Dimas Macedo
Patativa do Assaré
Nasci em 1956, na região centro sul
do Ceará, quase em confluência com o Cariri cearense e à relativa distância da
cidade de Assaré, terra natal de Patativa. Sou produto, portanto, do grande
sertão, e acho, sinceramente, que fui ungido pelo signo que marcou a estreia de
dois gigantes da literatura brasileira do século precedente.
1956, não podemos esquecer, é o ano
da publicação de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, e de Inspiração
Nordestina, de Patativa do Assaré. O que une esses dois escritores e o que
os consagra é a originalidade com que recriaram, com linguagem nova, a ciranda
das palavras, a partir da memória e da oralidade, valores com os quais o sertão
sempre se reveste.
Se Riobaldo constitui o idioma
poemático de Rosa e o engenho da sua versão encantatória do mundo, Patativa
constitui, ele próprio, um conjunto de engenhos e personas e de representações
pragmáticas que empresta voz aos excluídos: um Riobaldo castigado pela
inclemência das secas, a lapidar o ouro das palavras e a reconstruir o chão da
esperança.
Assim como o autor de Sagarana,
Patativa do Assaré inventou uma linguagem e um estilo literário próprio e criou
um dialeto linguístico de raízes predominantemente sertanejas, ligadas à
oralidade e ao cancioneiro, lembrando, neste ponto, a constituição da língua
brasileira fundada por José de Alencar. E nisto, com certeza, reside a
genialidade da sua produção artesanal.
Patativa é a encarnação viva do
sertão, a palavra enquanto instrumento de denúncia, a significação sinfônica do
silêncio, a oralidade que mapeia e ordena a gramática e a literatura que se
fazem, por fim, transmutadas ao campo da escrita.
Conta o poeta Patativa que, aos
oito anos, ouvindo a melodia e o gorjeio dos pássaros, despertou para os
grandes sentidos da palavra e da sua existência no mundo, pois que a natureza
possui uma lei eterna e infalível e que aos deuses e poetas é facultada a
criação enquanto princípio de interpretação de todas as coisas existentes.
O homem, com certeza, não é grande
pela sua erudição ou pela sua razão ou pela capacidade de domínio com que enfrenta
as convenções e se adapta à liturgia do poder. Ele é eterno, ao contrário, pela
fundação da sua verdade pessoal e pela formação do seu mito diante da realidade
e dos desafios que lhes são inerentes.
Se Rosa deu voz a Riobaldo, e
Riobaldo deu voz ao sertão dos tangedores de gado e bandoleiros do Meridional,
Patativa do Assaré falou, com destemor e bravura, de homens e mulheres
imantados ao chão do latifúndio e excluídos da vida política e social.
Não foi um poeta ingênuo e apartado
dos valores da língua e da gramática, como pensam certos setores da cultura
livresca e acadêmica. Estudou manuais de versificação, soube aceitar a cegueira
completa de um olho, aos cinco anos de idade, como sinal do destino ou da
predestinação que faria dele uma espécie de Camões sertanejo ou, melhor
dizendo, um Homero do semiárido nordestino.
Em Castro Alves, viu a expressão
maior da poesia do Brasil. Apaixonou-se, desde cedo, pelo social. Tornou-se,
com o tempo, um homem destemido e exasperadamente verdadeiro e sincero.
Proclamou a verdade e a justiça como paradigmas. Foi atingido pela repressão e
censura, e foi detido por questionar, em versos de bom feitio literário, a
legitimidade de certo gestor da sua terra. Foi um defensor exaltado da poesia
como valor maior da sua passagem entre nós. Fez da denúncia o seu apostolado e
dos seus recursos vocais e estilísticos a expressão maior do seu alto poder de
criação.
