sábado, 27 de novembro de 2021

 Pré-leitura do livro Trinta Navios, de Dimas Macedo



O Autor

       Dimas Macedo é poeta, jurista e crítico literário. Professor da UFC.

 A Publicação

      O livro Trinta Navios, de autoria de Dimas Macedo, foi lançado em 2021, pela editora Sarau das Letras, com 184 páginas, prefácio de Ítalo Gurgel, orelhas de Edmilson Caminha.

 Circunstâncias

       O escritor Dimas Macedo tem um vasto e qualificado público que costuma aguardar e cobrar sua próxima manifestação em forma de livro. Em termos de Poesia, seu lançamento mais recente foi de 2020 (Rimance da Infância e Outros Poemas, São Paulo, editora Penalux). Em termos de crítica literária, a espera já vinha desde o ano de 2016, quando saiu Resenhas e Perfis (editora Expressão Gráfica).

 O Livro

      Trinta Navios reúne a produção de crítica literária de Dimas Macedo nestes anos mais recentes, além de artigos, ensaios e crônicas sobre eventos e personagens da cena cultural. Não faltam leituras e releituras de recortes de sua própria trajetória. Nas ondas do livro, Breno Accioly, Machado de Assis, Sânzio de Azevedo e Juvenal Galeno, a Filosofia de Oscar d’Alva, a Estética de Alder Teixeira e a Personalidade de Paulo Ferreira da Cunha. Os poetas Padre Antônio Tomás, Eduardo Fontes, Sérgio Macedo, Joca do Arrojado, Neide Freire, Carlos Nejar. Inácio Almeida. A arte de Cláudio César e a obra de escritores como Eduardo Luz, Nilto Maciel, Cristina Couto e Marcos Antônio Abreu. Estudos sobre a obra de Clauder Arcanjo, Nelson Hoffmann e Bruno Paulino, merecendo destaque novas observações acerca de Jáder de Carvalho, Fideralina Augusto e Joaryvar Macedo.

 A Importância do Livro

      Dimas Macedo precisa ser lido, relido, interpretado e entendido. E depois lido outra vez. A cada livro dele, a comunidade da literatura acorda e se agita. E retoma conversas, renova energias, estabelece novas referências.

       Nas palavras do prefaciador Ítalo Gurgel — Dimas Macedo confessa com sincero fervor: ser escritor é uma necessidade que o impede de “morrer a cada momento”. Há mais de 40 anos, esse estro vital o tem levado a lançar ao mar da literatura dezenas de embarcações de longo curso, que hoje transitam pelas caudalosas correntes da poesia, da crônica, do conto, do memorialismo, do ensaio literário.

 Curtas

      “Sente frio, às vezes, quando a literatura não se faz sua companheira, quando o amor que sente pelo próximo não borbulha no seu coração, ou quando não promove o intercâmbio cultural, utilizando para isso, as páginas do jornal O Nheçuano.

     “Chovemos de alegria quando a palavra renasce, ou quando o sol se apresenta na nossa janela, anunciando a chegada do novo. A lua clareia o nosso esquecimento e a chuva nos redime diante da memória, refletindo, em nós, a incerteza dos nossos idiomas.

    “É como se o mapa-múndi fosse povoado de saudades e lembranças que se gravam nos recessos do sonho. É como se o Reno, o Tâmisa e o Sena refletissem a brisa serena do Salgado, o mais doce dos rios, que os meus olhos não se cansam de ver.

      “Os historiadores não imaginam os fatos; mas quando são, igualmente, criadores, aí, sim, lhes é permitido imaginar a sua obra literária. Coisa rara, na história, tem sido a existência de historiadores que foram também criadores.

      “Separei-me da crítica, sim, mas para viver com a proposta pregada pelo Clauder Arcanjo: separações plurais, separações sem fim, porque, leitores, o casamento entre pessoas jamais existiu, e porque a vida é uma separação entre o que existe e aquilo que nunca se tornou possível.

