabora,
à força iterativa dos versos, com suas repetições, paralelismos e metáforas
impactantes, se é de ordem religiosa, ou, mais precisamente mística, é, ainda
mais, de ordem metafísica, na medida em que os signos bíblicos evocados como
que transcendem seu estatuto primeiro, para alcançar a energia atemporal dos
temas permanentes.
Esses
temas permanentes residem no tempo, na eternidade, na morte, no sofrimento, na
paixão, enfim, no calvário e no sacrifício de ser e existir. No segundo soneto,
de “Tumulo vazio”, por exemplo, é a vida que se pensa poeticamente, para além
dos acentos denotativos das referências sagradas. Leia-se o poema: “A chama
morrediça, consumindo ∕ Vai a lenha dessa vida, e consumindo-se ∕ No mesmo
instante vai em que o instante ∕ Se evola e deixa apenas um montículo ∕ De
cinzas em silêncio: o resultado ∕ Da combustão da vida. Eis a única ∕ Resposta
que este mundo pode dar: ∕ O silêncio de cinzas em silêncio. ∕ Porque é isto
simplesmente a vida aqui: ∕ Um punhado de cinzas, o presente ∕ Que o sopro do
futuro a cada instante ∕ Dispersa no passado... A vida aqui, ∕ Um sonho a cada
instante, que não temos. ∕ E o que temos, só um sonho a cada instante”.
Não
diria ser a poesia de Daniel Mazza uma poesia simplesmente religiosa, cristã ou
católica. Os adjetivos a limitam e, em certo sentido, a conspurcam. Sua poesia
me parece simplesmente poesia, sem atributos nem epítetos “esclarecedores”.
Poesia enquanto sondagem e experiência do que vive e perdura na alma do ser
humano, vertida, por assim dizer, numa linguagem de alta voltagem estética.
Sagrada, não pela substância, mas pelo visceral acordo entre substância e
forma.
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