Foi um prodigioso memorialista e um
político sutil e maneiroso das reinvindicações da cearensidade e da
nordestinidade. Lutou pela Anistia e pelas eleições diretas, opôs-se ao poder
oficial e apoiou, no Ceará, a luta pela modernidade da política e do governo,
fazendo, por fim, de Assaré, o maior e o mais astucioso atalho do sertão.
Memorizou e fez a melodia de quase
uma dezena de poemas que foram musicados e que se tornaram conhecidos no
Brasil. Gravou, com a sua voz de passarinho, uma meia dúzia de discos e CDs. E
se fez partícipe, como arranjador ou letrista, de outros cinquenta discos e
compactos. Foi ator de novela e de cinema, declamador da radiofonia, cantador
de viola, cordelista, sonetista e improvisador de apurada técnica literária.
Sobre ele foram escritos diversos
livros e opúsculos e, bem assim, teve a sua obra estudada em variadas teses e
ensaios. Mas Patativa, é certo, apesar de conhecer diversos estados do Brasil,
sempre viveu em Assaré, onde nasceu aos 5 de março de 1909 e onde faleceu aos 8
de julho de 2002.
Teve, apenas, quatro meses de
escolaridade. Sobreviveu do plantio de grãos e da lavoura da terra. Sempre
botou roças no inverno e, nos anos de seca, passou necessidades e agruras; e
militou, durante toda a vida, em soberano estado de pobreza. Quando largou a
viola, em 1962, os emblemas da voz e da palavra ritmada passaram a ser o
ganha-pão.
Não cantou os seus males pessoais,
nem as suas desditas, nem o seu penar. E não vangloriou a sua condição de mito
ou poeta de projeção nacional.
Rejeitado pela cultura letrada da
Academia, tornou-se, contudo, nome do Centro Acadêmico do Curso de Letras da
UFC. O seu nome não consta dos compêndios oficiais da literatura cearense, mas
o seu cânon é um dos mais apreciados. É um dos poetas que mais vendem livros no
Brasil, ao lado de Castro Alves e de Drummond. A Editora Hedra, de São Paulo,
republicou quase todos os seus livros, e a Editora Vozes, de Petrópolis, já
reeditou uma quinzena de vezes o seu Cante Lá Que Eu Canto Cá, com
milhares de exemplares vendidos.
A Academia Cearense de Letras não o
elegeu para os seus quadros e o teve sempre na linha da poesia popular,
julgada, pelos homens do fardão acadêmico, de extração inferior. As
Universidades cearenses, inicialmente e durante toda a sua vida, mantiveram-se
longe do seu nome; mas, quando ele passou a ser traduzido e estudado em
Universidades francesas e inglesas, resolveram conferir-lhe honras acadêmicas.
Tornou-se Doutor Honoris Causa em quatro dessas instituições. Mas nesta
ordem, necessariamente: primeiro os leitores, em seguida a mídia, depois as
medalhas e o coroamento oficial e, por último, a distribuição das láureas acadêmicas.
Patativa, no entanto, é muito maior
do que isto. É um gigante das letras e um grande poeta da tradição popular
ocidental. A sua poesia se impõe. A sua expressão cultural sempre se levanta. E
a sua melodia é a costura precisa com que ele se anuncia músico e expõe a sua
condição de oráculo. É o arauto maior do nosso povo e a síntese de tudo o que
veio antes dele, em termos de cultura sertaneja e de representação dos
excluídos que nunca puderam falar.
Antônio Gonçalves da Silva é o seu
nome. O lugar em que nasceu chama-se Serra de Santana, a dezoito quilômetros do
centro de Assaré. Seus pais eram agricultores. Viviam do plantio e da lavoura
da terra. E, assim, também seus irmãos e familiares. Casou-se com uma parenta,
dona Belarmina Paes Cidrão, e tiveram, em comum, uma boa ninhada de filhos.