      “O estilo literário de Alder Teixeira afasta-se do jargão acadêmico, prima pela correção do texto e pela poética da sua alocução e do seu viés comunicativo, instâncias nas quais a literatura e o cinema aparecem como pano de fundo.

      “Se Antônio Sales é o melhor escritor cearense, nos domínios da expressão estética e na agitação da cena literária; Jáder de Carvalho seria o grande intelectual do Ceará, especialmente, como sociólogo e jornalista, mas também como poeta, que se destaca por sua militância política, rara e desenvolta, dentre aqueles que elegeram a Rua e a Praça como tribunas de suas trajetórias.

Bons Momentos

      “O norte magnético deste grande vate é constituído pela rebeldia e pela poética da dor e do espanto. Todos os instintos, uivos e clamores do corpo e da palavra, pulsam nos poemas reunidos no seu novo livro. Mas, no seu conjunto, a sua poesia parece toda ela escrita com o sangue, tornando-se o autor um arquiteto das formas com as quais reinventa as suas criações.

      “A civilização do Médio Salgado, no sul do Ceará, deu ao Nordeste uma das suas maiores oligarquias, cujo apogeu efetivou-se com o domínio de Dona Fideralina Augusto, que sempre se manteve no poder utilizando os velhos bacamartes e os eflúvios da sua inteligência. A despeito dos conflitos e sobressaltos com os quais se envolveu, especialmente no campo da política, nada foi maior, na sua vida, do que a decisão de invadir a vila de Princesa, no Estado da Paraíba, para vingar a morte do seu neto Ildefonso Augusto, em 1902.

      “A busca do tempo compreende muitos regressos e avanços. No universo, nada me parece mais circular do que esta equação. O tempo existe para nos entreter. E quanto mais nos afastamos do presente, menos dolorida será a nossa sensação de perda, e muito mais prazerosa será a nossa satisfação. Daí a busca do tempo melhor, aquele que reluz na demão do passado, que nos faz reviver a infância e que nos leva a pensar o quanto aquilo que perdemos é essencial para nós, e o quanto aquilo que ganhamos pode implicar a nossa negação.

       “Tenho consultado críticos de renome, como Vera Oliveira e Dias da Silva, mas eles apenas me confundem. Dizem que a crítica não existe e que sou um visionário em busca de uma mãe, e que a ausência que sentimos da mãe, transforma-se num princípio de dissolução que nos leva para a criação da arte. Citaram Freud e depois Montaigne, Ulisses e Guy de Maupassant. Pediram-me os escritores Sânzio de Azevedo e o Batista de Lima que eu rezasse pensando na alma de Araripe Júnior, de Antônio Candido ou de Braga Montenegro, e que fosse até Belo Horizonte e colhesse com o Fábio Lucas alguma sugestão para continuar escrevendo, mesmo diante da morte da crítica e do ensaio.

     “A inquietação existencial e cosmológica, as figuras lendárias da política de Lavras da Mangabeira, as histórias contadas por minha mãe, o rumor das águas do Salgado que passava próximo à nossa casa, a mania que eu tinha de contar as estrelas em noites de muita claridade, a vontade que eu tinha de fugir do drama que eu via prosperando na minha família, o sino que plangia diariamente na torre da Igreja de Lavras, a teimosia em aceitar os limites da educação formal que me era imposta pelos meus pais, o medo de morrer de forma inesperada, assim como todas as crianças que partiam e cujos enterros passavam pela minha rua, marcando a minha voz e o meu jeito de ser com as suas despedidas.

      “Fico estarrecido ao perceber o quanto esse poema responde às questões referentes à arte e ao significado da linguagem. Aos vinte e dois anos, quando escrevi esse poema, eu já me encontrava atravessado pelas interrogações do devir e da poesia enquanto pressuposto da minha existência e do ser existencial para a morte. Eu já sabia que estava condenado a escrever e a repetir o sacrifício de Sísifo como alternativa para as minhas crenças, sonhos e valores, em busca de uma resposta para as minhas dúvidas.