Aos vinte anos, levado por um
primo, fez uma viagem ao Estado do Pará, onde viveu de cantorias e arribações,
sendo, pelo folclorista cearense, José Carvalho de Brito, ali residente,
cognominado de Patativa. Brito o devolveu ao Ceará, com carta de apresentação a
Juvenal Galeno. Foi aplaudido em Fortaleza, mas o destino o levou de volta para
o sertão do Ceará.
Recolheu-se na Serra de Santana e
em Assaré, entre 1930 e 1945, aproximadamente. Seu nome espalhou-se pela serra
e pelo vale, ganhou o sertão dos Inhamuns e desceu soberano pelas águas mansas
do rio Jaguaribe. Cantou, de viola em punho, em cidades vizinhas e adotou, como
pseudônimo, aquele pelo qual se tornou universalmente conhecido – Patativa do
Assaré, tamanha a revoada de Patativas, nessa época, por todo o Ceará.
Em 1955, foi ouvido por um velho e
bom intelectual do Ceará, radicado no Rio, José Arraes de Alencar, quando
declamava, na Rádio Araripe do Crato, os seus poemas de expressivo gosto
musical. Nasceu, a partir deste fato, o poeta com direito a livro publicado. Inspiração
Nordestina, de 1956, é, portanto, o seu primeiro livro de poemas.
O segundo viria em 1970. Não é um
livro autoral do poeta Patativa, mas um conjunto de poemas organizado pelo
folclorista J. de Figueiredo Filho: Patativa do Assaré: Novos Poemas
Comentados.
Em 1978, vem a lume o seu livro mais
conhecido: Cante Lá Que Eu Canto Cá, publicado pela Editora Vozes, de
Petrópolis, em convênio com a Fundação Padre Ibiapina, do Crato, com
apresentações de Plácido Cidade Nuvens e do Padre Francisco Salatiel de
Alencar.
Ispinho e Fulô seria a sua próxima coletânea de poemas, organizada
por Rosemberg Cariri e publicada em 1988, com apresentação e estudo-reportagem
do próprio Rosemberg, que produziu, sobre o poeta, documentários importantes no
campo das artes visuais.[
O que veio em seguida, em matéria
de livros, está condensado nos seguintes títulos: Aqui Tem Coisa (Fortaleza,
Secretaria de Cultura e Desporto, 1994) e Cordéis (Fortaleza, Editora da
UFC, 1999), reunião, em único volume, do básico que foi produzido nessa área
pelo autor. Devemos a Gilmar de Carvalho, o maior estudioso da vida e da obra
de Patativa do Assaré, a organização desse livro-monumento, que foi adotado,
como livro-texto, em vestibulares da UFC.
A fortuna crítica de Patativa do
Assaré é imensa e diversificada. Existem altos e baixos nessa produção. Aponto
o volume de Plácido Cidade Nuvens: Patativa do Assaré e o Universo
Fascinante do Sertão (1995) como ponto de partida, pois é um livro de
comentários impressionistas em que se ouve a voz do coração. O livro segue a
tradição dos estudos caririenses sobre o poeta, a começar por J. de Figueiredo
Filho (1970) e que tem prosseguimento com Francisco de Assis Brito: O
Metapoema em Patativa do Assaré: Uma Introdução ao Pensamento Literário do
Poeta (1984).
Outro roteiro interessante sobre
Patativa é o que se acha condensado em O Poeta do Povo: Vida e Obra de
Patativa do Assaré, de Assis Ângelo, acompanhado de um CD com poemas
declamados pelo poeta (São Paulo, CPC-Umes, 1999). Este livro, de formato
gráfico belíssimo, pode e deve ser lido paralelamente com o suporte da
antologia de Sylvie Debs: Patativa do Assaré: Uma Voz do Nordeste (São
Paulo, Editora Hedra, 2000), no âmbito da coleção Biblioteca de Cordel e cujo
estudo que a antecede eu igualmente recomendo.
Gilmar de Carvalho publicou a
melhor e a mais extensa entrevista concedida pelo poeta: Patativa Poeta
Pássaro do Assaré (2000) e é autor do erudito e bem concatenado livro de
ensaios: Patativa do Assaré: Pássaro Liberto, editado pelo Museu do
Ceará, em 2002. Organizou também a melhor e a mais criteriosa antologia poética
do autor (Fortaleza, Edições Demócrito Rocha, 2001). Em 2000, deu a lume um
precioso livro de bolso, contendo uma síntese didática e pedagógica em torno da
vida e da obra do poeta.
Tadeu Feitosa é o organizador do
bonito álbum de textos e fotografias do poeta e do seu entorno sertanejo (São
Paulo, Editora Escrituras, 2001). E é autor, por igual, do ensaio crítico-interpretativo
do poeta: Patativa do Assaré: A Trajetória de um Canto (São Paulo,
Editora Escrituras, 2005), que é, no caso, a sua tese de doutorado em
Sociologia.
O livro de Cláudio Henrique Sales
Andrade: As Razões da Emoção: Capítulos de uma Poética Sertaneja
(Fortaleza, Editora da UFC, 2004) é o resultado de uma dissertação de mestrado
apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Trata-se de um
ensaio instigante e bem fundamentado em torno da poética de Patativa e da sua
autenticidade. Uma leitura crítica, por assim dizer, tecida com as luzes da
razão e da sensibilidade, acompanhada de uma pesquisa de campo que nos encanta
pela sua riqueza. Um livro para ser lido e intuído, pensado e degustado como
todas as boas iguarias que somente o sertão sabe oferecer.
A despeito das reclamações de Gilmar
de Carvalho de que o poeta foi esquecido pelos responsáveis por nossa
historiografia, alguns passos foram dados nesse campo: Oswald Barroso e
Alexandre Barbalho incluíram Patativa na antologia: Letras ao Sol
(Fortaleza, Edições Demócrito Rocha, 1998), o que já é um avanço.
Em 2001, Patativa viria a figurar na
coletânea organizada por José Nêumane Pinto e publicada pela Geração Editorial,
de São Paulo: Os Cem Melhores Poetas do
Brasil. E, em 2006, passou a fazer parte da coleção Os Melhores Poemas,
da Editora Global, também de São Paulo, o que já é uma consagração. A
antologia, organizada por Cláudio Portela, é uma das mais volumosas dessa
coleção, e é antecedida de uma introdução bastante apressada e resumida, mas o
roteiro de fontes, no final do volume, é razoavelmente bem pesquisado, apesar
da confusão metodológica em que se enreda o organizador, que foi prejudicado,
acredito, pelo suporte técnico e revisional da Editora.
Antes, em 1989, no meu livro A
Metáfora do Sol, no âmbito do ensaio “Sobre a Formação das Letras
Cearenses”, eu já havia, pioneiramente, arrolado o poeta Patativa qual um nome
emblemático da literatura que se produziu no Ceará, isto é, da literatura
cearense tomada a partir da sua evolução e abrangência histórica.
Ali divisei em Patativa a grande
voz social da poesia cearense e também me referi à ressonância nacional da sua
poesia. E registrei que os seus livros “são atestados inequívocos da afirmação
de um poeta de quem todo o Ceará se orgulha e em cuja obra o Ceará se vê também
retratado”.
Por fim, faço minhas as palavras de
Gilmar de Carvalho, no sentido de que “Patativa do Assaré é a grande voz da
poesia do Brasil”, não sei se “de todos os tempos”, mas, com certeza, a voz
mais legítima, a mais expressiva e aquela em que a verdade e a justiça, a
língua e a cultura melhor se encontram, em busca de um sentido novo para a
identidade mais profunda do Brasil. Refiro-me ao Brasil que as elites tentaram
dizimar, mas não conseguiram, porque não somos, em essência, um Estado sem
nação, e porque a nação é o pluralismo de suas etnias e o somatório das suas
diferenças.