      “Como cristão e poeta, atravesso estes tempos extremos que estamos vivendo como se fosse a ostra em seu enfrentamento com o vento, como se fosse o rumor que, às vezes, se funde com a concha e com ela se recolhe no sopro sublime da paixão. Sei que a vida é uma Graça, e que, a cada dia, eu a desfruto com a beleza que Deus nos confiou, e com os dons e os talentos que ele conferiu à minha inquietude: branda, como as águas serenas de um rio, mas incompreendida, às vezes, por aqueles que não aceitam a minha liberdade.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

O Garrote Misterioso

                                                 Lobo Manso

            


Leitores eu vou narrar

Uma nova profecia

De um garrote que falou

No Estado da Bahia

Andando um fazendeiro

No campo com seu vaqueiro

Um garrote lhe deu bom dia

 

Foi isto em quarenta e três

A quatro de fevereiro

Na fazenda São José

Assim me disse o vaqueiro

Que viu o animal falando

Ele e o homem escutando

Debaixo de um juazeiro

 

O garrote era zebu

De tamanho descomunal

Bem-feito como no mundo

Não pode haver outro igual

Com quatro letras escritas

Com tinta muito bonita

No lombo desse animal

 

O garrote assim falou

Bom dia, meu capitão

Com és o fazendeiro

Mais nobre deste sertão

Agora eu vou lhe dizer

E o senhor vai escrever

A minha declaração

 

O capitão quando viu

Aquela cena horrorosa

Ficou de queixo caído

E a fala muito tremosa

Disse muito admirado:

Aquele 4 dobrado

Já vi que letra mimosa

 

Disse o garrote estas letras

Cravadas aqui em meu lombo

São iniciais da guerra

Que traz o mundo em assombro

Desta vez a Alemanha

Bota fora toda a manha

Deixando no mundo um rombo

 

Falou que o 4 dobrado

É sinal de acidente

Oito países oprimidos

Em um grande continente

Ficam sujeitos ao Japão

Ficam sendo outra nação

Um só rei ou presidente

 

Esse M quer dizer

Muito país derrotado

Muita riqueza destruída

Muito barco naufragado

Muito homem enlouquecido

Muita mulher sem marido

Muito sangue derramado

 

A letra N quer dizer

Não conhecemos o futuro

Não sabemos pra onde vamos

Não temos planos seguros

E o mais tudo se some

Não sei como é que os homens

Na terra querem ser duros

 

A letra P quer dizer

Pedimos com piedade

Pedimos a Nossa Senhora

Pra nos dar felicidade

Pedimos a Nosso Senhor

Por ser grande protetor

Que proteja a orfandade

 

Temos um superior

Que a todo mundo domina

Escreve em linhas tortas

E o direito discrimina

É Deus grande e valoroso

Só ele é poderoso

E nunca mudou seu clima.

                          Esta guerra onde atingir

No lugar onde passar

É como rede de arrasto

Quando o dono vai pescar

Tiro de peça e canhão

Bombardeios de avião

Feliz de quem escapar

 

Vê-se gente espedaçada

De uma e outra nação

Uns sem perna outros sem braço

Rolados pelo canhão

Uns doidos e outros sem fala

Todos varados de bala

Rolando frios no chão

 

Na água os submarinos

Torpedeando os navios

Na terra o tanque avançando

Com os outros em desafio

Fazendo grande explosão

Pelos ares o avião

Solta bombas sem desvio

 

De repente este garrote

Transformou-se em um pavão

Com umas pintas doiradas

E outras cor-de-carvão

Tornou-se um pássaro bonito

E no peito estava escrito

Meu Padim Ciço Romão

 

Disse adeus meu fazendeiro

Não posso mais demorar

Meu Padrinho está em Roma

Ouço ele me chamar

E o mais tudo se move

Até em noventa e nove

Quando o mundo se acabar

                                          Lobo Manso

                                                   Batista de Lima


          Antônio Lobo de Macêdo é o verdadeiro nome do poeta Lobo Manso. Nascido em Lavras da Mangabeira, em 29 de julho de 1888, veio a falecer na mesma cidade, em 20 de abril de 1960.

       Poeta popular de reconhecido valor literário, Lobo Manso teve um filho e um neto na Academia Cearense de Letras, no caso, Joaryvar Macedo e Dimas Macedo. Isso sem contar outros descendentes que também cultivavam a poesia, como é o caso de Zito Lobo, seu filho. É, pois, sua família, um esteio de poetas.

     Em 1988, por ocasião do centenário de seu nascimento, seus descendentes organizaram homenagens de cunho religioso e político, como missa na capela do Sítio Calabaço, onde ele nascera, e na Câmara Municipal de Lavras, onde ele tivera assento como vereador.

         Naquela ocasião, seu filho escritor, Joaryvar Macedo, organizou um livro, com sua produção literária, com o título de Antônio Lobo de Macedo: O Homem e o Poeta. Mais recentemente, 2010, por ocasião do cinquentenário de sua morte, seu neto, o poeta Dimas Macedo, reeditou o livro com alguns acréscimos.

          Além destes textos iniciais, aparecem, logo em seguida, os poemas do homenageado, e, ao final, a árvore genealógica para mostrar todos os descendentes do poeta. É nesse momento que se descortina uma família com muitos de seus membros destacados nas mais diferentes atividades humanas.

           A ênfase, no entanto, recai sobre a produção poética de Lobo Manso, o patriarca. Sua poesia, de feição popular, se estrutura em redondilha maior, seguindo um esquema de rimas tradicionalmente usado pelos poetas do povo. Até aí, não há muita novidade.

           O que chama mais a atenção do leitor é o inusitado dos seus temas. A sua visão de mundo mostra um poeta cético diante dos exageros visionários da maioria dos sertanejos que acreditam primeiramente em milagres e premonições, antes de encarar a realidade que lhes cerca. Muitos estão com os olhos em subjetividades e esquecem a razão.

      Esse compromisso com o real o levou a confeccionar seu antológico poema de negação às experiências muitas vezes malogradas dos profetas da chuva. O poema foi publicado em folheto de cordel e teve grande repercussão por desmontar as crendices oriundas daqueles que vivem a fazer previsões de inverno. Logo de início ele afirma que "profeta como se diz / escreve sem garantia".

          Para citar algumas das experiências ele utiliza uma de suas décimas e desanca os visionários. "Nem torreame no Norte / nem relampo no Nascente / nem a barra do Poente / tudo isso não dá sorte / nem parado o vento forte / nem mancha do sul fugida / nem lua nova pendida / nada disso faz chover / depois de Deus não querer / toda ciência é perdida.”

         Ainda nesse poema, Lobo Manso utiliza outra décima para, na mesma batida popular, fazer um alerta para quem deseja fazer versos. É um momento em que a poesia fala de si própria, fazendo com que o leitor se veja diante de um texto metapoético.

          Daí que ele assevera: "precisa muita instrução / um homem pra ser poeta / fazer a obra completa / polida com perfeição / com toda a pontuação / fazer a rima direita / a poesia bem-feita / precisa estar no toante / faltando a consoante / torna-se a obra malfeita.” Como se vê, o polimento, ele defende, como para nos dizer que a poesia não é apenas produto de inspiração.

           Lobo Manso, no entanto, não foi apenas poeta. Afinal, militou a vida toda na política municipal de Lavras, chegando a vereador da cidade e guardando fidelidade ao seu partido político, no caso, a UDN, que no Ceará tinha como principais dirigentes, os representantes da família Távora. Seus ídolos, na política, eram: Juarez Távora, Fernandes Távora e Vírgílio. Tavorista ferrenho, sempre fez oposição à família Augusto, de Lavras, que dominou a cidade por quase cem anos e militava no PSD.

          Ainda na política, não restringiu seu olhar ao cenário lavrense. Quando surgiu a Revolução de 30, ele cantou loas à derrocada dos coronéis sertanejos. Não ficou apenas a cantar o enfraquecimento de Raimundo Augusto, coronel local, mas voltou-se na sua desforra verbal contra o coronel Zé Pereira, o famoso mandatário de Princesa.

          "Zé Pereira já foi trunfo / em todo aquele sertão / foi protetor de bandido / da mais alta posição / foi sócio de Suassuna / no tempo de Lampião". Essa oposição lavrense, leia-se UDN, dificilmente chegava ao poder, mas era resistente e comandada por: José Linhares, Alexandre Benício, Lobo Manso e João Ludgero Sobreira.

        Mesmo cético com relação a crendices e fanatismos, não deixou de cantar [no poema O Garrote Misterioso], talvez inspirado em O Pavão Misterioso, a história de um garrote que teria falado no Estado da Bahia.

        Na realidade, é um poema de desabafo contra a 2ª Guerra Mundial liderada pela Alemanha, mas também uma previsão do fim do mundo para 1999. Daí uma das estrofes: "Vê-se gente despedaçada / de uma e outra nação / um sem perna outro sem braço / rolados pelo canhão / uns doidos outros sem fala / todos varados de bala / rolando frios no chão.”

          Como se vê, Lobo Manso estava antenado com o que acontecia na Europa, Bahia e Lavras da Mangabeira. Agricultor, pouco letrado, deixou seus versos e sua honradez para os pósteros, como prova de seu tirocínio voltado para o futuro. Daí os valores intelectuais e morais de seus descendentes.                        

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  Diário do Nordeste.

                                                                                                                                      Fortaleza, 15.02.2011

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

                           Dimas Macedo, Capitão de Longo Curso

Edmílson Caminha

                                   

Poeta, jurista, professor, crítico literário, ensaísta, historiador, memorialista, editor, contista, cronista, Dimas Macedo é intelectual ilustre, na mais nobre acepção do termo, nome que engrandece as letras cearenses e honra a literatura brasileira. Entre o verso e a prosa, inclui-se na genealogia literária a que pertencem Mário de Andrade, Ivan Junqueira e Antônio Carlos Secchin: grandes poetas que também se destacam, em outros gêneros, pela agudeza crítica, pelo apuro do estilo, pela correção da linguagem.

Estes Trinta navios juntam-se à Liturgia do caos, às Vozes do silêncio, a O rumor e a concha, ao Codicírio e a tantas outras obras que fazem de Dimas Macedo uma das mais eloquentes expressões da literatura cearense contemporânea. Como um velho lobo do mar, o autor vai do cinema de Ingmar Bergman à poesia popular de Geraldo Amâncio, da lírica do Padre Antônio Tomás à pintura de Sinhá D’Amora, do telurismo de Jáder de Carvalho à fabulação de Clauder Ancanjo, sempre com clareza de pensamento, com lucidez crítica e com o saber de experiência feito.

Diferentemente de escritores que nunca vão além da navegação de cabotagem, Dimas Macedo prova-se, com Trinta navios, um capitão de longo curso, a velejar tranquilo pelas águas da grande literatura. Para a felicidade nossa, passageiros privilegiados de uma travessia ao termo da qual nunca seremos os mesmos, pelo sentimento de que nos tornamos pessoas melhores, para quem, depois da invenção de Gutemberg, não há viagem mais bela, nem mais prazerosa, do que ler um bom livro.

                                                                                                                                                                     Brasília, 25/06/2019

                           Confidências a Dimas

                                     Clauder Arcanjo*

 

 

Lembro o meu pai

apascentando estrelas

e solidões

em tardes duradouras

e a minha mãe

na sombra do alpendre

de olhos no algeroz.

Lembro o meu pai, Dimas, mas não tive a poética de descrevê-lo tão bem. Dele, tu acreditas, colhi a singeleza do luar sertanejo, o abrigo do conselho amigo; enquanto minha mãe, com suas mãos-úberes e dadivosa, ofertava o pão, o leite e o afago para toda a família.

Lembro o meu pai

taciturno

em horas de agonia

e a minha mãe

tecendo alegorias

ao seu rebanho

de dores e aflições.

Até hoje, Dimas Macedo, busco descobrir o segredo do engenho dos meus pais. Zequinha, de saúde não tão boa, mas forte na palavra; e Maria, companheira a tanger-lhe as fraquezas, a sarar-lhe as dores com lenimentos de carinho. Logo em seguida, os dois, tomavam nossas mãos e guiavam-nos na direção da luta da educação. Enquanto meu pai, nas agonias frequentes, escondia-nos a batalha do diário sustento.

E tu, Dimas, a te confessares com teus pais, descritos em versos tão fortes, transmuta-los em fraternos, e paternos, de todos nós.

Lembro o meu pai

e a minha mãe

em inventários

elaborando

o seu rosário de preocupações.

                                       &&&

         Adoro conversar sobre literatura com quem costura versos na algibeira das pequenas digressões. Dimas Macedo é mestre neste valioso ofício.

Rosa Guimarães a linguagem,

a liberdade nos sertões gerais.

Quando cuido em louvar-te o trocadilho, tu, Dimas, me narras o vasto mundo mineiro, agora em outro trem.

Longo é o texto, vasto é o sonho:

Minas é o mundo e algo mais.

Drummond, gauche, nos faz companhia, vindo de Itabira, e tu convidas novas poéticas personagens. E eu, de queixo caído e de olhos alados, sou ser-tão todo ouvido.

O sertão nas asas do vento é Riobaldo.

Diadorim é poema que se faz em mim.

Quando menos dou conta, lá tu me aprontas contos de saga sem fim. Montados em burros estradeiros, marchamos por dentro de sagarana. Toda magia, enfim.

Saga, sagarana:

onde a magia do burrinho pedrês?

A noite se estica no mineiro proseado; e, conosco, despontam novos condenados, a luzirem seus olhos de leitorados entre tantas minas gerais.

Manuelzão e Miguilim:

essas estórias plurais.

Em tudo, Guimarães Rosa. Por tudo, Rosa Guimarães. Veredas do ser tão sem fim.

Veredas do sertão:

Rosa Guimarães, princípio e fim.

— Bem-vindos, rosas, rosianos, rosários, diadorinhos, sagrados sagaranos, pedreses burrinhos, riobaldos dos vastos mundos dos sertões: grandes veredas, nonadas, letras do céu e do chão! — bendize-nos, mestre Rosa. Ô trem bão, sô!

                                          &&&

         A lua e as estrelas

o sol e os alabastros,

as cicatrizes de Deus

e as mulheres nuas

são formas puras de amor

que reconheço,

são como cactos

que me ferem os olhos

Quando me defronto com versos de fina cesura, os meus olhos, Dimas, ganham o brilho do halo da lua. Entre sol, lua, estrelas e donzelas, somos todos bestas-feras, dissimulados como se feridos por pontudo anzol. Por mulheres, eleitas princesas, montamos casas, subimos na mesa, e ofertamos o peito indefeso a todas as penas do Céu.

na distância,

tais os mistérios densos,

as perdas preciosas,

a dor de não viver a vida

presa na garganta.

                             &&&

         Em águas de Caponga,

nas ribeiras do sol,

o mar se vai tornando laranja;

e se vão plantando

estrelas e silêncios;

Quando anoitece, amigo Dimas, sempre fujo da beira do mar. E se à tarde eu estiver na Caponga, onde as águas se alaranjam com o descanso do sol, recolho logo o meu bisaco, pois bem sei que dentro de mim brotará um plantio de estrelas cadentes e uma fieira de silêncio de dar dó.

e se vão tecendo

memórias e lembranças:

nos lençóis de linho

e na nudez de plumas

da magia de Uka;

Um certo dia perdi as horas e quando dei por mim a noite já havia se tecido fogosa. Com pouco, as memórias me lembraram de coisas que já as imaginava mortas e enterradas. Qual nada!, elas me jogaram sobre um lençol de espinhos. E eu, frente à nudez primitiva da vida, suei entre espantos, magias, uivos e gritos.

se vão fazendo lenha

os nossos corpos;

se vão tornando pão

os nossos lábios,

lavados pela chama.

                                         &&&

         Fortaleza de noite:

eis todo um argumento

para viver a vida

plena de sentimento.

Lamento de cidade devassada pelos sorrisos da noite, pelas paixões declaradas sob o luar de um mar de asfalto, acompanhadas bem de perto pelos verdes mares. Abriga-me, Fortaleza!

Deslizo pelas ruas

sorvendo antiga brisa.

No rio do asfalto

a noite se eterniza.

Em tuas ondas de corpo, valentes e dadivosas, opera-se o milagre do sonho e do coito eternos; enquanto nos leitos brancos, as mãos se ofertam às serpentes assanhadas do amor. Em Fortaleza.

Fortaleza tem corpo

e atração fatal

que sangra nossos olhos

com lâmina de punhal.

Quando a ti me acheguei, Fortaleza, tive que trocar meus amores ribeirinhos por deusas abissais: esculturas de carne e osso a debutarem nas tardes de ressacas fatais. E eu a levitar, com punhal na calça jeans, à beira-mar de Iracema.

Sou todo fortaleza,

penumbra e nostalgia.

Existo enquanto sonho

sua geografia.

Eu, que me confessava, Dimas, matuto tristonho das ribeiras do Acaraú, hoje, inquieto, declaro-me adotado, de coração e abastança, por Fortaleza, metrópole que se me mostrava, na juventude, tão estranha.

Quando, Fortaleza, eu de ti me afasto, sonho a caminhar por tuas ruas, praças e avenidas todos os dias.

Em noites de insônia

Fortaleza é assim:

é casa do espírito,

é princípio e é fim.

                                         &&&

        Te amo sobretudo os lábios

e a resina viscosa dos teus seios,

pois a vulva dos teus olhos enlaça

a sedução invisível dos meus pelos,

onde começo a viver e me embaraço,

porque me mato de amor quando te vejo.

Sempre decantamos a amada guardada no casulo mais fremente. A ela, Dimas, nos entregamos com o corpo resinoso e frio, a sairmos de tal entrega com a alma inteira fervente. Na sedução invisível do embaraço e dos pespontos, eis que urdimos, na noite grávida de espanto, um tear de murmúrios e gritos infrenes. Nos olhos, no buço, na pele e nos órgãos instigados, o amor se entrega como se o casal estivesse diante do último tormento.

                                           &&&

         Pássaro soturno

pousado em minha sombra

tal como o corvo de Poe.

Poe me acena com seus olhos de corvo feroz, e eu fujo em direção aos verdes mares da bravia Iracema.

Gatos alados

que voam no silêncio

do quarto de Rimbaud.

Ah, Dimas!, tu nem ensinaste tão belo trocadilho com Rimbaud. Ficarei, então, a te esperar embaixo das lanternas cor de aurora do mestre Sânzio.

Besouro cego

e sem plumas

tal como o cão raivoso de Averróis.

Instigados pelo mundo que nos abandona, voltamo-nos para o coser da palavra em forma de manto: a um tempo, jazigo, ressureição, sepultura e acalanto.

Há em geral, Dimas, um cão a nos acolher e lamber quando seduzimos a lua com palavras-ossadas de arrebóis.

Vampiro surdo

de garras afiadas

deitado em meus lençóis.

                        &&&

         Minha querida, o esterno,

é mais do que eterno

o osso do teu peito.

Fico sem jeito

olhando o teu vestido

tão revestido de rosas

e o corpo tão ardente.

A musa se revela na sessão mais saudável e operosa. Sem notar que seu hálito de monarca, suas vestes de deusa helênica, seu perene riso em esterno arfante atiçam o corpo que segue tão puros ensinamentos.

Tão transparente o teu beijo,

assim como a salina dos olhos

e a franja dos cabelos.

Haverás de te entregares às rosas que flutuam em torno da manhã, pois sabes bem que o desejado corpo haverá de murchar com o anúncio do fim do tempo.

Teu tornozelo,

uma bela saliência,

e a tua leniência

me eriçando os pelos.

Daímôn!... Filho de Larvas, há um vulcão dentro das miradas dos ribeirinhos do Salgado?

                        &&&

         Deus mudou de residência

quando eu o procurei no meu corpo.

Eu o quis novamente no cérebro

e ele já se havia plantado na alma.

Ele tinha sossegado o meu busto.

Ele fazia escrituras nos dedos

e acariciava os meus olhos

que viviam completamente tontos de enganos.

Dimas, há muitos que ainda insistem em descrever nosso Deus com a tinta da razão, assim como acolhê-lO no fundo do cérebro. O Pai só quer o colo da alma; e só nos deixará quietos e sossegados quando nos deixarmos zelar pelas carícias de Seu mistério.

As minhas miragens morriam

quando ele chegou muito perto e me disse:

a luz é a que fica gravada na memória,

e o sol é o que nasce brilhando a cada dia,

pois a tua honra e a tua lâmina,

pois a tua glória e o teu escudo

são essas rugas de paz

e essas dálias brancas

e essas tardes mágicas

e essas plantas nobres

que se deixam cair na correnteza.

Numa tarde quieta e mansa, Tua voz rompeu por entre a correnteza dos meus pés, as horas se plantaram no chão sem viço, e a tarde, antes tão sem festa, anunciou-se florida e veloz.

E Deus já se havia chegado

por entre os fios do sonho

e se havia anunciado leve

como as espumas e os cristais de rocha,

mas ainda não se havia desnudo,

porque as marcas ficam na alma,

porque o vórtice e as vértebras

às vezes me levam para a morte.

Pleno da saudade do nosso “convívio inteligente”, respeito as horas de quaresma que Cristo nos impõe. Recolhemo-nos, amigo, ao calvário das tardes, à luz cambiante das reminiscências recentes. Eu, reles pedinte, oro a Deus e à Virgem que nos cubram com a proteção do divino manto.

Mas a luz de Deus chegou

para ficar dançando no silêncio

e o silêncio

para ficar gravado nas palavras

e as palavras para serem

faladas para o próximo,

porque no próximo o instante,

porque no próximo o quadrante

e as sarças de fogo da espera.

No instante em que tu te julgares pronto e refeito, dançaremos novamente o tango da amizade, tocaremos um blues sem ressentimento. A partir de então, gravaremos, em palavras poéticas, o samba da espera, ritmo de dorido lamento por tão difíceis momentos.

O amor não se compraz no pranto.

A alma é como a música do bosque.

Porque maduro e belo é o encanto

dos que se vão serenos pela vida.

Sigamos juntos, Dimas Macedo, somos duplo e uno. A amizade e a literatura nos irmanaram, egrégios siameses. Agora, ontem e, Deus haverá de querer, para todo o porvir.

Somos o duplo talvez

de algum castelo

misterioso

daquilo que há em nós.

 Obs.: os trechos em itálico foram extraídos dos livros Sintaxe do desejo, Liturgia do caos e O rumor e a concha, de Dimas Macedo.

 *Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-

grandense de Letras.

                                                                                                24/04/2020